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DÉCADAS

Vivi já as quatro décadas centrais da minha vida. Todo mundo as vive se não morrer antes dos 50. São as décadas do apogeu de seu amor às novidades da vida. Depois dessa fase, voce usufrui com mais calma aquilo em que se sente "em casa". Minha décadas foram os anos 80, 90, 2000 e 2010. Uma pena. O tempo que os deuses me deram não foi dos mais ricos. Interessante sim, rico, não. --------------- O momento mais importante desses quarenta anos foi a queda do muro de Berlin. E disso não há dívida alguma. O grande avanço da ciência foi a internet. Imenso avanço. Mas me parece que se eu fosse vinte anos mais velho eu poderia dizer que a chegada do homem à Lua e a televisão eram os tais momentos top. A geração do meu pai, as décadas dele foram os anos 40, 50, 60 e 70, foi mais dramática. Para eles o maior momento foi a bomba sobre o Japão. E o avanço da ciência, a invenção dos antibióticos. Mas é de arte que vou falar, e sem saudosismo, digo que pra minha geração a coisa foi de uma pobreza extrema. --------------------- Qual o grande escritor que escreveu seus mais importantes livros entre 1980-2019? Difícil né? Existem dezenas de bons escritores. Dezenas. Li nesses anos muito contemporâneos. Gente boa como Cees Noteboom, Le Clézio ou Transtromer. Há muito mais. Mas o único que me impressionou como gênio, que eu colocaria na altura de Nabokov, Saul Bellow ou Kawabata, é o alemão Sebald. Em seus livros topamos com a inteligência criativa que faz de um ótimo escritor um ser genial. Não há mais ninguém desse naipe. Temo que no futuro algum idiota diga que minhas décadas foram as de Saramago ou Mia Couto. Jamais! Se a inteligência ainda existir em 2050, meu tempo será de Sebald. ------------------ Já o tempo de meu pai foi de Nabokov, Bellow, Murdoch e Greene. E de um monte de poetas eternos. Não citarei mais seu tempo. Deixe meu pai em paz. ( Ele nasceu em 1926 e se foi em 2008 ). ---------------------- De 1980 até 2019 vários diretores de cinema tiveram auges de cinco ou dez anos e depois se foram. Infelizmente sou obrigado a dizer que Spielberg é o único que esteve no topo por todo esse tempo. Scorsese vem perto. E é só. Não me diga que Bergman ou Kurosawa fizeram ainda grandes filmes em 1983 ou 1985. Suas obras são dos anos 40 até os anos 80. Falo de quem se fez nos anos 80 em diante. Não há muito o que olhar. Adoro Eastwood, mas ele não é um gênio. Adoro Tarantino ou os Coen, mas eles são terrivelmente irregulares. Em 2050 dirão, se ainda houver algo parecido com cinema, aquela foi a época de Spielberg. ------------------ Não dirão ter sido, minha época, a era do jazz e nem a do rock. Todos pensarão que todo mundo ouvia rap. Voce pode me dizer que Basquiat ou Bacon ou Freud foram os artistas plásticos deste tempo. Mas há aí um problema que já se fazia sentir em 1960-1970 e que hoje se hiper amplificou: o mundo tem tanta imagem, tanta foto, gravação, reprodução, cópia, colagem, edição, que nenhum artista que lide com imagem conseguirá ser o retratista de uma época. Não haverá o Klimt de 1990 ou o Matisse de 2006. Em 2050 pouco valor se dará a qualquer foto ou pintura de 2020. Pois tudo será demasiado. ------------------------- Queda do muro, torres gêmeas e a tal Pandemia. Mais nada. Quedas. Três quedas. A invenção da internet e sua popularização. Observe: é uma invenção que não é criada para salvar vidas ou alimentar o mundo. É informação e diversão. Pobre por si mesma. E anuncia mais algumas quedas: jornais. Grandes redes de midia. Meu tempo será lembrado como época de muitos finais. ----------------------- A geração de meu pai sofreu mais. Mas me parece que também sonhou mais e fez mais. Não há progresso real e coragem inovadora em sociedades bem alimentadas. A fome nos faz desejar e tentar. Minha época teve estômagos cheios como nunca antes na história do mundo. E desejos futeis. Tripa cheia esvazia o cérebro. É isso aí.

FLORESTA ESCURA - NICOLE KRAUSS

   Ele começa com uma citação de Kafka. Aquela que diz que nunca saímos do Eden. Que na verdade somos incapazes de perceber isso por não termos comido da árvore do conhecimento. Começo então a leitura.
   São duas histórias que se movem de forma paralela. Uma, em terceira pessoa, conta a história do milionário Friedmann, um advogado que aos 65 anos doa todos os seus bens e despojado, ruma à Tel Aviv. Lá ele se envolve com um rabino meio fajuto, uma produção de cinema caótica e planta uma floresta em homenagem aos pais mortos. A outra história, em primeira pessoa, fala de uma escritora chamada Nicole, que foge do casamento e dos dois filhos, indo à Israel se hospedar no Hilton, onde ficava em sua infância, à procura de seu duplo, seu outro eu que vive no mundo "à parte". Ela é contatada por um ex professor velho que lhe envolve na caça aos papéis perdidos de Kafka. Isolada no deserto, ela renasce. Ou não.
  Nicole Krauss é ainda jovem e é considerada uma das maiores promessas das letras americanas. Judia, o romance tem por tema as obsessões judaicas: o duplo, o renascimento, a culpa, o deserto, o desterro, Davi, a escrita. Não só por colocar duas fotos em meio ao texto, fotos que servem para "provar" a verdade de uma coisa ou de um lugar; seu estilo me lembra Sebald, o genial autor alemão. Como Sebald, Nicole mistura personagens de ficção com outros históricos, narrativas inventadas com fatos comprovados, e faz com que não saibamos, às vezes, se aquilo que lemos é romance ou história, invenção ou jornalismo, mentira ou verdade. Sebald é mais radical. Ele realmente nos faz ficar em dúvida todo o tempo. Krauss pega mais leve. Ela é menos histórica e mais íntima. Nicole é Nicole Krauss?
  Essa literatura do diáfano, do confuso, esse mix de invenção e pesquisa, de fato e ficção, é a coisa mais fascinante que se escreve hoje. É retrato de um mundo que sabe muito e por isso sente não ter certeza de nada. Onde o que é pode ser mais, e o que não é pode vir a ser. Onde tudo é uma possibilidade. Inclusive a não possibilidade de tudo.

OS EMIGRANTES - WG SEBALD

   Sebald morreu em um acidente de carro. Em 2001. Estava no auge de sua carreira. Foi professor em Cambridge. Nasceu em 1943, na Alemanha. Difícil escrever sobre um livro tão melancólico e tão bonito. Vou recomeçar.
   Sebald escreve quatro relatos. Nesses quatro relatos, de quatro pessoas e quatro famílias que não se conhecem, surgem pistas: Em todas surge um caçador de borboletas. E nós sabemos que ele é Nabokov. Por que será que Sebald usa Nabokov?
   Errado eu ter começado assim este texto! Vai parecer que o livro é sobre o autor russo e não é! Longe disso! Ele só aparece um duas breves linhas, sem fala nem nada. Sebald e Nabokov nada têm em comum mas tudo rimam entre si. Ambos são exilados. Nabokov por imposição histórica, Sebald por não aceitar seu país. Ambos têm saudade.
  A Alemanha era uma nação de judeus. Isso ninguém tem coragem de lembrar. Os nomes judaicos estavam por toda parte: Mannemann, Lubock, Goldstein, Heine...Os nazistas destruíram esse passado e assim mataram a alma alemã. Mas o livro não é sobre a guerra nem sobre os judeus. Mas no fundo, lá no fundo, é sim...
  O livro fala sobre o campo: a Suíça, as montanhas, a alegria de viver no silêncio, no alto, no espaço amplo. Fala sobre a história de Manchester, sobre a feiura, sobre a industrialização. Narra a decadência da Inglaterra.
  Será que voce nunca leu Sebald? Sua falha é imperdoável! Voce não sabe que seus livros são ficção biográfica. Ele enreda várias histórias com fatos históricos, enfeita as páginas com fotos pessoais e íntimas. Voce lê e não sabe o que é biografia e o que é ficção.
  Ler Sebald é tomar contato com o melhor tipo de romance possível após os anos 60. O romance que mistura fato e invenção, foto e texto, passado distante e presente vago. E Sebald escreve como música. O texto é sonata de piano. O texto é também uma imagem congelada: O momento em que voce abre os olhos. A primeira chuva e o primeiro inverno.
  Muitos escritores eu admiro, poucos eu gostaria de ter como amigo. Sebald é um deles.

EDMUND DE WAAL, JUDEUS, CHARLATANS E RICHARDSON...

   Nem tudo está perdido! Alvíssaras! Edmund de Waal, o mais chique dos escritores vivos, lança livro novo! Sai pela Intrínseca PORCELANA. Edição bonita, vou comprar, vou ler e vou comentar.
  Lindas essas famílias judias tradicionais passeando pelas ruas. Elas me lembram a firmeza de fé e de caráter que foi o comum um dia. Depois fomos obrigados a ser "criativos", "livres", "originais".
  Em Wembley, na final da Cup, tocam Charlatans no intervalo.
  Sai em banca de jornal Pamela, de Samuel Richardson, um clássico famoso por ser chato. De 1740, ele inaugura, segundo meu professor favorito, o romance no ocidente. São 500 páginas sobre a tentativa de sedução de uma governanta por um sir. O romance é para mulheres. Todo romance foi para mulheres. Eram elas que tinham tempo para ler. As ricas.
  Mulheres da elite são todas parecidas. Os cabeleireiros e as maquiagens fazem com que todas tenham a mesma cara. Um rosto escovado, claro, fino, com o cabelinho flutuando ao redor. Num café, ruim e caro, uma delas diz: "Só loser olha para trás. O que passou tem de ser eliminado. Eu só olho pra frente."
  Mas não se assanhe. Mulheres da Vila Madalena são mais iguais ainda.
  Sebald tem livro editado agora. Ele diz que, ao contrário da Inglaterra e da França, onde todos os costumes e toda história foi mantida, a Alemanha é um país sem passado. O nazismo fez com que a velha Alemanha, o país de antes de 1936, desaparecesse.
  Não se editam mais livros de poesia. Mal sinal.

LINHA M - PATTI SMITH

   O livro tem fotos espalhadas pelos capítulos curtos. Fotos em preto e branco, bem comuns. Isso logo me lembrou os livros do Sebald. E Patti em certa altura fala do Sebald. Ela lê o alemão genial. Assim como lê ou leu Bronte, Paul Bowles, Nabokov, Genet, Camus, Plath, Harukami... e toma café. Baldes de café em cafeterias mundo afora.
  O livro fala de café. De bancos ao canto em cafeterias. De café bem tirado. Quente. Patti pensa. Ela está com 66 anos e bem só. Fred Sonic morreu faz 20 anos. Os filhos cresceram. Ela vive com gatos e livros. Ela escreve sobre Fred, sobre os livros que ama. E café.
  Viaja ao México. Vai pra Europa. Faz palestras. No Japão visita túmulos. Vai ao de Kurosawa e de Ozu. Limpa túmulos. Patti sente os espíritos. Mas não consegue sentir Fred, seu morto.
  Ela é doida por séries policiais na TV. Killing. CSI. E Dr. Who. Não se fala de música neste livro. Se fala do dia a dia, banal e irreal, de uma senhora que envelhece.
  Tanta coisa em comum entre eu e ela... o café, Kurosawa, Ozu, Sebald, os livros ( ok....50% dos livros ), a mania de tirar fotos de coisas que ninguém liga. E esse amor aos que partiram, aos ausentes, aos distantes.
  Ela diz que vivemos cercados de intrusos e que amamos aqueles que são os não presentes...
  É um livro de tardes de chuva.

OS ANÉIS DE SATURNO- W.G.SEBALD

Se a modernidade/contemporaniedade se mostra via fragmentação ( e também por um sentido que nunca se apreende ), o alemão Sebald é um hiper-radical moderno. Fragmento e sentido escapável, é isso que define seu texto. Seus livros parecem começar pelo meio e não têm "um fim". Histórias são desvendadas dentro de outras histórias, tudo é biográfico, tudo é mundo real. E nada, absolutamente nada parece fazer sentido. A falta de rumo e de objetivo é a única realidade.
Enquanto Sebald vaga pelo leste da Inglaterra, e fala percebendo e testemunhando, da terrível decadencia que se faz em toda parte ( antigas mansões abandonadas, monumentos partidos, praias desertas, bosques doentios, animais em fuga, pessoas flácidas ), ele nos conta fatos que remetem a lembranças e recordam cenas que trazem em sí novos assuntos.
A vida de Joseph Conrad na Polonia, a fuga para a Inglaterra, a vida como marinheiro e por fim sua carreira como um dos maiores autores "ingleses" do século. Conrad esteve no Congo em 1890, pensou ter visto lá todo o inferno possível, e foge em crise para a Europa. Essa história faz com que Sebald fale do livro Coração das Trevas e da exploração do Congo pelo rei belga, Leopoldo. Toda a riquesa da Europa como riquesa da escravidão, do suor, da morte e do furto. Quinhentos mil negros congoleses morrendo por ano, na exploração escrava dos minérios africanos. Negros trabalhando em minas, 18 horas por dia, caindo ao chão e sendo substituidos por mais negros. Hecatombe pior que o holocausto, que o gulag soviético. E isso traz a Sebald a história de Roger Casement ( pois é, ele é o personagem do novo livro de Vargas Llosa ), um irlandês que denunciou o reino belga e que de herói britânico ( paladino do bom mocismo inglês ) passou a pária e foi executado. Isso por ser homossexual e por apoiar a revolução irlandesa.
E Sebald segue incansável. Descreve as faixas de areia onde castelos desapareceram no mar, fala da feiura da Bélgica e do desconforto na Holanda. Fala de Chateaubriand, a familia nobre, que vivia em palácio do tamanho de um bairro e que fugiu da revolução. Na Inglaterra ele se apaixona e não se pode casar por ter esposa na França. Passa a escrever um longo diário que lhe dará fama universal. E tudo ele coloca nesse diário: botânica, poesia, ciência, história, guerras, filosofia... Vida longa, vida escrita.
Já ao quase fim do livro, Sebald fala da criação de bichos da seda e da deterioração das árvores na Europa. O modo assustador como todos os bosques estão expostos aos incêndios, árvores atacadas por vírus, espécies desaparecendo. Amanhecer sem pássaros. Séculos, milênios de devastação. Solo completamente esgotado. Sebald fala do Brasil, país que vive agora a devastação que a Europa viveu no século XVIII. ( No caso europeu a devastação do século XVIII foi a mais recente e derradeira ).
Sebald não enrola. Para ele estamos no começo do apodrecimento. Somos sombras de tempo que está encerrado. Vivemos em sala de espera, com belas distrações, mas É uma sala de espera. O sentido se partiu, a desilusão foi vivida e como acontece na vida particular de cada um de nós, quando se perde a confiança não se pode mais revivê-la ( apenas como farsa ).
Longe de ser a obra-prima que é AUSTERLITZ, este é um terrível legado de um dos autores que mais interessam.

HOUELLEBECQ, O ÚNICO

Michel Houellebecq é o cara. É o único escritor que realmente escreve sobre aquilo que o mundo é agora. Seu mundo é meu.
Para ele, nós apenas comemos, dormimos, transamos, trabalhamos e morremos. Mais nada. É um mundo sem heróis, sem deuses, sem qualquer transcendencia, reduzido ao nada.
Saiu um texto sobre ele na Folha de 3/10. Eu conheci Michel através de Iggy Pop. Sim, Iggy gravou um disco inteiro sobre Houellebecq. Iggy pensa ser ele o cara. Em mundo cada vez mais árido e vazio, só podia ser um francês o cronista deste tempo de mierda.
Partículas Elementares e A Possibilidade de Uma Ilha. São seus livros ( por enquanto ). Não se engane, voce vai ouvir falar muito dele ainda.
Mas não pense que eu o considere Grande.
Não lava os pés de Saul Bellow ou de Sebald. Mas o problema é que Sebald e Bellow estão mortos. Assim como Updike. Dos vivos, Le Clezio tem um estilo melhor, Roth é mais elaborado e criativo, e Coetzee é muito mais "escritor". Perto desses caras, Michel é tosco.
Porém é sua a escrita do século que nasce e já está gasto. A ruindade de Houellebecq é a ruindade da França/Europa/Terra de agora-já. Um desencantado fedendo a fumaça e a calor sudorífico. A água evapora, e com ela a poesia. Abrimos mão de tudo o que é subjetivo. A alma se vai com isso.
É tempo de Michel Houellebecq.

AUSTERLITZ - W.G. SEBALD

Dois meses atrás, mais ou menos, lí e comentei outro livro de Sebald, "Vertigem". Contei que o descobri numa muito entusiástica coluna de Marcelo Coelho em que ele dizia ser o autor alemão " o único grande autor da atualidade ". Com este segundo livro que leio, "Austerlitz", descubro, afinal, o porquê de tão grande conceito. Sebald é gigantesco. Em tempos de formigas que escrevem sobre seu diminuto umbigo, Sebald alça vôo e encara de frente o cosmos da existência. Ele é o autor central dos últimos trinta anos, talvez quarenta. Pode ser colocado ao lado de Thomas Mann ou de T.S. Eliot como antena de seu tempo, autor de uma preciosa radiografia de nossa alma.
O livro tem fotos que ampliam a narrativa e não tem nenhum parágrafo. Um homem, Austerlitz, conta ao autor, em encontros esparçados, em Paris, em Londres, em Praga, sua história, a história de sua família, a história da Europa, a nossa história ocidental. Pois sutilmente percebemos que Austerlitz é a consciência européia, a alma do ocidente. E assim, cada paisagem encontrada, cada nome citado, cada viagem feita é uma epopéia, uma odisséia, uma guerra e uma paz. Tudo vai se encaixando como um vitral : Napoleão, Aldous Huxley, Evelyn Waugh, O País de Gales, a feiúra belga, o colonialismo, Fred Astaire, Bergman, Alain Resnais, os mochileiros, Balzac, cemitérios, museus, estações de trem, metrô, judaísmo, memória, tempo, morte, mariposas, escadas, bibliotecas, guerras e mais guerras... Na narração não existe tempo. Sebald não crê no tempo. Para ele, passado, presente e futuro estão todos vivos aqui, agora, e para sempre.
Não pense que o livro cheira a lição de história. A narrativa é muito íntima, pessoal, discreta. Você precisa pescar os significados maiores, interagir com o autor, trabalhar e se tornar ativo. Se você nada souber sobre a história ( não é vergonha, você é apenas uma vítima, diz o livro ), mesmo assim Sebald o impressionará. Seu estilo, uma espécie de Proust da era insensível, é hipnótico, possui uma voz de sonho, de delírio e de pesadelo. Sebald consegue unir Proust à Kafka, Mann à Joyce. Um mestre. Austerlitz é um labirinto.
Toda a peregrinação sem rumo de Austerlitz ( ele é um mochileiro ) se revela uma cega busca pela memória. Austerlitz tem sintomas. Ansiedade e uma sensação de não existir, vaga e cada vez mais insistente. Existem lapsos em sua mente, coisas que ele não quer encarar. Austerlitz luta contra sua memória. Austerlitz quer esquecer. Ele quer não-ser.
Mas o seu legado lhe assombra em fotos, em quase-recordações, em revelações. E ele persevera. Precisa remendar sua alma, unir o que foi rompido, olhar as chagas para poder superá-las. Austerlitz precisa existir. Nós vamos com ele. Árdua jornada. O livro é um poço.
A Europa que nos é mostrada é casa de horror. Gente em constante mudança, desenraizada, sem identidade, com suas paisagens virtuais, sua Novaiorquisação, seu histérico pavor de tudo o que é real. Pois os europeus vivem, ainda e para sempre, a loucura da segunda-guerra, o gueto em que se tornou o continente, confinados em hiper-funcionais zoos, com sua racionalidade falível, fugindo de tudo que lhes desperte a memória, fugindo e se imbecilizando, se acovardando mais e mais, sendo vaquinhas em fazendinhas alemãs, sendo anti-literatos em Paris, sendo mortos-vivos em Praga, sendo fantasmas em Gales. Mariposas secas. A Europa é um quadro de borboletas secas.
Sebald é católico. Não é mais um autor judeu nos recordando o holocausto. Ele vê esse crime, um crime que define tudo o que somos e seremos, não como vítima direta, mas como alguém que paga pelo erro cometido. O homem chegou a um nível tão hediondo de maldade pura, produziu um pesadelo tão perfeito, tão racionalmente bem feito, revelou-se possuidor de um instinto tão destruidor e sádico, que nunca mais poderemos olhar para nosso ser com a inocência que havia até antes dessa trágica noite. Somos, todos nós, espectros que nasceram nesse mundo assombrado. Não podemos olhar para trás. O medo nos paralisa. Derrubamos tudo o que é passado. Fazemos de novo. Negamos e interiorizamos. Neurotizamos e transformamos em sintoma. Fugimos da terapia.
Negando 1939, matamos 1900, 1870, todo o passado. A bela Europa se vai. Para não encarar o trauma, perversamente, matamos tudo de melhor também. Austerlitz esqueceu ser judeu. Esqueceu ter nascido em Praga. Esqueceu seu pai verdadeiro. Austerlitz anda de mochila, sem rumo, mundo afora. Nada constrói, nada deixará, seus passos não se gravam no solo. Austerlitz ao não rememorar deixa de existir. A Europa é uma sombra. E nós, ocidentais, nos guiamos por fumaça. Tudo que nos encanta é ilusão. Nossos passos não ecoam. Ninguém lembrará desta geração. Nossa época será vergonha do futuro. Treva medieval. Sebald descreve a arquitetura européia com detalhes que nos fazem tremer. Seu olhar pode dissecar tudo. O amor nesse mundo é apenas um consolo. Tornou-se um ambulatório. Amamos para esquecer quem somos. Tudo neste mundo é esquecimento. O amor que foi fonte de coragem tornou-se usina de covardia. Quem ama deseja nada sentir. Viver no colinho quente. Entregar sua vida a outro. Deixar de ser.
Sebald morreu em 2001, acidente de carro. Um homem com tal mente ter encontrado a morte na estrada é de uma assustadora coerência. Foi um quase-gênio. Num mundo que detesta toda originalidade ser um quase é o máximo a que se pode chegar. O futuro esquecerá nossa medíocre arquitetura, nossa futil música e nossos livros umbigos. Mas se lembrará de Sebald e deste livro. Seu nome sobreviverá.

vertigem- W G Sebald

Ele começa falando de Stendhal. Mas não se alegre. O estilo de Sebald não tem nada da acariciante fluidez de Stendhal. Sebald recorda a experiência do Stendhal viajante : no exército de Napoleão, tendo presenciado a travessia dos Alpes e o massacre : 50.000 soldados e 20.000 cavalos mortos, estropiados, espalhados pelo campo cheio de aves os devorando. Stendhal começa a escrever a partir daí.
No meio do livro Sebald recorda outra viagem : a de Kafka pelo norte da Itália/ sul da Austria. Uma viagem feita de horror e de alegria fugaz.
Sebald, narrador desencantado, refaz a viagem dos dois grandes escritores: Viena, Trieste, Innsbruck, Veneza, Riva, Verona e muito mais. Termina indo à W. cidade onde nasceu. Sua maior emoção é ver um afresco de Giotto, meio escondido numa capela de Pádua. Para ele, é a coisa mais bela que pode ser concebida pelo homem.
Decepções ele tem todas. O percurso é feito sem motivo algum. Ele vai zanzando de lá para cá, à toa, sem rumo, sem objetivo. Não há razão em se ir, não há motivo para parar. Tudo lhe decepciona, pior que isso : nada é realmente visto. Seus contatos com as pessoas são muito superficiais, sem brilho, amorfos. Ele pensa bastante, diz escrever, mas parece extremamente estéril.
Assim é o primeiro livro de W G Sebald, autor falecido precocemente nos anos 90 e que é chamado por alguns de "único autor contemporâneo que vale a pena." Vale ? Sem dúvida vale. É provávelmente o mais perfeito retrato deste início de século XXI. Uma pessoa em eterno movimento, ansiosa todo o tempo e que na verdade anda apenas para não ficar parada.
O estilo em que o livro é escrito é o estilo digital : nervoso, curto, parágrafos muito longos com pontuação arbitrária. Muita idéia em pouco texto. Parece escrito a pauladas. Mais anti Henry James é impossível : James escreve às pinceladas.
Sebald ficará. É original em seu tédio angustioso. É entediado mas não entedia. Complexo, porém, compreensível. Labiríntico.
Ao fim, na cidade de W., o narrador descobre um segredo. Que sua infância nunca existiu. Que aquilo que foi vivido não pode ser sequer recordado. Estamos presos a não-memória, a não-história. Nada mais interessa, nada mais surpreende, nada mais acontece de definitivo. Esse é o norte de sua viagem. Isso é que o faz andar: existir, hoje, não é pensar. Não é sequer fazer ou viver. Existir é se mover.

urbanidade: amor-paixão

Logo no início de Vertigem, livro de WG Sebald, há um pensamento bastante forte : a paixão é a necessidade daqueles que perderam o contato com a natureza. O estar apaixonado e o ato sexual são o que lhes restou de natural.
Não por acaso, a revolução industrial e o surgimento das grandes cidades, coincidem com o movimento romântico. Acuado, o Eu-natural se infla de sentimento, hiper-valoriza o amor-romântico, se mira no próprio coração. Para o homem ligado à vida natural, vivendo seus instintos básicos, paixão-amor é um sentimento que existe, é importante, mas não é tudo. Nada de love is all.
Há em primeiro lugar a luta pela sobrevivência. E essa feroz luta, dá a esse homem o contato com a natureza : partos, doenças ( sarampo, catapora, escarlatina, febres, tifo ), caças, guerras, fome, medo. Felizmente estamos distantes da época em que se morria de gripe aos 30 anos. Mas não devíamos ter jogado tudo ao lixo. O bom e o ruim. Nos livramos das doenças ( algumas ), da fome ( quase ), das guerras ( se tornaram virtuais ), mas jogamos fora também a aventura de viver, a liberdade, o sentido de sagrado, de se fazer parte de algo que sobreviverá para sempre, o sentimento de se maravilhar, o êxtase.
Procuramos tudo isso na paixão por alguém. Ela nos dará a fé de volta. Nos inspirará, nos dará coragem e liberdade, nos religará à vida e ao eterno. Nos deixará maiores. Que tragédia ! Ninguém conseguirá fazer tanto! Iremos nos sentir enganados, traídos, perdidos.
Ninguém será Keats por estar apaixonado.
Tentamos ver no sexo a animalidade, o prazer, o êxtase que toda uma complexa vida de instinto natural e solto nos proporcionava. Sexo é ótimo. Mas não é cura e razão de todo mal. Voce pode ser infeliz tendo todo o sexo do mundo, e feliz sem qualquer vida sexual. Que embaraço né ? Não é a idéia que nos é vendida.
Então, quando notamos, afinal, que o amor não nos trouxe de volta a inocência da infância, a inspiração da poesia, a liberdade da natureza; nos amarguramos, nos tornamos cínicos, culpando o próprio amor de um erro que não foi dele. E quando sentimos que por mais que façamos sexo, continuamos ansiosos, tristes e perdidos, culpamos nossas escolhas, e tentamos mais sexo, mais variações, mais loucuras.
O irônico é que das grandes emoções básicas do homem, vivemos hoje as mais negativas. Medo, raiva, desespero, cobiça. Perdemos o contato com o sublime, a nobreza, o auto-sacrifício, o êxtase dionisíaco, a catarse, a epifania. São sentimentos básicos. São anacrônicos como o bisão e o albatroz. Procuramos encontrar no amor tudo o que perdemos : o bisão e o albatroz. Encontramos um gatinho.