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FEDERICO FELLINI - FAZER UM FILME

   O melhor do livro é a homenagem que Fellini faz a Totó, o genial cômico italiano. Por mais que se elogie Totó, ela é ainda maior.
 Não é um bom livro. A longa introdução de Italo Calvino é muito melhor. Calvino fala de suas memórias com o cinema dos anos 30 e consegue explicar porque o cinema americano desse tempo é tão mítico. O modo como ele descreve as estrelas e seu poder sobre nós é sublime.
 Mas Fellini tem outro tipo de abordagem. Ele escreve sobre seu ego, seus sentimentos e nunca sobre seus filmes ou sua vida. E assim, acaba por nos cansar. Uma pena. E felizmente ele reconhece que não consegue falar sobre os filmes porque ele só se recorda do que sentia enquanto os fazia, e não da história das filmagens em si.
 Já esquecia que além de Totó, Fellini conta sua experiência com LSD, frustrante, e seu respeito por Jung, um psicólogo que libera a união e não prega a divisão entre alma e corpo, sonho e realidade, desejo e medo.
 Lemos todo o filme e nada ficamos sabendo sobre o homem Fellini.
 O cara que fez 4 dos melhores filmes da história se esconde.

SOMOS TODOS ROMANOS

   Estou na USP, esse mundo mágico onde todos somos crianças em busca do sentido das coisas, fazendo um novo curso, Italo Calvino. 
   Fico sabendo que a familia inteira de Calvino era formada por cientistas, e que ele foi a ovelha desgarrada. Logo após a segunda guerra, aos 20 anos, ele lança seu primeiro livro, neo realista, e alcança o sucesso. Não, não vou falar sobre esse livro, vou falar sobre a Itália, esse país que equivale a um universo ( ou equivalia ), rico, complexo, desconcertante, e que foi sufocado nos últimos 40 anos. 
   Calvino conta que o pós guerra foi uma explosão de vida. Na rua, nos cafés, nos ônibus, todo mundo narrava histórias da guerra. Inventadas ou não, era uma multidão sem fim de rostos e vozes, cada um deles individualizado, contando dores e humores da guerra. O italiano não é alegre, ele é vivo, essa a verdade. Ao contrário da Alemanha ou do Japão, que morreram e ficaram em luto por décadas após a derrota, a Itália passou a narrar, falar, seja em filmes, canções, discursos, livros, piadas, anedotas, lendas, mitos. Rapidamente a dor foi superada e o apogeu italiano veio. Não vou descrever esse apogeu. Quem assistiu A Doce Vida sabe do que falo. Luxo, miséria, começo da decadência e conforto como nunca antes....está tudo lá, vivo e falastrão, ópera e dor. 
  Somos todos romanos, nós, latinos. Com nossa volúpia e nossa vaidade vã, discursos sem fim, leis e mais leis, corrupção e vida, destruição, recomeços, mulheres e risos. O amor pela comida, pela bebida, pela cama, pelo banheiro, pela praia, pela caminhada à toa, pelo dolce far niente. Commendattore, vossa sinhoria, minha bella, cantare!! Estou criticando? Não! Ë um elogio!
  Em outra aula, outro curso, sobre os começos do Brasil, um autor americano, escreve o elogio da latinidade, especificamente ibérica. A questão é simples: Valeu à pena? Valeu a pena os americanos reprimirem toda sua vida espiritual em troca do desenvolvimento material? ( Ele é ateu. Espírito é criatividade, festa, arte, ritual, vida na rua, familia....). Valeu a pena os ingleses matarem seu espírito celta em troca do inglês eficiente, pontual, quieto? 
  Os negros americanos mantiveram a alma livre e são aqueles que ainda dão vida à América. E os brancos saxões? O que eles têm vivido? 
  Ele fala da brilhante ( isso mesmo ) maneira como os portugueses colonizaram o Brasil. Tentando catequizar os índios, misturar-se à terra, casando-se inter raças, tentando se fundir ao ambiente. Falhas houve muitas. Mas os americanos do norte lutaram para homogeneizar o todo, aparar diferenças, fazer do todo um uno. Valeu a pena? Richard Morse conta ainda que o sistema está esgotado e que talvez venha do mundo latino um novo modo de viver. Ou não. 
  Romanos gostam de dizer que na verdade o Império Romano ainda está de pé. Que todo o modo de pensar e fazer, viver e conhecer do ocidente é romano. O desenvolvimento dos últimos 2000 anos segue um padrão criado em Roma, coliseus, pão e circo, leis, juizes, senadores, guerra, colonias, ateísmo, crenças particulares, sexo, sangue e ambição materialista. A nossa filosofia seria romana, assim como a arte, os esportes, o modo de vida.  Será?
  Calvino crê, como Borges, que a realidade é inacapturável. Podemos crer em certas coisas, experimentar outras, mas a totalidade nos é inalcançável. Cada vez mais, ele era amigo de Borges e os dois trocavam cartas, Calvino foi se tornando esotérico e ao mesmo tempo simplificando a escrita.  Os dois amavam livros de aventuras, raiz da criatividade. Stevenson, Conrad, London e Doyle.
  Material vasto para pensar e fazer. Essas aulas, no reino dos meninos que pensam em pensar, prometem.

DER SANDMANN-E.T.A.HOFFMANN, O NARIZ-NIKOLAI GÓGOL, O SONHO-IVAN TURGUENIEV

   Desde a infância um homem surge para um rapaz. Aterrorizante na infância, ele tem a certeza de que se trata do famoso Sandmann. Será? Talvez seja alguém pior ainda. Hoffmann desenvolve essa alucinação com febre. Ele, romântico por completo, acredita em alucinações ( porque não? ), a vida é inteira, tudo nela é verdade. Sandmann é real.
  O Nariz é um dos melhores contos da história do mundo. Gógol é tão grande quanto Tolstoi ou Tchekov. Talvez hoje seja menos famoso que os outros dois, mas isso é contingência, seu lugar é para sempre. Triste ter morrido tão cedo, de tuberculose. Seu romance Almas Mortas é surpreendentemente engraçado e muito atual, e este O Nariz é hilário e ao mesmo tempo terrível. Gógol não poupa a Rússia. Seus soldados, burgueses, artistas e nobres são esculhambados. Nesta história um homem perde seu nariz. Tenta o reencontrar. Não estrague o conto tentando ver um sentido nisso. Ele não tem sentido. É delirio de imaginação e um prazer estupendo em poder ler. Cada frase de Gógol é um orgasmo.
  Por fim falo de Turgueniev, de quem li Pais e Filhos, o lindo primeiro romance a tratar em termos modernos do conflito de gerações. Aqui ele fala de um filho mimado que descobre em sonho ser filho bastardo. Essa revelação lhe vem esfarrapada, será fato ou invenção da febre e do sono? Adentramos esse mundo onirico de forma violenta.
  Cabe dizer que nos três contos a linguagem nos joga abruptamente para o centro de um mundo que pode ser feio e grotesco ( em Hoffmann ), exagerado e sem sentido ( em Gógol ) ou violento e sombrio ( em Turgueniev ). Sempre pessimista, principalmente quando nos faz rir e quando nos faz sonhar.
  Fazem parte da coletânea de contos fantásticos selecionados por Italo Calvino, ele mesmo um belo autor fantástico. Comecem por esses três. Vão adorar.

AS CIDADES INVISÍVEIS- ITALO CALVINO ( A ESCRITA É A VIDA )

Marco Polo está na corte de Kublai Khan. Toda a noite ele lhe descreve as cidades que fazem parte de seu infindável império. Mas também poderia ser:
Kublai Kahn percebe que ser dono de um império é lutar pelo impossível. Pois assim que um império é construído ele começa a fenecer. O Kahn pede que Polo preserve esse império, pela linguagem. E também pode ser que:
Marco Polo morre de saudades da sua cidade. E a descreve, todas as noites. Assim, cada uma das cidades seria uma visão da mesma cidade, lugar que é infindável, pois cresce na memória a medida que é desvendado.  Mas além disso:
Kublai Kahn joga xadrez com Marco Polo e em cada casa do tabuleiro há uma cidade. E onde eles jogam, no palácio que fica na capital do mundo, há a pista de que esse palácio também está dentro de um tabuleiro. Ou talvez quem sabe:
Os dois sejam apenas uma palavra dita por alguém que fala sobre cidades invisíveis. Narrativas ditas dentro de outra narração. Mas:
Italo Calvino sabe que no pós-moderno, movimento dentro do qual ele é dos poucos que faz sentido, o texto se esgota dentro de si-mesmo. Não há mais enredo ( mas há ), não há mais personagens ( mas há ), o que importa é o ato de se escrever, a escrita é o foco e a vida do texto. A linha e a página são os personagens. Então, Marco fala de cidades que na verdade são palavras sobre cidades, assim como Kublai Khan é imperador de um reino de palavras.
Uma chave: Não sabemos se uma cidade existe. Tokyo existe para mim em palavras que dizem Tokyo. E mesmo que lá eu tivesse ido, tudo o que eu olhasse estaria envolto naquilo que foi me dito: Tokyo. O mundo são palavras, e mais, nós somos palavras, sem elas não existimos.
Linguistica. Italo Calvino sabia tudo sobre linguistica. Aliás, todo intelectual pós-1945 só pode ser considerado se souber linguistica. Porque nós somos uma lingua. Fala.
Então todas as cidades, tão diferentes, não são diferentes, são a mesma. Pontos de significados, narração de alguém que conta ( Marco ) para alguém que ouve ( o Khan ).
Mas será que Marco Polo não é um pensamento na mente entediada do imperador? E o Khan seria um sonho na noite de Marco Polo?
Todas as cidades têm nome de mulher. Seriam as cidades simbolos de mulheres na vida de quem delas fala? Seriam mulheres que são ruas, lixo, córregos, cemitérios, vales e colunas? Ou tudo se resume a cidades vistas no sonho de quem nada viu?
As cidades invisíveis são mais reais que as cidades habitadas. Na verdade as cidades invisíveis são melhor habitadas, porque são levadas com quem as narra. Existem onde alguém as ouve e onde alguém as faz presentes. Ou não?
Italo Calvino dizia que para a literatura sobreviver como "espécie", era preciso que ela fosse "leve, exata, rápida e múltipla". As cidades descritas por Marco Polo são assim. Novelos que se enrolam a novelos ou sedas que flutuam se misturando a sedas. Luz.
Italo Calvino é para sempre.

MARCOVALDO OU AS ESTAÇÕES NA CIDADE - ITALO CALVINO

Eu sou Marcovaldo e Marcovaldo é um idiota. Ele vive numa cidade industrial e tem uma vida banal. Mas Marcovaldo ( e eu ) temos um segredo. Segredo que é dádiva e é maldição. Segredo que faz de nós dois idiotas. Eu e Marcovaldo não temos olhos para a cidade. Não enxergamos ruas, edifícios ou postes. Somos incapazes de perceber carros e lojas. Marcovaldo, assim como eu, idioticamente caminha pela cidade tendo olhos apenas para os ridículos fiapos de natureza que insistem em persistir.
Um pássaro que passa perdido, um cogumelo que brota em ponto de ônibus, uma planta presa em escritório, um peixe de riacho apodrecido, uma flor e uma borboleta condenada, uma árvore em meio ao caos. Marcovaldo se liga a tudo que é lembrete de natureza. Seu olhar reconhece importância somente no que deveria ser vivo. Eu e Marcovaldo somos prisioneiros da saudade daquilo que jamais conhecemos. Somos inapelávelmente patéticos.
Italo Calvino é o tipo de escritor mago. Seu dom não é o da observação ou da escrita. Seu dom é o da criação. Calvino cria barões que não pisam no chão, viscondes partidos ao meio, cidades invisíveis, amores ridículos. Todos os livros que tive o prazer de ler ( e Calvino é um prazer ) são festas de invenção. Calvino diante da folha em branco a preenche de fantasia e nos dá inesperados. Mas aqui, neste belo Marcovaldo, ele é quase realista. Quase. Pois em meio a verdade comum da vida na cidade, em meio a comédia que tanto lembra os bons filmes de Totó e de Monicelli, nasce a criação de Calvino, o fantástico surge, a surpresa. O livro faz rir. O livro nos faz tristes. Como em Fellini.
Coelho de laboratório, pombo da poluição, rio envenenado, planta em agonia, gato humanizado, noite na praça insone, montanha bosque de hospital. O natural-perfeito sempre manchado pela cidade podre. Luzes de neon que obscurecem a Lua. Marcovaldo ansia pela chuva e se perde encantado em nevoeiros espessos. Comemora quando a neve esconde a cidade. O livro de Marcovaldo/eu é feito de vários contos curtos, todos com uma estação do ano, a cidade de indústrias e a família de Marcovaldo. O livro é a mão de Italo Calvino desenhando quadros de desolação cômica. Faz rir.
Longe de ser uma obra-prima como são Cidades Invisíveis e As Cosmicômicas, este é um cativante relato sobre um imbecil simpático. A luta de Marcovaldo está perdida desde sempre. Mas é nessa derrota que reside sua nobreza.