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A DIFICULDADE DE SER - JEAN COCTEAU, ESSE VAIDOSO.

   Jean Cocteau fez dois dos filmes mais belos que já vi: A Bela e a Fera, que é uma aula de clima onírico e de pontuação de drama; e Orfeu, um dos melhores retratos do sonho em filme. Todos os dois brilhantemente fotografados. Mas Cocteau foi mais que isso! Ele foi designer, foi pintor, poeta, coreógrafo. Esteve no centro do furacão, fez obras com Stravinsky, com Satie, Picasso, Nijinski. Foi amigo de todo mundo. Picasso o adorava e não o suportava. Pois bem...
  Mas eis este livrinho e para o bem e para o mal, ele é francês, muito muito francês. Cocteau se olha, se escuta, se pensa, se exilia de si mesmo para estar mais perto de sua sombra. O livro todo é Cocteau e só Cocteau. Eu detesto esse tipo de escrita masturbatória, cega, auto centrada, sofrida, estéril, pouco viril. Cocteau se apaixona pela sintaxe, se deixa seduzir pela própria voz. Fala para si mesmo e no fim do livro confessa: Fez o livrinho para que ao ser lido, por mim, ele, Cocteau, ressuscitasse. Compor um livro tão cheio de Cocteau, que ao ser lido seria como encarnar Cocteau. Ele diz clara e textualmente: Quem o ler será habitado por mim.
  Essa frase é bela e ecoa nela o clima dos filmes de Jean Cocteau. Mas seria melhor se ela tivesse funcionado. Mas não. O livro é apenas um choramingar sem fim. O melhor é quando ele fala de alguém interessante, por exemplo, as linhas em que ele recorda Proust. Essas respiram, são vivas. Quando ele volta a ver apenas seu rosto, o livro cai. Se fecha e asfixia.
  Proust foi ainda mais fechado que Cocteau, mas a escrita de Proust é espírita, somos tomados por seu mundo e ao ler nos transformamos em Marcel Proust. Cocteau quer o mesmo dom: não o possui. E assim, não nos possui.
  O molde é o de Montaigne, se examinar e contar tudo. Mas Montaigne surge em seu vício vaidoso como um sábio, Cocteau é apenas um vaidoso pretensioso. Sei que estou sendo cruel com um talento imenso como é Jean Cocteau, mas acontece que ele representa aquilo que mais odeio na literatura, a vaidade, a auto exposição sem freio, a ausência absoluta de invenção.
  Talvez aos 14 anos eu amasse este livro. Mas não.

O PODER DA ESCRITA

   Uma aula que consegue unir rigor a bom humor, informação e domínio daquilo que se diz. A professora Andréa Daher veio especialmente do Rio para cinco horas de prazer cerebral. É muito bom observar o modo como ela conduz a sala inteira para os lugares e conhecimentos desejados. Segredo do grande mestre, fazer com que os ouvintes sintam o desejo de saber que ela sentiu desde muito antes.
   O tema poderia ser árido, e é, mas a voz leve e clara e o rosto de atriz, expressivo, levam as horas a parecer minutos. O tema é o modo como os textos eram escritos e divulgados no século XVI, textos escritos sobre a Terra de Santa Cruz, vulgarmente chamada de Brasil, textos escritos por portugueses e por franceses, documentos de jesuítas e de capuchinhos, o modo como eles pensavam, o que sentiam, como a Europa nos percebia.
   A professora Daher, pesquisando na França, onde viveu décadas, mostra gravuras e textos de franceses que levaram tupinambás para Paris. Índios brasileiros, cruzando o oceano e aportando na Europa, conhecendo o rei Luis, aprendendo modos franceses, usando roupas complicadas, sendo exibidos em palácios. Tudo isso com o fim de provar que Tupinambás tinham uma alma e que por terem alma podiam ser civilizados. 
   Montaigne não concordava com isso, mas Rousseau, séculos depois, usará esses brasileiros para criar o tal do bom selvagem.  O Brasil não nasce aí. Não nasce com esses frades franceses, huguenotes, ou com os jesuítas. Daher fala que a história é feita por dinheiro e escrita, pelas letras. A Itália existia antes de Dante, mas é a Comédia Divina que a faz tomar consciência de si e começar a se historiar. É sempre uma escrita que inscreve o país ao mundo. Nos EUA foi a constituição, na Inglaterra foi Bacon e na Espanha o Quixote. E nós? 
   O Brasil começa se ver como um país apenas no século XVIII. O parto durou três séculos, três longos séculos em que este espaço era uma terra `a procura de quem a amasse. De quem a tomasse nas mãos como nação e não como passagem. Três séculos em que aqui era um caminho, um meio e jamais um fim. O fim era Lisboa, o fim era Paris.
   Em sua aula, que engloba o time do Flamengo, os paulistas, monstros em São Vicente e a beleza da imaginação, ela consegue nos passar seu amor as letras, a palavra dita, impressa, cantada, pensada, levada. O amor ao livro velho, ao texto esquecido, raro, perdido, incompleto. 
   A vida é imaginação. A vida é ficção. Texto, e todo texto é imaginação.
   PS: Já no pós aula ela lembra que nos anos 80, nessas listas mentirosas de livros mais lidos ( mentirosa porque não há como saber se eles foram realmente lidos ), no Rio o mais lido foi durante meses o Ulysses, de James Joyce. Livro segundo ela ilegível. Como isso então? Bem, ela lembra que nos anos 80, época de pose, era chique ir à praia com um livro debaixo do braço. Milan Kundera era Ok, Umberto Eco, legal, Joyce era o máximo!
   Risos? Sim, risos, mas isso demonstra o poder que um livro tem mesmo entre aqueles que não o abrem.
    Aplausos.

AMOR E AMIZADE- ALLAN BLOOM

   O livro saiu no Brasil em 1996, então não sei se será fácil de achar. Mas procure, é muito bom. Allan Bloom é muito melhor que Harold Bloom ( sem parentesco ). Ele amplia o tema, abrange filosofia, história, arte e sexo. Professor de politica em Yale, morreu em 1993 ainda jovem. O livro fala de erotismo, da sua presença na obra de 4 grandes romancistas ( Flaubert, Tolstoi, Jane Austen e Stendhal ), na filosofia de Rousseau, no teatro de Shakespeare e na vida de Montaigne, Sócrates e Platão. Em posts abaixo falo sobre alguns de seus capítulos. Mas nada pode se comparar aos capítulos finais, textos sobre Sócrates, Montaigne e a belíssima conclusão final do próprio autor.`Dificil citar algum trecho, seu pensamento é construído de forma tão engenhosa que fica impossível destacar algum trecho sem destruir a clareza do que é transmitido.
   Para Bloom, a amizade é alma falando com alma. O amor é a carne se transformando em alma. Amizade é voz e ouvido, amor é olho. Impossível amar sem a participação da beleza física, a amizade esquece a aparência. Quanto maior a participação da alma maior o erotismo no amor e nele existe o amado e o amante, na amizade só há amigo e amigo. 
   A alma... Bloom arma uma surpresa no final do livro. Ele passa toda a obra comentando os autores e sem dar nenhuma pista sobre o seu pensamento. No fim, a forma como ele defende o amor é simplesmente desarmante. E também é desarmante a maneira como ele lê Nietzsche. O filósofo alemão paira em toda a obra assim como Kant e Heiddeger.
  Bloom analisa cinco peças de Shakespeare, e sem o deslumbre do outro Bloom, ele fala que o bardo era acima de tudo um observador. Mais que isso, Shakespeare e Nietzsche têm muito mais a dizer sobre o homem que qualquer gênio da psicologia moderna. Porque o objetivo do artista verdadeiro é dar ao homem seu potencial máximo, único, eles percebem cada homem como um universo, já Freud, burguês sempre, tinha como norte a transformação da diversidade em tábula rasa, dar ao complexo a simplicidade clara de uma equação. Isso é empobrecedor. Um bom burguês mira-se no pior para tirar daí a lei geral, porque não se mirar no melhor?
   Se cada um de nós é, como se fez moda dizer, um personagem de Kafka, de Beckett ou um neurótico de Freud, porque não dizer também que cada um de nós é um pouco Shakespeare, Nietzsche ou Montaigne? O impulso burguês é sempre reducionista. Transformar o mundo em seu espelho medíocre. Reduzir Shakespeare a seu tamanho diminuto e nunca tentar se erguer as alturas de Shakespeare. 
  A igreja, por erros terríveis cometidos, foi justamente atacada pelo iluminismo. Derrubou-se sua autoridade e com ela tudo aquilo que ela detinha. Ora, assuntos da alma humana eram de exclusividade religiosa. Sovina, a igreja retinha textos e o privilégio de ter a última palavra sobre espírito, alma e transcendência. Ao ser colocada de lado, colocou-se os assuntos da alma também de lado. Em um erro absurdo, porém compreensível, tudo o que se referisse a alma passou a ter odor de igreja, de repressão e de conformismo. Para o século XIX, falar em espirito era falar em passado, o passado cristão. A igreja do burguês é uma igreja onde não existe alma. É uma igreja prática, onde se firmam contratos e se apagam as faltas.
   O que tudo isso tem a ver com o erotismo? Sem alma não existe erotismo. Sem a presença do espirito, o sexo fica reduzido a biologia. Queremos porque precisamos procriar. Apenas isso. Amamos aquela mulher porque nossos genes assim o querem. Ou seja, deixamos de obedecer a Deus para obedecer aos genes. Reducionismo maior é impossível. Do Sem Limite e Sem Tamanho, caímos no diminuto. A lógica dirá, óbvio, que os dois extremos se excluem.
   A alma ansia por falar. Por se expressar. Amamos na esperança de poder unir o impossível: alma e carne. Esse o prazer erótico. A expectativa da perfeição. O belo sublime poder ser encontrado aqui e agora. Fora disso o que temos é pornografia, violência e incivilidade. Bloom diz que a existência de Deus é discutível. Mas a Alma existe. Basta conhecer um pouco de música, de poesia para saber disso. Nada há de biológico na arte. Negar isso é chafurdar na lama, que é o que temos feito.
  O mais lindo momento do livro fala de amizade. A amizade de Montaigne com La Boétie. Para Bloom, a amizade verdadeira é mais rara que o amor. Apesar do amor ser muito mais forte. Certas frases de Montaigne, a inevitabilidade da amizade, o prazer sem fim de conversas livres, tudo isso exala beleza. E o belo acaba sendo o problema central do erotismo. 
   Ele existe? Ou o belo é uma convenção social? Pessoas tendem a dizer que o belo é variável. Que o que hoje é feio pode ter sido belo um dia. Welll...
   Assim como Alma sempre houve em toda cultura ( não se conhece uma só cultura atéia ), coragem, justiça, bondade e equilíbrio sempre foram características da beleza. Há um certo prazer frouxo em se relativizar tudo. Temos a tola sensação de que relativizar é ser mais complexo e mais inteligente. Uma grande asneira. Relativizar abole os parâmetros de julgamento e na verdade paralisa o pensamento e o debate. Sabemos o que é belo. Sentimos e intuimos isso com a alma. Sabemos que Mozart é belo e que um matadouro não é. Sempre soubemos que a beleza decantada da guerra pode existir se pensarmos apenas em coragem e honra. Mas sabemos que corpos dilacerados nada podem ter de belo. Podem ser uma crítica, um testemunho, mas não beleza. 
   Porque beleza é erotismo. Beleza é aquilo que nos falta e miséria temos muitas. Beleza é a vitória sobre a dor, o tempo, a morte e o medo. Ela nos recorda nossa alma e nos leva fora da carne. Beleza nunca se engana. Eros é esperteza.
   Admirável livro.
  

MONTAIGNE, BURNS, SAKI, VILLON E ETC

Quem leu sabe : Montaigne foi o primeiro e o maior dos blogueiros.
Vejamos.
Nasceu em família enriquecida e recém nobilizada. O pai, esclarecido, o educou de forma erudita : acordava ao som de cravo e os empregados só podiam falar latim com a criança. Montaigne cresceu feliz e estudou com prazer. Lia muito, principalmente Seneca e Plutarco ( como Shakespeare ) e viveu uma juventude de vinho, mulheres e amigos. Encontrou em La Boetie o único amigo que lhe compreendia. Mas morreu cedo, esse Ettiene de La Boetie. Já casado, pai de família, Montaigne, triste e incapaz de se permitir ter prazer, em luto pela morte de Ettiene, se isola no castelo da família. Escreve um livro. Um livro para ser lido apenas pelos amigos. Um livro que não poderia interessar a ninguém, pois seu único assunto era o próprio autor. Montaigne diz isso na introdução. É um livro escrito para a cura de quem o escreve. Michel de Montaigne escreve como fala, e intui que falar cura. Não a toa ele é o Freud original.
Ele ainda lutaria uma guerra, seria prefeito de Bordeaux e participante das lutas religiosas da França do século XVI. Shakespeare lhe deveria tudo. Emerson também. Montaigne é o primeiro homem moderno da Terra. Ele nos inaugura.
O que é o livro ? Um blog. Ele discorre sobre o que pensa, o que leu, o que viveu. Os capítulos, muitos, falam do amor, da morte, da honestidade, mas também falam de trivialidades, de comida, de bebida, de roupas, de modas, de tudo que o constitui. E ele usa a linguagem do amigo. Conversa conosco, dialoga, educa. Inaugura a crônica, a confissão do anônimo, a biografia do não-célebre, a despretensão na escrita. Ele cai em contradições, desmente, desnorteia. Mas é sempre simples, claro, amigo.
Sempre releio trechos de Montaigne, mas nunca leio seu livro inteiro. Foi feito para ser visitado. A intuição que o levou a escrever é coisa de bruxo. Ele foi o futuro.
Lí Robert Burns pela primeira vez. É o poeta nacional da Escócia, assim como Keats é da Inglaterra, Goethe da Alemanha, Pushkin da Russia e Whitman da América. Shakespeare é o poeta do Ocidente. O nosso é Drummond e Camões é de Portugal.
Burns escrevia canções. Seus poemas são letras de música. Muito simples, rimas fáceis, vibrantes. São poemas de bar. Seus assuntos são : bebida, comida e mulher. Vibra de prazer, mas também de revolta contra a opressão inglesa. Poemas para serem lidos aos gritos, rindo, bebendo, em paixão. Burns andou pela Escócia a pé, aprendendo o canto do povo e ao valorizar a raiz escocesa ( ele escrevia em escocês, não em inglês ) Robert Burns ajudou a criar o romantismo. Ele anuncia a valorização da alma do poeta como antena do povo.
Também tomei contato com François Villon. Villon foi ladrão e religioso, político e condenado. Fugiu, mentiu, escreveu muito e foi preso. Sua época, a mesma de Camões, Cervantes e Rabelais, é a época do literato-soldado, do intelectual-herói, do aventureiro-pensador. Seus poemas, muito franceses, são o oposto de Burns : elaborados. Falam de Deus, da morte, do sexo e da devassidão. Difícil.
E tem H.H. Munro, vulgo Saki. Contos da era Eduardiana. O melhor tempo da Europa, o último grande tempo ( 1890/ 1914 ).
O que foi essa era ? O apogeu do poder material da Europa ( as custas da exploração da Asia e Africa ). Eduardo, rei, foi um grande gastador. E como todo inglês adora copiar seu nobre mais querido, os ingleses começaram a gastar, a esbanjar, a desperdiçar. Surgiram os exageros : casas de mármore com paredes revestidas de seda, quadros, vasos às dúzias, estatuetas italianas, bronzes, móveis de jacarandá do Brasil, tapetes persas, espelhos de cristal belga, bengalas, cartolas, empregados, carruagens, viagens com 15 empregados, porcelanas, esnobismo. É o mundo de Wilde, Carroll, Wells, Shaw, James e depois de Wolff, Huxley, Waugh e até de Lawrence. Mundo de Saki.
Seus contos são hilários. Três páginas apenas. E o tal nonsense, tão inglês.
Porque a Inglaterra tem tanto talento para o humor ? Apenas o humor judaico lhe faz frente. O que aconteceu para que houvesse esse desabrochar de riso, de escárnio e principalmente, de absurdo cômico ?
A introdução do livro, de Rosalia Garcia, arrisca dizer : o humor nasce como válvula de escape da rigidez da rotina inglesa. O inglês rí, faz trocadilhos, cria absurdos para quebrar o gesso dos horários rígidos, do chá com leite, da etiqueta formal, do sempre igual. Numa nação de guarda-chuvas pretos, carros pretos, guardas da rainha em formação e classes que não se misturam, criar o absurdo para quebrar a chatice é não só necessário, é vital. Saki faz isso todo o tempo. Fala de chás que dão errado, de caçadas desastradas, de festas que afundam, de nobres ridiculos. O inglês acima de tudo rí de sí mesmo e, apesar de se saber absurdo, ama seu modo ridiculo de ser. Seu humor não é feito para gargalhar, ele é feito para mover o cérebro, arejar o pensamento, pintar o guarda-chuva de rosa e o Rolls de amarelo.
Duas velhinhas tomam chá. Mas Jacques Cousteau, vestido com escafandro, toma chá com elas e tem um peixe na mão. O teto cai e um pianista toca no quarto ao lado. O pianista está pelado. Um repórter pergunta na rua porque os escoceses usam saiote e um homem de saiote é morto numa rua. Isto é nonsense. É produto que só existe na terra de Peter Sellers, de Kevin Ayers, de Alice no país do espelho, do Monty Python e deste Saki, que tanto faz rir fazendo tão pouco.
O humor francês, apesar de Tati, é tão fraco por ser um país que se leva demais a sério. A Itália é cômica por saber ser ridícula. A América tem o humor do judeu e do negro, um humor feito para se vencer a opressão. Se rí da dor para se superar a ferida. Mas o inglês cria o anti-esperado, o anti-real, o anti-relógio. Ele se mantém britânico, se mantém súdito da rainha; porém cria um momento de exagero, de absoluto absurdo, de transe de sem sentido, de humor inglês. É genial. È Evelyn Waugh, é P.G. Wodehouse, e é Saki.
Por ser tão formal e reprimido, eu o entendo, o pratico em minha vida e o idolatro. A vida é nonsense e só quem foi obrigado a ser cego e de súbito abre os olhos percebe a graça.
Viva Saki !

o nascimento do homem do blog

Música, dança, escultura, arquitetura e teatro. As mais antigas formas de arte só se realizam em grupo. Voce faz música para ser escutado, voce dança com alguém que faz a música, voce esculpe sendo observado pelo modelo e pelo discípulo, voce erege para a cidade e produz uma peça para o público. Não existe, por 5000 anos, a idéia de arte pessoal, trabalho só meu, linguagem própria.
Livros sempre foram escritos. Mas eram redigidos em segunda mão. Sua primeira vida era o texto oral. Eram escritos como mero lembrete do texto oral. Os autores, na maior parte das vezes, nem se davam ao trabalho de os assinar.
Nesse mundo, que recorda vagamente o mundo das favelas de hoje, não existe o privado. Voce só existe no espaço comum. Seus companheiros entram em sua casa, incluindo o quarto, na hora em que lhes aprouver, refeições são sempre em grupo, enterros trazem toda a comunidade para o lado dos aflitos e na doença, todos dão palpites sobre a cura. A idéia da solidão é inimaginável : a família ocupa todos os espaços, os filhos são aos bandos e mesmo os orfãos têm o exército ou a igreja.
Nenhum castigo é pior que o exílio. Viver só, comer só, acordar só.
O gestual desse tempo é emotivo : amigos ao se verem na rua, correm um para o outro, se abraçam e rolam no chão; um enamorado se atira aos pés da amda e os beija; um puxa-saco esfrega a barriga na terra diante do senhor. O senhor... nobres convidam vassalos para a mesma mesa e empregados comem com os patrões. Se defeca em público, os recém-casados são escutados na primeira noite. Pensa-se muito em comida e sexo, é um mundo de pequenas malandragens, de muitos cornos, de brigas por quase nada e com um Estado fictício.
Não se teme a morte. Teme-se o inferno, e coisa para nós inimaginável : não se dá a menor atenção ao corpo- é como se ele não existisse. Ser gordo ou magro, ter espinhas ou pele lisa, tanto faz. A sedução se dá pela lábia e pelo dinheiro e o espelho não é encarado.
Primeira mudança : o estado se fortalece na renascença. Se o seu vizinho erra, o estado o punirá. Então, ele fecha a janela.
Segunda mudança : a especialização. Se voce fica doente, existe o médico, portanto, quem precisa dos vizinhos ?
Terceira mudança : com o protestantismo voce pode falar com Deus sem a ajuda do padre. Para que sair e ir à igeja ?
Quarta mudança : o livro. Agora posso me distrair sózinho, fechado em meu mundo ( atente : meu mundo ). Preciso de silencio.
MONTAIGNE.
Pela primeira vez um homem fala apenas sobre sí mesmo. Atente : é a primeira vez em 5000 anos em todo o globo.
Ele avisa já no inicio do livro : falarei sómente sobre meu espírito. Em solidão. Em repouso. Atente : jamais nada tão redical, moderno e corajoso foi feito por qualquer homem em qualquer tempo. Montaigne nos inaugura.
Sobre o que ele fala ? Tudo que é só dele. Suas leituras, suas opiniões políticas, suas doenças, a natureza, o bem viver. É um egocentrico discorrer sobre seu espírito. Eu eu e eu. No mundo de Montaigne tudo é o eu, nada existe fora desse eu.
RONSARD.
Inaugura ao mesmo tempo o coração egocentrico. Ele fala sobre seus amores, suas dores, seus desejos, suas injustiças. Inaugura o coração sofredor egocentrico.
São dois tipos de blog. O diário afetivo e o diário intelectual.
Somos todos pequenos/ muito pequenos Montaigne/ Ronsard. Ainda não conseguimos criar uma outra forma de ver o mundo. Jamais voltaremos ao tempo em que eu sou o grupo; e não conseguimos sequer imaginar uma outra forma diferente do o mundo sou eu.
Joyce tentou isso. Tentou uma escrita que não fosse um testemunho do eu. Falhou. Mas que bela falha !