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TODA ARTE É SUJA E DOENTE

   Inspirado pelo belo artiguete de Vladimir Safatle.
   O artista, assim como o filósofo, viu demais. Algo que aos outros é vedado ver. Para eles a vida é grande demais, terrível demais, sedutora demais. Ao perceber a vida em toda sua plenitude, o artista se defronta com seu maior mistério: a morte. Essa vida grande demais é o que lhe dá o aspecto de doença e de neurose. Doença e neurose que É A MARCA DE TODO ARTISTA E DE TODO FILÓSOFO.
   A frase acima é de Deleuze e Guattari.
   A doença é parte da arte. Não é um ônus ou uma sublimação, simplesmente ela faz parte da visão. Mas se vivemos numa época em que a doença e a neurose são indesejadas, mais que isso, odiadas, consequentemente a arte e a filosofia serão vistas como incômodos. Se tornarão fracas.
   O artigo me impressiona por tocar ( e confirmar ) duas sensações que sempre me acompanham.
   Primeiro. Quando vejo um filme de Clair ou de Mizoguchi ( entre muitos outros ), o que mais me impressiona é a sujeira. Nada neles é limpo, polido, hospitalar. Essa poderia ser uma visão romântica minha, mas na vida que levo percebo que a inquietação e criatividade estão sempre ligadas a desarrumação, a uma certa sujeira. Amigos muito organizados, limpos, com unhas bem feitas e roupas recém passadas costumam ser cegos a complexidade inexplicável da vida. Têm explicações para tudo, compartimentam suas emoções, vêem as coisas em alcance curto. E morrem de medo de coisas como loucura, drogas, desorganização, sexo promíscuo e morte. Veja, não defendo o sexo sujo ou a droga. É que para esses hiper-controlados, quase todo sexo é sujo. Por outro lado, amigos que vivem em apartamentos imundos, roupas amarrotadas e descontrole de vida, costumam ter muito mais criatividade e coragem perante a grande vida.
   É claro que existe a pose. Fácil observar o desarrumado criativo de butique. O que falo é do cara que realmente cria algo. O amigo que está sempre às voltas com grandes ideias. O sujo Dolce e Gabanna não me interessa.
   Voce também pode falar de artistas meticulosos. Gente como Henry James, bem arrumados e de vida sexual hiper-controlada. Mas interiormente James era um kaos. Hoje seria um tomador de pilulas e um eterno analisando. Sua rotina era febril, seus pensamentos incontrolados, suas obssessões absorventes. Um doente.
   Vladimir fala que hoje a doença e a neurose são considerados "momentos vazios", que devem ser aniquilados o mais depressa possível. Como aliás ocorre com a morte, que deve ser esquecida sempre. O que perdemos é o falar com a doença.
   A doença, fisica ou não, é sempre uma crise. E a crise é o sinal de que voce se tornou PEQUENO DEMAIS PARA UMA VIDA QUE EXIGE DE VOCE A GRANDEZA. Todo doente sabe, que após a doença prolongada vem uma nova vida. Um renascimento. Voce se sente grande e pronto para algo mais exigente. A moderna fixação na saúde faz de nós um SEMPRE O MESMO. É como se ser uma crisálida fosse uma doença e nos esforçássemos para jamais tornar-se borboleta.
   Mas a vida é crise constante. É impossível não se estar doente de alguma coisa todo o tempo. Dispendemos toda a nossa energia nessa luta em vão. Nosso asco a doença, nosso horror a morte faz de nós seres que não conseguem mais dialogar com a doença e com a neurose. Fugimos das duas crises. Corremos para a não-criação.
   A vida sempre encontra respostas para as questões que ela mesma coloca. Basta saber ouvir essa resposta. A doença é a vida. Estar vivo é viver em crise e em risco. E a vida produz doença e sujeira. Negar tudo isso é negar a vida. É querer ser máquina, querer ser equação, querer ser morto.
   Triste sina: mortos não sentem dor e não ficam mais doentes.
   Jacques Lacan: Neuroses são questões. A doença é um tensionamento da vida. Deve-se buscar o que ela tem a dizer.
   Daí vem a postura do artista. Ele sabe que a questão colocada pela neurose é uma grande questão. E se esforça em encontrar sua resposta. Ele sabe que a tensão da doença é uma prova grande. E se esforça em vencê-la. Mas o que se faz hoje é exatamente o contrário. Um esforço para se esquecer da morte, se apagar a neurose e se livrar inconscientemente da doença. Ignoram-se as questões.
   Conheço os dois lados e posso dar meu testemunho. Sei o que é ter uma neurose de morte aos 16 anos e passar meses tentando entender a morte, e melhor que isso, criando histórias, teses, desenhos, ações que me fizessem entender o que se passava comigo. Eu pintava quadros, escrevia contos, sonhava sonhos absurdos, dançava a tensão. Vivia sem parar, vivia grande e com uma dor imensa. Rememorava tudo, nunca parava de fazer coisas. E buscava a vida. Tinha de achar uma resposta.
   Mas conheço também o alivio do comprimido, da solução sem dor, do imediato. Livrar-se da neurose, do sintoma com um gole de água. Deixar a vida GRANDE morrer. Eu sei o quanto a vida pode ser pequena, o quanto ela pode se tornar modesta.
   Conheço gente como eu, que fez o mesmo caminho. Todos morrem de saudade da vida GRANDE, sentem que a vida após "a cura" ficou pequena, futil, sem cor. Nos tornamos "como todo mundo", perdemos aquilo que fazia de nós únicos. Mais um anabolizado espiritual ou siliconado da vida.
   Não irei jamais voltar a ser o que fui quando "doente". O mágico da VIDA GRANDE é que voce não a escolhe, voce vive nela como sina. Ninguém opta por ser doente, neurótico ou sujo. A vida vive em voce e voce procura solucionar o enigma. Mas ninguém escolheria voltar a dor. Sabemos que viviamos de forma mais rica, que aprendíamos mais e que nos sentíamos especiais, mas não podemos programar esse retorno. Programar já seria uma traição.
   Me incomoda a quantidade de filmes com gente doente. Com hospitais. A quantidade de apartamentos limpinhos, de atores saudáveis, sem gordura nenhuma, sem uma ruga, um sinal, uma cicatriz. São filmes com gente doente "limpa". Eles não são filmes doentes, são filmes que nos ensinam a superar a morte. A vê-la como ficção. Banalizar.
   Meu quarto hoje tem cada coisa em seu lugar. E tem uma TV, som e PC.
   Sinto uma saudade imensa de quando pilhas de cadernos ficavam no chão, livros se espalhavam pelas poltronas, pincéis e latas de tinta num canto e meus dois cães dormindo em minha cama. Absolutamente solto. Naquele quarto se respirava vida. E um monte de pó e de ácaros.
    No recente filme de Woody Allen o personagem de Owen Wilson desiste de seu sonho quando recorda que em 1920 se morria de tuberculose. É exatamente o medo da morte que mata seu delirio feliz..... Pensem nisso.
    Nossa época tenta algo de grotesco: produzir arte sem sujeira, arte util, artistas saudáveis. Nosso tempo odeia a arte tanto como odeia a religião ( igreja é outra coisa ). Arte  e religião só podem ser aceitas se forem uteis e lógicas. O Util e o lógico matam as duas.
    Faça um teste. Se imagine num tempo de grande arte e  filosofia. Talvez o tempo de Kant, Beethoven, Goethe e Keats. Observe como todo esse sonho será desfeito quando voce pensar: Eles fediam, tinham pulgas e se morria de gripe. Eis o pequeno mundo maculando a Grande Vida. O medo aniquilando a coragem. O util encurtando a visão do transcendental.
    Não existe arte sem doença?
    Mais que isso, não há vida sem dor.

SINDROME DO PÂNICO

Não ter ligação com nada e fazer tudo. Naquele ano eu não ficava uma noite em casa. Me sentia psicodélico e apaixonado. Engraçado, eu amava Jane, mas me sentia desconectado de tudo. Década de 80, época em que era obrigatório ser moderno. Então eu fazia video-arte, escrevia textos niilistas e lia Bukowski, Heminguay, Nietzsche e Dostoievski. Os gênios do cinema se chamavam Peter Greenway, Terry Gillian e Wim Wenders ( engraçado como os gênios passam.... ). Como todo cara "inteligente" eu odiava os EUA, a igreja, meu pai e toda forma de poder. E saía pro Bixiga, pros Jardins e pra praia. Pra beber e fumar. Engraçado como não me reconheço nessa época. Era um eu sem Yeats, sem cães, sem sol e sem dúvidas. Pois não havia dúvida alguma: o mundo era um acidente. Deus, pai e familia eram imposturas.
Como hoje eu sei, meu ego me asfixiava. Tudo era: eu sei, eu sou, eu sinto, eu quero. Nada mais entrava nesse eu. Até que numa noite quente alguma coisa entrou. Na marra.
Me entupi de haxixe. E, apaixonado que estava por Jane, que havia dormido com meu melhor amigo, pirei. Na época ninguém sabia qual o nome daquilo. Eu tive ondas de pavor com ondas de frio. E a terrível constatação que derrubou meu mundo: eu não sou dono de mim. Nada controlo, nada sei, nada posso prever. Eu desabei. Era a tal síndrome do pânico, doença que salvou minha vida. Porque salvou? Ela derrubou muros que me deixavam estagnado. Explodiu meu mundinho niilista. E me fez sentir dor de verdade, dor vinda de fora, não imaginada. Eu nasci naquela noite. A síndrome foi um parto.
Jamais deixei de trabalhar ou de ir a faculdade. É engraçado isso. Me encolhi em pavor na certeza de ter enlouquecido, mas nunca deixei de ir à rua. O triste é que naquela época não havia um diagnóstico. Ou não, isso fez com que eu pudesse ser esse barco a deriva.
Me aconselharam a umbanda. Fui. A mãe de santo disse que alguém me fazia mal. Pediu um caminhão de mantimentos. Depois fui a centro espírita. Tomei doze passes e fiquei com mais medo ainda. E uma amiga me indicou seu terapeuta. Fui na esperança de que ele me dissesse que não era caso de internação. Não era. É engraçado. Eu pensava que todo psicólogo era um sábio. Que para ser terapeuta era preciso ter lido tudo de Freud, de Lacan, de Jung e de Adler. Que todo psicólogo sabia tudo sobre filosofia, história e religião. Quando notei que ele lera apenas dois livros de Freud e alguns capítulos aqui e ali, me decepcionei. Mas criamos uma relação de amizade. Na verdade é apenas isso, voce paga um estranho para que ele faça o papel de seu amigo. Triste, mas é só isso. Em quatro anos ele me ajudou a falar de mim mesmo e assim me amar um pouco mais. Mas todos os problemas que eu tinha permaneceram exatamente iguais. E provávelmente alguém dirá que dizer isso agora é parte do processo. Bem... cada um é livre para crer no que quiser. Ele me mostrou que terapia é questão de fé, jamais de ciencia. Funciona se voce crer. Voce não precisa crer num comprimido. E ciência é o comprimido.
Naqueles anos o que mais me ajudou foi o amor que tive por Andrea, uma menina louca que me levava à praia. Com ela eu redescobri o surf e o rocknroll. E logo em seguida a volta da minha tia ao Brasil, o que me fez redescobrir a felicidade que existe em se ter uma familia. Aprendi muito com meu cão, Nicky. Ele me livrou da insonia, fez com que eu aprendesse a cuidar sem esperar retorno e me obrigava a brincar, brincar como uma criança. Até hoje desconfio de quem é incapaz de amar um bicho. De quem só ama quem pode lhe retribuir. É a grande lição que aprendi, foi meu renascimento: amor, familia e animais. A poesia veio junto e o prazer de ler surgiu depois. Renascimento.
Mas a deprê persistia. Todo fim de tarde era aquele aperto no peito e a vontade de chorar. Eu ria, fazia piadas, brincava e me apaixonava, mas a dor estava sempre lá, ao meu lado.
Então deram nome à coisa. Sindrome do Pânico. Fui me medicar e o aperto se foi. É óbvio que me tornei um fã de biologia e quimica. Durante algum tempo a vida era questão de substâncias que se combinam. Toda a dor é uma questão de desequilibrio quimico. Nunca fui tão ateu! O protótipo do materialista. Estranho notar hoje que eu não pensava nada, tudo estava respondido. Árido. Seco. Sem dor.
A morte de meu pai veio balançar toda essa certeza. Me tornei um Espinozista, a vida é uma aposta. Voce aposta num caminho sem jamais ter como saber o resultado desse lance. Me tornei um seguidor de Pascal. O eu é a raiz de todo mal. Somos felizes quando abrimos mão desse eu, quando ele se torna nosso escravo. E me vejo como aquele que sabe que nada sabe, mas que curioso, tenta compreender esse não-saber. A sindrome me ensinou o quanto somos limitados, que nosso cérebro é apenas músculo, que a vida nos é incompreensível, mas que é nossa sina procurar entender. O tempo só existe em nós.
É lógico que eu preferia jamais ter vivido nada disso. Ter sido um.... o que mesmo?
Talvez a lição seja essa, é tudo um caso não saber.