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O EGOÍSTA - GEORGE MEREDITH...ESSA COISA TÃO INGLESA...

   Há um capítulo, neste longo romance, em que se homenageia o vinho do Porto. Odes e belas frases são ditas à esse vinho, o favorito pelos homens de gosto. E o único que melhora com o tempo. Por isso, é um vinho "conservador". Lendo esse ótimo capítulo tomos consciência de que o Porto é um símbolo da velha e alegre Inglaterra, símbolo tão forte como o fog. o guarda-chuva, a pontualidade, o chá e o livro de mistério. Outra ideia vem em sequência: o romance, em que pese a birra dos franceses, é também uma coisa bem "velha Inglaterra".
   Aprendi com professores menos francófilos, que o romance foi inventado na Inglaterra do século XVIII e que Robinson Crusoe é o livro que dá forma àquilo que se produz até hoje. O romance é pensado como passatempo para pessoas razoavelmente instruídas ( as bem instruídas leriam poesia ), com tempo livre e algum dinheiro. Isso se mantém ainda, talvez hoje com o adendo de que o romance deve ter "alguma utilidade". Bem....lendo um romance como este, escrito pelo popular George Meredith, autor de fins do século XIX, sentimos como esse ato cotidiano de ler um longo romance se mescla ao estilo de vida britânico caseiro e conservador. Pois é nesse tempo, o vitoriano, que se instaura a noção do "Home sweet Home", o lar como castelo do homem e da mulher, paraíso a ser herdado pelos filhos, fortaleza contra o mundo hostil. É nesse mundo, de charutos, lareira e bibelôs, de biblioteca e sofás de couro, que se faz a cisão entre mundo de fora e mundo de dentro. Sentar-se à janela, confortavelmente, com um cão aos pés, lendo Meredith, ou Hardy, ou Doyle, é fazer parte desse lar vitoriano. Esse mundo, destruído na precariedade do mundo mutável de hoje, ainda respira na lembrança de filmes históricos e em novas ondas tipo Harry Potter e que tais.
  Dito isso, O Egoísta é uma crítica ao tipo de dono de terras de nariz empinado, autoconfiante, duro, compenetrado. Um deles se torna noivo de uma linda moça, Clara, e descrê que ela possa não o amar e o obedecer. Mas Clara percebe sua vaidade, seu egoísmo, sua pose e tenta desfazer esse noivado. Clara, personagem que lembra as heroína de Henry James, é uma proto feminista. Quer ser livre. Livre para viver. O romance, todo ambientado nas terras do egoísta, é a história desse jogo de pensamentos e interesses, medos e vaidades. Meredith, profissional, competente, se dá um trabalho e o cumpre. Mostra à classe média o limite afetivo da classe alta. É uma delicia de leitura.

EMILY BRONTE NASCEU HOJE.

   Emily Bronte nasceu hoje. E isso significa muito. Com ela se cristaliza todo o espírito gótico. Sim, existem fantasmas. Acho que foi Huxley quem disse isso. Que hoje os chamamos de intuição, inspiração, pressentimento, é a mesma coisa. Nas sombras noturnas moram sensações. Só aquele com espírito de concreto não percebe.
   Conheço algumas jovens irmãs Bronte. Elas fazem parte da irmandade sem o saber. Não importa que não saibam, elas mantém a coisa viva neste mundo. Sua alma é povoada de pó, de medos, de desejos irrealizáveis, de lembranças, de coisas escuras e úmidas.
  Heathcliff viu a face de Catherine na janela. E lá fora havia lama, chuva, rochas e árvores doentes. Ele berrou por ela na janela quebrada. Ele rasgou suas mãos no vidro. Ele a queria. Tudo nele era desejo e tudo nele ansiava pelo vazio. É um romance perigoso. Você pode morrer ou enlouquecer com ele.
  Eu adoraria ver o túmulo de Emily. E deixar lá uma flor e uma fotografia. A flor vermelha e a foto não sei do que. Eu adoraria saber que Emily é feliz. Do modo dela. Em outro mundo.
  O espírito de Whutering Heights ( O Morro dos Ventos Uivantes ) se mantém de pé em centenas de manifestações artísticas deste século. Nos filmes góticos. Nos discos tristes. Nas roupas pretas e roxas. Nos versos desesperançados. Porque Heathcliff a perdeu duas vezes: Por ser de outra raça, e depois por ser vivo.
  Kate Bush, que ironia, faz aniversário no mesmo dia que ela.
  E as duas são de leão. Esse signo que é vida e sol, e ao mesmo tempo chora por saber que o ideal é fora deste mundo. O amor respira onde nunca se está.
  Emily, como suas irmãs, Charlotte e Anne, foi levada cedo pela tuberculose. Beleza é que ela viva para sempre pelas palavras que deixou. Que ela tenha enfeitiçado um menino que a leu aos 14 anos dentro de um quarto vazio. Ele sonhou com uma Catherine. E assumiu sua condição de Heathcliff. Morte e vida como uma coisa só. Um fio sem ponto, uma corrente de elos sem fim.
 

O FIM DA ESCRITA EM JORNAL SE FAZ COM TEXTOS COMO O DE ONTEM

   Um cara escreveu uma coisa sem pé nem cabeça ontem. Foi tema da decadência da escrita jornalísitica, aula dada hoje. O pseudo-autor começa se lamentando pelo fato de uma guria de 13 anos não ter entendido um doc sobre politica e ter preferido uma fantasia de 007. Bem....Não ocorre ao autor que a guria não entendeu o dito "ótimo doc" simplesmente por não ter prestado atenção. E que sua atenção não foi capturada pelo fato mais óbvio ainda da falta de sedução do dito doc. Tudo bem, eu também me lamento quando um colega se revela insensível a um filme de Dreyer ou de Ozu, mas dái a viajar na maionese vai uma distância imensa. Lamento o fato desse colega viver em mundo que não é o meu e fim de papo. O que faz o dito autor? Tece toda uma teoria, ao mesmo tempo óbvia e ao mesmo tempo forçada, da loucura. O que ele tentou dizer com isso? Que não pensar como ele é ser doido? Ou que o mundo está doido e influencia a adolescente a não saber gostar do doc? Por favor!!! Falta de cultura não´é loucura! E doc ruim, talvez ele seja ruim, não é vitima dos tempos. Ozu e Dreyer se beneficiam de tempos ruins. Hoje eles se destacam com mais facilidade que em 1960. ( Aliás Dreyer era doido ).
 Estou estudando Ian Watt, Locke e Descartes. Metido sou né não? Mas o que importa é que até a época de René e de John, o tempo era ignorado e todos faziam parte de um tudo. Isso se prova na literatura. Um livro era escrito para o sempre. Não porque fosse durar, mas porque tudo era um sempre constante. Ninguém estava interessado em algo passado em 1510 ou em 1610, ninguém queria saber da vida de um Jim Davis ou de um Jean Molin. A vida era o geral, porque tudo era sempre o mesmo para sempre. Dessa forma, se lia sobre Aquiles porque Aquiles continuaria a ser sempre atual. Se escrevia sobre o que era "para sempre" e Aquiles era para sempre. Livros desses tempos falam apenas sobre o que é grande, único, atemporal, geral.
 Com a revolução industrial e a filosofia empírica o tempo nasce. Watt diz algo perfeito: Antes se escrevia para o pastor, agora é para um juri. E o juri quer detalhes, quer crer no que é contado. Detalhes físicos e psicológicos nascem. O relógio e a régua comandam a ação. Jim Davis tem de ser descrito e acreditado. Tudo deve parecer real. Sai-se então do mundo do geral e se chega ao mundo particular. Não se escreve mais um livro sobre o "tudo que há em todos", mas sim sobre "a originalidade de cada um". O caminho do mundo não mais mudou. Cada vez mais nos individuamos em auto-suficiência.
 Digo tudo isso para contar que a loucura em 1600 era aquele que se individualizava e se cria único e fechado em si. A loucura em 2012 é acreditar em ser parte de um cosmos simbólico, delirar e desfazer seu eu em fragmentos multi-facetados. Um homem típico de 1600 na NY de hoje seria trancado. Um homem de 2012 em Roma, 1600, seria enforcado.
 Deu pra sacar?

O VIGÁRIO DE WAKEFIELD- OLIVER GOLDSMITH

   Eu adoro o século XVIII. O romance se tornando dominante ao ser direcionado para a nova classe média. O nascimento daquilo que conhecemos como livraria, best-seller e imprensa cultural. E um espirito de época em que o que sobressaía era o prazer pela discussão, pela análise e pela novidade.
  Do que falavam esses romances? De viagens, de peripécias, de lutas e disputas. O enredo é sempre rico, estamos longe das elaborações do romantismo e dos detalhes do realismo. Não há uma grande preocupação com estilo, o principal é a história. Dessa forma o que temos é ação constante, acontecimentos sobre acontecimentos. A descrição de casas, paisagens ou rostos é secundária.
  Falei que esses livros falam de aventuras e de ambições, na verdade podemos reduzir tudo ao dinheiro. A classe média inglesa de 1770 pensa em renda, em bons casamentos e bons negócios. Por mais que os livros se encham de guerras ou de duelos, é o dinheiro que move a ação.
  Oliver Goldsmith foi um malandro. Viveu sempre de golpes, de expedientes. Torrou a herança da familia e foi levando a vida na lábia. E escrevia bem. Poeta e jornalista, aqui é romancista. Ele fala de um vigário e de sua familia. O vigário é um  ingênuo, as filhas são ambiciosas, a esposa mandona e os filhos obedientes. São explorados por nobre conquistador, azares sobre azares caem sobre a familia, e mesmo assim o vigário se mantém ingênuo, bom, um grande perdoador. As tragédias são tantas que o humor se faz presente. Goldsmith tem aquela verve típica da época. Ele mostra o ridiculo com tintas fortes. E todos são ridiculos, os nobres com suas crueldades e os burgueses com sua adoração aos nobres. O estilo é rápido, as coisas acontecem de repente, sem grandes preparações. Oliver Goldsmith não se detém, ele quer nos divertir e nos instruir. Consegue.
  Um livro é uma coisa maravilhosa. Quando ele é bom, entramos em um mundo quando o abrimos. O século XVIII foi aquele em que o livro tinha a maior consciência de seu poder de criar mundos. Seja na poesia, na filosofia ou no romance, os autores têm pleno poder sobre sua obra. Encaram a escrita como criação de mundo. Pois bem, ao abrir este volume entramos no belo mundo rural da classe média da época. E encaramos o grotesco desse universo de vigarices, pequenos golpes, interesses e fé cambaleante. Um belo livro.

PARA ENTENDER UM ROMANCE, O TEMPO E UM LIVRO

Primeiro a lenda. Começamos a nos tornar civilizados com lendas cantadas à fogueira. Mistura de religião com fato, cantos. Depois os épicos, feitos de heróis que dão orgulho ao povo e ensinam como ser cidadão. E vem a escrita.
Revelador o fato de que começamos pela poesia. É em verso que nossa consciência se revela ( ou inconsciência? ). Poesia que fala de deuses, depois de história e só então se cria o Ego.
O ego se firma e reafirma no drama teatral. No palco nós vemos o outro e tomamos ciência de nós-único. E muito tempo depois, a poesia provençal terminará o trabalho, nos dando a certeza de que o ego é feito para o amor.
Observe: já estamos em Dante, cinco mil anos de cultura ocidental, e nada de romance. Escreve-se poesia, filosofia, história, lenda, canção, conto picaresco, mas o romance como o conhecemos, não.
Vem a prosa, Boccaccio e depois Cervantes. Mas não são romances. A trama não é romanesca, os personagens não evoluem, a ação não leva adiante, resumindo: o tempo ainda não é linear.
Lendo o Quixote, o Decameron ou Canterbury Tales, percebemos que a história narrada não vai adiante, não corre. Os personagens nascem como se "fora do tempo". As coisas não mudam, acontecem aventuras, mas nada anda. Não é o romance. Mas é a prosa. Prosa com alma de poesia, atemporal. Quase nada é descrito, as coisas estão e permanecem como são.
Mas, na Inglaterra, por volta de 1740, textos começam a falar de homens que nascem e se modificam ao correr do enredo. Não se escreve sobre um herói extra-temporal, se conta uma linear saga no tempo. Começo-meio e fim. Personagens e ambiente. Forças sociais. Tempo que tudo modifica. Robinson Crusoe, Tom Jones, Clarissa. Defoe, Fielding e Richardson, no centro do capitalismo nasce o romance.
A paisagem muda sem cessar. As relações mudam. As cidades matam o atemporal. Os recantos familiares são destruídos. O homem se torna cão sem dono. O romance procura dar um sentido a esse terremoto. Ele dá linearidade ao que é irracional.
O século XIX é o auge do romance. E não por acaso é também o auge da ilusão racionalista. A maestria do romance mora toda neste século ( como também, e não por acaso, o apogeu da sinfonia ). Flaubert, Balzac e Stendhal na França; Eça e Camilo em Portugal; Hawthorne, Melville e James nos EUA; Turgueniev, Dostoievski e Tolstoi na Rússia; e principalmente Hardy, Dickens, Bronte, Thackeray, Stevenson e essa magistral Eliot na Inglaterra.
Tudo o que entendemos por "um bom livro" reside nesses autores. De Jonathan Frazen à Naipaul, passando por Harry Potter e Paulo Coelho, o que sentimos ser "um romance" é criado aqui. Bellow, Updike, Amis, Ellroy, todos têm a visão da narrativa como linha no tempo, modificações, personagens que crescem, desfechos.
O pesadelo do século XX desacredita o romance. A dúvida se faz e o sentido se esfacela. Joyce, Proust, Borges, Calvino, Sebald, tentam ir contra a linearidade, o enredo, o tempo. Para eles a questão é: como crer em romances se a vida é irracional? Balela! A vida deles é um romance. Eles escreveram romances sobre alguém que tenta sair do "grande romance do tempo". Falharam. Mas que bela falha!!!!!
Estou lendo George Eliot. Apesar do nome ela é uma mulher. Mary Ann Evans. Muitos a consideram a maior autora inglesa. Concordo. Lê-la é um prazer. Voce mergulha no ambiente, se apaixona pelos personagens e pensa estar vendo a vida mais viva que a própria vida. O segredo do grande romance está aqui: os personagens. Eles devem nos conquistar. Lendo Eliot voce se vê em amores com eles. E há aqui a melhor e mais bela descrição da infância possível.
Quando o mundo chega em George Eliot há um apogeu de uma longa saga. De Homero à Eliot. O que vem depois tem de ser diferente. Porque?
Um professor da USP me disse que após Victor Hugo é impossível para um francês fazer poesia. O fim da rima se deve a incapacidade de se tentar ser melhor que Hugo. Pois é isso. Após George Eliot ( e Tolstoi e Stendhal e Henry James ) é impossível se escrever um romance linear melhor que os deles. O romance se torna então farsa ou crítica, se torna uma outra coisa: best-seller diluidor, crítica modernista ou quebra-cabeça pós-tudo. Mas o grande romance, a história que cria seu próprio universo, e criando dá sentido a vidas sem sentido, esse romance é coisa do século XIX.
É uma benção ainda podermos os ler.