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LIVIA, ENTERRADA VIVA - LAWRENCE DURRELL. SEU MELHOR LIVRO?

Há alguns posts atrás eu escrevi sobre o QUARTETO DE ALEXANDRIA, quatro romances de Durrell escritos nos anos de 1950 e que são sua obra mais famosa. Durrell foi, até a década de 80, autor muito lido. Hoje bem menos. Penso que seus livros voltarão um dia. Voltarão quando uma geração menos farmacêutica, menos covarde tiver deixado de ditar normas. A vida e escrita de Durrell são, como a de Henry Miller, excessiva, sem freios, desabalada, colorida, quente ao extremo. Vivemos a época do cinza e Durrell é vermelho. Romances hoje são tristinhos, ele é puro desespero. Pois bem...LIVIA faz parte do QUINTETO DE AVIGNON, cinco romances escritos nos anos de 1970, já na velhice do autor inglês. Como diz o título, eles têm por centro Avignon, cidade que foi o centro dos Templários e sede do papado por um breve período. Livia é uma alemã bissexual que anda pela noite vestida como homem. O livro se passa em 1938, às portas da guerra. Mas Livia é na verdade apenas uma das personagens, o livro foca muito mais em Blanford, um escritor inglês insone, solitário vagando por Paris e Avignon, que se casa com Livia, é abandonado, e sofre até mais não poder. Há ainda um príncipe egípcio muito rico, frio, esperto, e um lorde inglês que acredita ser Hitler uma boa pessoa ( sim, isso existia na Europa até 1939. As classes mais ricas europeias investiram muito dinheiro no governo nazista. Acreditavam que Hitler era um capitalista que faria a Alemanha crescer e que devolveria com lucro tudo que lá fosse investido. Imagina-se o quanto os nazis riam deles. E perceba o quanto isso é evitado por livros e filmes que contam a história da guerra ). Weeellll..... O mundo é sempre dos espertos e o que vemos neste livro são pessoas que nunca entendem o rumo da história. O que Durrell nos mostra é que a enterrada viva se chama EUROPA, continente que nunca se recuperou da destruição suicida da segunda guerra. Após o desastre, o cetro do espírito mundial ficou vago e foi então dado à América. O problema é que os USA, e pior ainda a URSS, nada tinham a oferecer em termos de religião, filosofia ou modo de construir uma nova civilização. Tudo o que os USA tinham era dinheiro e disposição ao trabalho e isso passou a ser a única filosofia do mundo. No lado comunista havia ideologia única e ordem totalitária, mais nada. Toda a história evolutiva do ocidente foi interrompida, enterrada, sufocada. Perdeu toda auto confiança. O tal "cetro" moral do mundo foi passado a quem não o queria. ( Os USA ainda hoje têm um desconforto com o poder que jamais foi problema para Inglaterra, Espanha ou Roma ). Os personagens são as vítimas passivas da passividade europeia. Os líderes exitaram. Poderiam ter esmagado Hitler em 1932 ou em 35. Fizeram negócios. Confiaram. Apoiaram. Foram de uma ingenuidade absurda. ( Somente Churchill bradava contra Hitler, mas o inglês aristocrata era tratado então como um tipo de fanfarrão saudosista da velha Inglaterra guerreira ). -------------- O romance de Durrell, escrito em estilo mais simples que aquele de sua juventude, é então o enterro da Europa, o fim não de uma era, mas a morte de uma civilização. É belo.

O QUARTETO DE ALEXANDRIA, LIVRO IV : CLEA. LAWRENCE DURRELL

Justine. Balthazar. Mountolive. E agora Clea. Chego ao último volume do Quarteto. E se nos três primeiros o que vemos é um tempo que se repete, ações vistas por vários angulos, cada volume dando ênfase à um tema, um grupo de personagens. Clea é diferente. Aqui o tempo anda e chega a correr. Os personagens envelhecem, alguns morrem, o tempo modifica percepções, lugares, visões. Há fatalismo, acidentes, coincidências. Tudo narrado por Darley, um escritor inglês perdido no Egito, um escritor que descobre não querer mais escrever. O romance tem aquilo que vejo como um defeito: corre demais no final. Sentimos claramente que Durrell, após mais de mil páginas divididas pelos quatro volumes, cansa do enredo. Ele cria acidentes, precipita mudanças, inverte expectativas. Isso me incomoda. Mas agora, pensando melhor, imagino que talvez Durrell tenha desejado demonstrar a ação da "sorte", o destino como força incontrolável, absurda, cômica, ridícula. Sentirei saudades dos personagens. Do cheiro de Alexandria, das descrições longas da cidade, das suas pessoas, dos seus ruídos. Se todo grande livro nos faz viver dentro dele, Durrell nos faz nos quatro livros conhecer sua Alexandria, a cidade porto do Egito de 1940, cidade que era Europa, Asia e Africa, cidade grega e árabe, cidade caravana.

MOUNTOLIVE - LAWRENCE DURRELL

Imagine que vc acabou de entrar na faculdade. E na festa dos calouros, voce vai com Carlos, Leo e Mariana. De volta para casa, voce descreve seu dia antes da festa, após a festa, e durante a festa. E também escreve o perfil de Carlos, Leo e Mariana. Agora imagine Carlos fazendo o mesmo. E também Mariana e Leo. Pense nas diferenças de impressões, nas falsas certezas. É isso que Durrell fez no QUARTETO DE ALEXANDRIA. São quatro volumes. Todos passados no mesmo lugar, com os mesmos persoangens, no mesmo tempo. Mas, cada livro visto sob um ponto de vista. O primeiro é Justine. Depois temos Balthazar e o terceiro é este, Mountolive. Os outros dois descrevi em posts passados, Mountolive, que acabei de ler agora, tem a visão dos fatos vistos por um diplomata inglês, Mountolive. Vemos então os personagens, Nessin, Justine, Clea, Melissa, vistos sob a ótica e o interesse dele. Ou seja, é um enfoque mais inglês, mais político e menos sensual. Dos três livros que li, CLEA será o próximo, é aquele que menos gostei. Ele quase se torna um romance policial não muito interessante. Baltahzar é uma quase obra-prima, este não. ------------- Aqui Nessin, que na visão de Justine era apenas um milionário solitário e apaixonado, se mostra como é de fato: um contrabandista de armas. Sua vida é um drama familiar pesado. Já Mountolive é um fraco. Visto por Balthazar como um silencioso diplomata, se revela um ser hesitante, perdido, sem ação. -------------- Lançado em 1958, terceiro volume de uma série de imenso sucesso, traz descrições brilhantes de Londres, da Russia e de Alexandria, na verdade é a cidade a persoangem central que une todos os livros. Já comecei a ler CLEA. E me parece ser o melhor dos quatro. Veremos.....

DELINQUÊNCIA

Estou na academia de ginástica. Uma bela mulher passa na minha frente. Sinto um desejo imenso de olhar seu traseiro. Mas sei que não devo. Olho. Me sinto um delinquente. Acabo de infringir uma lei não escrita: não sentirás desejo numa academia. ---------------- Nos anos 80 ou 90 academias tinham clima de bar, a paquera rolava explícita. Nada havia de errado ou não aceito em olhar com admiração uma bela mulher. Porque toco nesse assunto? ---------------- Ontem conversei com um amigo psicólogo e em dado momento ele me fala da delinquência. De que desde que nossa civilização existe, todo jovem foi delinquente em algum momento. Geralmente contra os pais ou a escola. Isso faz parte da criação de uma personalidade, de um caráter. Em um mundo, o de agora, em que quase tudo é permitido, como se rebelar? Olhando o traseiro de uma mulher? Ora, cometer esse gesto é uma pequena delinquência cabível apenas a um homem de outra geração, alguém como eu. Para um jovem de 12 ou 17 anos, criado em meio a vídeos pornô, onde olhar um traseiro na rua nada tem de interessante, como cometer uma delinquência? ---------- Pois vai longe o tempo em que acender um cigarro de maconha ou pular o muro da escola era um ato de coragem. Hoje nada mais é que fazer o que todo mundo faz ( fumar ), ou algo que não tem mais o menor sentido ( pular o muro ). Temos como resultado uma geração terrivelmente apática. Jovens com pais que tudo permitem dentro de uma sociedade onde ser rebelde é ser "um dos nossos". ---------------- Mas o que desejo falar é sobre livros. Com meu amigo eu falei dos livros que li recentemente: Gibson, Murakami, Houellebecq, Durrell. Algo nos bons livros de Houellebecq e Murakami me incomodou. Falta algo neles que não consigo definir o que seja. Mas agora entendo o que é: Delinquência. Em Murakami a rebeldia dos personagens foi vencida a muito tempo e em Houellebecq, autor inconformado e azedo, essa delinquência se transformou em narcisismo e medo. São dois autores de hoje e que, por terem talento, revelam nossa condição anti delinquente. Durrell, sendo 40 anos mais velho, ainda está inserido na literatura que crê no confronto. Seus personagens são todos anti sociais. Se movem no lodo e na luz da rebelião. Sofrem de ansiedade por viver, nunca por medo de morrer. -------------- Pois a LITERATURA, a grande e maravilhosa arte literária, de Raskolnikov à Heathcliff, de Macbeth à Ahab, sempre falou de gente delinquente. Todo grande romance, mesmo que discretamente ( em Henry James e em Jane Austen ) falou de personagens que reagiam ao meio, que se moviam contra aquilo que lhes era dado, que saíam de casa ou do país em busca de algo, que se construíam. Esse dom da literatura é tão forte, ou era, que escritores como Joyce, Tolstoi ou D.H. Lawrence se tornaram eles mesmos delinquentes morais. Desde o momento em que Prometeu rouba os deuses até o ato gratuito de Camus, escrever foi um ato de enfrentamento. Murakami e Houellebecq falam da impotência. Do mundos sem luta a ser vencida. De se perder aquilo que nunca se tentou ter. Julien Sorel de Stendhal, os novos ricos de Balzac, Oliver Twist e David Copperfield de Dickens, Tom Sawyer e Huck Finn, todos são delinquentes. ------------------ Delinquente aliás é uma palavra mal entendida. Hoje ela é sinônimo de ladrão. Mas veja: o ladrão ou o traficante não são necessariamente delinquentes. Eles podem ser apenas mal caráteres ou malandros que agem de acordo com o meio onde vivem ( o que não os absolvem, muito pelo contrário ). Delinquente é aquele que vai contra o lugar ou o meio onde nasceu. É aquele que tenta ser o que é. Que briga para abrir espaço. Um desbravador. Um construtor. Um corajoso. É quem vai contra a maré. Grita. Se impõe. Falando de modo bem didático: um hippie em 1965, no meio do Kansas, era um delinquente. Um hippie em San Francisco em 1972 já não era. Peço agora que imaginem como um filho desses hippies de 1972 poderá ser um delinquente em casa. Se os pais pregam a paz, o amor, a liberdade total, a aceitação de qualquer tipo de desejo sexual, como os enfrentar, como se afirmar, como ser delinquente "para os pais que se acham delinquentes eles mesmos"? Como um jovem de 15 anos pode ser "jovem e moderno", "novo e ousado", "livre e ativo", se seus pais, e até os avôs, são "livres-modernos-ativos-revolucionários-liberais"? Eu respondo: Sendo ausente. Se alienando. Não desejando. Saindo da luta antes mesmo dela ser proposta. É isso que vejo nos jovens de hoje. É isso que leio na literatura de agora. ( Outro modo de confronto com os pais seria os negando: sendo conservador. Mas o conservadorismo tem um apelo tão pouco sedutor para quem tem menos de 30 anos, que é uma opção nem pensada. Sexo sempre importa. Ser um deprimido trancado no quarto tem ainda algo de sexy, mesmo que seja um sexy triste. Ser um católico conservador nada tem de sexy ). ---------------- Então eu olho a bunda da moça que passa. Olho apenas um segundo. Ou menos. E mais ninguém olha. Fui mau. Fui contra uma regra do bom costume. Fui delinquente.

BALTHAZAR - LAWRENCE DURRELL

Em 1912 Lawrence Durrell nasceu na India. Era o fim do Império Britânico, aquele projeto nascido na marinha real durante a vitória sobre Napoleão e que durou até o começo da Primeira Guerra mundial. Não por acaso, foi o apogeu da literatura e da ciência inglesa. Eu amo essa literatura em seu todo, e sinto saudades do inglês viajante. Autores como Conrad ( que era polonês mas era inglês ), Kipling, o tardio Maugham, Forster, e Durrell, que morreu em 1990, muito depois do fim do império. ------------- Durrell casou quatro vezes, viveu no Egito, França, Argentina, Grécia, Sérvia. Foi muito famoso a partir dos anos de 1960, quando Justine, primeiro livro do Quarteto de Alexandria foi lançado. Este livro, Balthazar é o segundo volume, Justine eu li a alguns anos atrás. Durrell foi best seller em um tempo em que autores difíceis ainda vendiam bem ( Saramago foi o último e o lusitano é bem ruim aliás ). Hoje Durrell anda meio esquecido, o que é uma pena. Nada nele ofenderia as frágeis consciências dos leitores atuais. Ele não é viril demais, nunca parece racista e não tem cenas violentas. A única coisa que faria um leitor-criança eterna fugir dele é sua complexidade. Durrell não barateia nada. Sua prosa é quente, sensual, musical, incrivelmente saborosa. Os personagens, apaixonantes. Durrell foi dos últimos a criar gente que parece real. Eles cheiram e fedem. ------------------- Apesar dessas pessoas, o livro, todos os quatro, são sobre Alexandria, a cidade do Egito que na época do romance, anos 30, era muçulmana, católica, europeia, oriental, suja, linda, absurda, indiferente, assassina. Centro de prostitutas, gays, lésbicas, viciados, esnobes, miseráveis. Muitos europeus iam à Alexandria, como a Argel e Tunis, para assumir sua homossexualidade. Era um mundo onde tudo podia. Durrell foi amigo de Henry Miller. Imaginamos o que ele aprontou por lá. Mas, ao contrário de Miller, Durrell era rico, sua escrita é muito mais refinada. Durrell não tem a raiva de Miller, raiva que estraga o americano. Durrell é muito mais metafísico, poeta, jamais pornográfico, bastante barroco. ------------------ Mulheres perdidas e sexualmente livres, milionários egípcios, ingleses sem rumo, escritores cínicos, sofredores maníacos, e a cidade. Ler este livro é andar por Alexandria, suas ruas, sombras,odores, bares, palácios. Dois capítulos sobressaem: aquele que descreve a travessia do deserto e o fantástico capítulo sobre os dias de carnaval. Este, sobre a festa de 3 dias, é uma joia. ---------------- Mais ainda, temos algumas das melhores descrições sobre a paixão sexual. Oh sim! Ia esquecendo! O livro é a história de Justine, tema do livro primeiro, contada aqui sob outro ponto de vista. O alvo de Durrell não era simples, contar a realidade em sua totalidade. E para isso era preciso criar um QUANTA de texto, uma história onde tudo parecesse acontecer ao mesmo tempo e num agora eterno. Sim, a física quântica aplicada na vida. Durrell já sabia e nos avisa que não daria certo. Mas ele tentou. O livro é um belo erro.

AS DUAS MORTES DE CERTOS AUTORES

Muito mais chata que a notícia da morte de um autor é quando voce percebe que existem autores que morrem duas vezes. Talvez o maior exemplo mundial seja Bernard Shaw. Voce pode não saber, mas até os anos 60 Shaw era considerado o segundo maior autor teatral da história. Apenas Shakespeare era mais encenado que ele. Ganhou o Nobel, viveu quase 100 anos e morreu como um tipo de centro luminoso das letra inglesas. Mas, desde sua morte, nos anos de 1950, sua obre entrou em ostracismo. Não é nem o caso de se dizer que nosso tempo está errado. Na verdade Shaw era novidadeiro. Suas peças, muitas, defendem a liberação feminina, direitos trabalhistas, fim ao sistema de classes, liberdade sexual. Quando esses temas passaram a ser tratados de modo muito mais explícito e feroz por gente como Albee e Osborne, Shaw se tornou passado. André Gide é um caso diferente. Ele foi até os anos de 1960 o gigante das letras francesas. Vivo até seus 90 anos, lúcido, homossexual, foi amigo de Wilde, escreveu relatos honestos sobre o mundo gay, sobre a igreja, sobre a crise da moralidade. Mas, atacado pelos escritores políticos de então, Gide foi chamado de individualista, desinteressado por política, anódino. Seu estilo, refinado, não o ajudou. Ao contrário de Shaw, eu aposto que se ainda houver leitura séria nos anos de 2030 ele pode voltar. Herman Hesse é outro autor que um dia, principalmente nos anos hippies, foi chamado de gênio. Hoje voce só o encontra em sebos. Seus livros sumiram. Nas letras alemãs de 1940-1950, a grande discussão era descobrir quem era maior: Hesse ou Mann. Hoje parece uma heresia essa comparação. Robert Musil tomou o posto de Hesse. Lawrence Durrel é um inglês que morreu nos anos de 1980 e que hoje está criando mofo nos sebos. Ele era muito levado a sério. Livros sobre sexo e demonismo, mas que hoje parecem soft. Passado o escândalo, restou um autor competente, mas que não consegue público agora. Posso falar de muitos outros. Gente de fama intelectual imensa. Tipo Gabriela Mistral, John Galsworthy ou Pearl Buck. Todos com Nobeis. Milan Kundera já foi mega considerado e é claro que após morrer, Sam Shepard caminha ao esquecimento. Esses casos não são como Graham Greene ou Evelyn Waugh. Greene e Waugh tiveram sucesso demais, acima de suas espectativas durante um certo tempo. Mas jamais foram o centro da coisa, como foram Shaw, Hesse e Gide. Se hoje Greene e Waugh não vendem mais como venderam durante três décadas, isso é apenas uma normalização. Sobreviverão ao lado de Nabokov e Bellow como ícones do século XX. Mas a queda moral de Shaw, a maior queda de meu tempo, é incomparável.

JUSTINE - LAWRENCE DURRELL

Talvez voce não saiba, mas nos anos 60 era lawrence Durrell um dos cinco escritores mais famosos do mundo. Ainda em 1984, seu Quinteto de Avignon foi um dos acontecimentos literários do ano. Morreu em 1990, velho e rico, sempre irriquieto. Como Paul Bowles, Durrell foi um desses saxões que correram mundo atrás do sol. Inglês, ele se apaixonou pelo Mediterrâneo, mas não o lado chique desse mar, seu mundo era o lado árabe. Justine se passa em Alexandria e inaugura seu Quarteto de Alexandria. Este livro foi best seller em 1958. Bons tempos em que num ano o best seller era Nabokov e no outro Durrell ou Bellow. Justine conta a história de um inglês que vive no lado paupérrimo de Alexandria. O livro não especifica, mas parecem ser os anos 40. Esse inglês se envolve com uma dançarina do lugar e depois se apaixona por Justine, uma ninfomaníaca casada com um árabe rico. Ela é uma terrivelmente auto destrutiva seguidora do gnosticismo. O mundo do livro é repleto de gays, lésbicas, cirandas de sexo. O estilo é solto, nunca sabemos onde estamos e para onde vamos, o tempo retrocede, avança, para e acelera. Fala-se da gnose, da Cabala, mas o clima é de descrença, dúvida e muito desespero. Não é leitura de prazer, Durrell é difícil, negro, pegajoso, não busca a beleza, ele busca o não morrer. Há calor aqui, mas nunca sensualidade. Durrell relaciona sexo com espírito. A paixão como morte da alma. Na gnose toda a vida da matéria seria um erro, o mundo material como criação de um anjo renegado e não de Deus, que teria criado a alma mas não o mundo visível. Paixão e sexo são matéria e portanto fadados sempre ao erro e a tristeza. Isso é Justine. Se voce usar cadernos culturais de jornal como guia de leitura jamais irá chegar à Durrell. Este não é meu livro favorito dele, mas procure nos sebos da vida.

DRACULA DE BRAM STOKER, O FILME DE COPPOLLA. E AINDA HENRY MILLER.

     Ando indicando filmes para uma menina de 22 anos. Ela me pediu uma lista de filmes dos anos 90, década de seu filme favorito, Pulp Fiction. Errei feio ao indicar Henry e June. Ela odiou profundamente. Eu não via o filme de Philip Kauffman a uns 15 anos e me surpreendi com sua tola pretensão. É pedante. É aquele tipo de filme que vende "os bons tempos da arte em 1936". Henry Miller morreu. Nos anos 80 todo mundo lia Miller. Fazia parte. Ler Miller, assim como Bukowski, Anais, Jack Kerouac, Ginsberg, era "de lei". Era tão óbvio entre os bacanas que virou clichê. Com muito sacrifício eu li Tropico de Câncer. Achei fake. Estou errado? Talvez. Paul Bowles é o Miller mais profundo. Lawrence Durrell também. As cenas de sexo em Henry e June são broxantes. Fred Ward não faz Henry Miller. Parece um Humphrey Bogart infantil. O filme tem Uma Thurman e Maria de Medeiros, duas Pulp Fictioners. Tarantino as escolheu aqui?
   Dracula eu vi duas vezes. Em 1994 e depois em 1998. Nunca mais. Seria outro erro? Coloco o DVD. Cores vermelhas e guerra na Romenia. O conde perde sua noive e amaldiçoa a igreja. Já no século XIX, Keanu Reeves vai vender terras na Transilvânia. Gary Oldman o espera. Hoje todos aqueles efeitos de imagem são clichê. Na época eu fiquei abobado. Trem que passa sobre a tela enquanto se escreve uma carta. Três rostos que se fundem em um. Lobos que correm como sombra. A riqueza barroca das imagens era uma novidade. Era sedução pura.
   Mas, e em 2020? O que senti? Visceralmente eu grudo os olhos na terra e sinto: Eis uma narração perfeita. O ritmo e as falas. Nos primeiros trinta minutos é uma aula de cinema. Londres e Drácula, vitorianismo e inferno, beleza e horror, tudo em equilíbrio. Acima de tudo, a beleza. O senso de imagem que vem de alguém que conhece o cinema mudo. Sim, em 2020 os primeiros trinta minutos são ainda melhores do que minha memória lembrava.
   Então Gary Oldman passeia por Londres. É um papel muito difícil. Pois facilmente pode cair no ridículo. Ele tem de ser feio e sexy. Hiper romântico e jamais bobo. Teatral sem ser grotesco. E Gary consegue. Sua atuação é brilhante. Controlado. O tempo todo controlado. Winona era a estrela da época e ela não fede nem cheira. Podia ser muito melhor. Mas não compromete. Após seus primeiros 30 minutos, em Londres, o filme se torna menos sensacional. Continua interessante.
   E vem Anthony Hopkins como Van Helsing. No auge da fama de "maior ator do mundo", Hopkins pega o filme e tenta transformar no "Anthony Hopkins show". O filme desaba. É como se ele estivesse no filme errado. Seu rosto e gestos exalam vaidade. Ele se exibe. Ele exagera. Ele destrói todas as cenas. Dracula passa a ser dois filmes: O maravilhoso filme de Gary Oldman, e a comédia barata de Hopkins. Queremos que Dracula vença.
   O final é de um romantismo que resgata o romance. Dracula é um filme sobre o amor que vence o tempo. E ele se redime. É um grande filme que ainda me emociona. Muito.
   Nele está a raiz de uma incontável procissão de produtos culturais. A geração da menina de 22 anos cresceu revendo este filme sem nunca o ter visto. Ela adorou.

O PRÍNCIPE DAS TREVAS OU MONSIEUR- LAWRENCE DURRELL

   Durrell foi um daqueles ingleses que odiavam a Inglaterra. E fugiam do país em busca de se encontrar. No caso dele, seus lugares eram Egito, Provence, India e Veneza. Amigo de Henry Miller, ele vai mais longe que Miller em seu texto cheio de palavras bem urdidas e gostos amargos. O que Durrell realmente pensava é dificil saber. O que podemos é imaginar o que ele não foi. Conformista.
   Este livro teria problemas se escrito hoje. Voce logo saberá porque.
   Um homem viaja num trem rumo à Avignon. Lá, ele tentará saber do porque do suicidio de seu amante, Piers. Piers tem uma irmã, Silvie, que está num hospício. Ela também é amante do narrador. Um triângulo feliz, apesar dos pesares. Então vamos na memória do narrador. Ele recorda uma viagem ao Egito. No deserto eles conhecem Akkad, mestre em gnosticismo. Navegam pelo Nilo. O livro dá um salto a Veneza e lá ficamos sabendo que agora quem narra é o verdadeiro autor, um muito solitário veterano cuja esposa o abandonou por uma mulher. Em mais um salto, vamos brevemente a Viena e depois de volta a Provence, onde quem narra é um autor de best-sellers. Bem...acredite-me, Durrell consegue orquestar todos esses pontos de vista sem nunca parecer confuso. Porque ele faz isso? Mero capricho? Não, a mudança de narrador, de estilo, de ponto de vista é o próprio livro, já que seu tema é a ilusão, o real e o irreal, o que somos e o que não somos.
   Aprendi em linguistica que na verdade todos os livros ( e filmes ) têm sempre o mesmo tema: vida e morte. Durrell tenta ter uma unidade, ele fala da morte e não da vida. O livro pode ser entendido como a tentativa de se entender o que seja morrer. Não há uma resposta. Ainda bem...mas várias tentativas se fazem, e todas são terríveis. ( Um adendo: eu juro que o livro é alegre ).
   Durrell teria problemas hoje por se arriscar a ser chamado de anti-semita. Akkad, o gnóstico, diz que Deus foi destronado e o mundo que conhecemos tem apenas um criador e mestre, o Diabo. Toda a realidade é obra dele e isso é fácil de perceber, pois a vida nada mais é que guerra, fome, dor e morte. E uma grande ilusão, as religiões. E a mais ilusória seria o judaísmo e tudo o que ela trouxe: catolicismo, protestantismo, islamismo, e até mesmo Marx e Freud que nada mais são que filhos da velha Biblia hebraica. Tudo isso sendo um mundo de materialismo, usura, ouro, falo, sede, repressão e dogmas.
   Confesso ser dificil ler essa parte. Principalmente quando Akkad diz que ir contra essa obra do mal é não obedecer a vida. Não ter filhos, não lutar por nada, e morrer com alegria e de forma consciente. Perceber a ilusão que há nessa vida criada pelo mal e só pelo mal. Weeelllll..... Depois o livro dá seu golpe de classe. Ele próprio vai contra tudo o que falou. O novo narrador não pode crer nessa, segundo ele, "besteirada", ( mas deixa uma dúvida no ar ) e foge dessas questões. O que ele expõe é o massacre ocorrido no dia 13 de novembro de 1345, em que 5000 gnósticos da Europa foram presos, julgados e queimados, por ordem de Filipe, o Belo. Porque?
   Apesar de tema tão dificil ( todas as cerimônias são cheias de drogas alucinógenas ), o livro é solar. Durrell descreve o mundo, nosso, condenado a destruição e dominado pelo mal absoluto, e ao mesmo tempo dá descrições soberbas da Lua, do Sol, dos animais e das estradas. O texto é belo, vitalista, há prazer em ler. Esse seu grande mérito, ele fala de coisas terríveis, mas jamais se faz um peso.
  Após a leitura ficamos confusos. Qual a verdade? Quem nos controla?  Deus, Jesus, os Santos...ilusões do mal? Ou Jesus seria alguém que tentou lutar contra as trevas ( sabendo serem elas invencíveis, e portanto sendo um gnóstico ao escolher sua morte ). Não há solução e nunca haverá. O que fica é a sensação do ridiculo da presunção científica ( respondem sem responder nada ) e um gosto de Matrix na boca, azedo.

GLORIOSOS DIAS

   Gloriosos dias!
   O que falo não é nunca por ter lido ou pelo dogma de um mestre ( apesar de ler muito e saber que ler é tomar conhecimento de um ato potencial ). É por sentir na carne que escrevo. Sabendo que jamais conseguirei dizer exatamente o que sinto.
   Glorificados dias! Minha fé diz que é preciso morrer e renascer em vida para poder morrer a morte em paz. Minha mente vê que a vida é toda feita de pequenas mortes e buracos sombrios e que sabedoria é renascer após essa mortezinha. A vida só vale a pena desse modo. A saga particular da morte e vida, vida e morte latente na existência de cada um.
   De Avignon tudo o que vi foram árvores pequenas retorcidas e ruas sujas. E o vento Mistral, que deixa todo mundo acabrunhado e querendo sumir. Lembro do céu azul demais e do cheiro de aniz que impregnava a casa. E das montanhas de sinais de cristianismo muito suspeito. Os anti-papas viveram em Avignon. As seitas gnósticas fizeram de lá seu lar.
   Quando lá estive eu não sabia de nada disso. Senti frio e uma melancolia que me fazia odiar o tempo. Calçadas de pedra eram só calçadas velhas. Eu não sabia as ler.
   Antes eu tivera uma experiência de cigano. Ratos do tamanho de coelhos que ficavam olhando pra mim e mexiam suas patinhas nervosas. Ratos têm cheiro e eles exalavam esse cheiro ao sol do meio-dia. Bosta seca também fedia. Bosta de gente, desidratada ao sol. Aquele lugar tinha apenas isso, ratos, bosta, capim e córregos sujos. E eu, torrando ao sol até esquecer onde eu estava ou o que eu era. O sol me fazia suar e tudo o que eu sabia era do calor que subia e do suor que descia. Cheiros e o leve movimento do capim na brisa que mal existia. Aquelas tardes são renascimentos. Duram para sempre. Minha eternidade habita aquele lugar.
   Gloriosos dias! Enamorado da vida. Solto em mim-mesmo e solto de mim-mesmo. A vida foi criada pela matéria inerte ou a vida criou a matéria inerte? É mais fácil da vida nascer a matéria ou da matéria nascer a vida ? Para haver morte é preciso a vida.
   Então encontro perdido entre meus livros o primeiro volume do Quinteto de Avignon de Durrell. E tudo nele faz sentido. Um escritor daqueles que fazem parte dos buscadores. Dos inquietos. Os indagadores. Os autores que se exilaram ao redor do Mediterrâneo, sentindo lá a origem e fim. Adentro essas páginas e sou preso da febre de ler tudo. Febre ou sonho?
   O nosso erro, radicalmente tolo, é pensar ser a matéria superior a vida.