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TIRANT LO BLANC - JOANOT MARTORELL

Escrito e publicado no fim do século XV, quando os romances de cavalaria já se encontravam em declínio, este livro, catalão, é ainda, mais de 500 anos depois, legível. Numa Inglaterra imaginária, acompanhamos a expulsão dos sarracenos por reis e cavaleiros míticos. Há batalhas imensas e sangue a rodo, e o que se conta, apesar de certos exageros, é crível ( em se tratando de sagas medievais ). Não há monstros nem feiticeiros. Quero então destacar dois fatos que passam despercebidos pelos inteligentinhos de hoje. -------------------------- Primeiro: Não se pode falar de idade média sem falar de religião. Ela é Filosofia e ela é Poder. Tende-se a se forçar hoje a importância do dinheiro naqueles tempos. Mas não! A relação do homem com Deus é o que guia toda vida cotidiana. Segundo: O cavaleiro não é apenas alguém que vive em ordens militares ( que são mínimas ). Ele é um homem que jura à Deus defender os fracos, as viúvas, as donzelas em perigo. Sua submissão à mulher honrada ( a não prostituta, pois essa abriu mão de qualquer defesa ), é total. Ele é fatalista, sabe estar sempre à morte e pensa, com acerto, que uma morte honrada é preferível. ---------------- Um aviso a algum futuro leitor: livros escritos antes do romantismo não são do tipo ao qual estamos acostumados. Aprendemos a ler autores que são, todos, auto reflexivos. Autores que se examinam, que revelam aquilo que se passa dentro do personagem. Mais que agir, eles pensam. Aqui não. Tirant age. O que lemos é a descrição de ações corporais e de diálogos falados, não pensados. Muito leitor estranha isso, e ao ler Homero ou Chaucer, Petrônio ou Boccacio, estranha a aparente falta de "vida interior" dos caracteres e de profundidade do narrador. Tola leitura! A narrativa antiga é pura ação, é vida corporal, é feita da relação do EU com a sociedade e muito raramente do EU com sua consciência. Quem quisesse ler algo sobre a alma procurava a filosofia e não uma saga ou um romance épico. ---------------- Imenso e delicioso, Tirant Lo Blanc vale ser lido.

MERLIN E O MUNDO DIVIDIDO

Foi nos primeiros anos do século XIX que os irmãos Schlegel lançaram sua versão da vida de Merlin, o mago. Para isso eles seguiram a versão medieval de Boron, mas tomaram certas liberdades do romantismo alemão. Leio essa obra, mais uma vez, e percebo que toda a narrativa está imersa na filosofia dos gnósticos. ---------------- Merlin nasce de uma virgem devota de Deus, e da intervenção Diabo, que cruza com a virgem enquanto ela dorme. Satã imaginou poder assim desafiar a Deus, mas seu plano dá apenas 50% certo. Merlin terá o poder do Demônio e de Deus em si mesmo. Sua mãe, após ser constatado permanecer virgem mesmo após o parto, irá para um convento e Merlin, que aos 4 anos já fala como adulto e tem o poder de um gênio, irá usar o dom de ver o futuro para assim se tornar poderoso. Ao final de sua vida, Merlin será vencido pelo Mal. ---------------- Está aí, exposta nessa popularíssima saga, o poder duplo que um homem pode alcançar. O espiritual e o racional através de Deus, e o poder temporal e corporal via forças do Mal. Merlin usa os dois sem nenhum pudor. ---------------- Recebo um texto gnóstico onde se fala que a Cobra simboliza, na história de Adão e Eva, o poder da razão. Ao se deixar tocar pela cobra, Eva abre os olhos da razão e se distingue dos animais. Nesse momento ela entende ser outra que não um bicho. Ela adquire a consciência do tempo e portanto da morte. A maldição que se abate sobre ela é a tristeza da finitude. --------------- Como se dá esse contato? Como a Cobra despertou Eva? Várias versões são ditas, desde o fruto proibido ( um figo ou uma maçã ), até o veneno inoculado por uma mordida. A mais simbólica diz que a serpente penetrou Eva, entrou dentro de seu corpo e se fez parte dela. Assim, Eva seduziria Adão e através do sexo lhe deu a razão de se saber humano, mas também a finitude. ------------------- Não nos esqueçamos que nossa consciência da finitude nasce geralmente na puberdade, com o despertar do sexo. É como se ao adquirir o pleno uso do corpo, seja para gerar uma vida, seja para o gozo, encontrássemos também a certeza do fim. Saímos do mundo puramente espiritual-mágico-criativo e adentramos a realidade deste mundo corpóreo. É uma história maravilhosa, a de Eva, onde ela desperta Adão após ser despertada pela cobra, um falo de certo modo. Saiba que todos nós somos Adão e Eva, mesmo aqueles que lutam para jamais sair do estágio infantil da vida, mas muitos poucos são Merlin. ------------------- Pois Merlin já nasce adulto, portanto um não-criança, com a plena consciência do bem e do mal e tendo a seu alcance tudo que os dois mundos podem nos dar. Ele cura e protege, mas ele também destroi e ambiciona. É sempre dúbio, parece optar pelo mal, mas percebemos então que toda sua vida foi uma trama para construção da Ordem e da Justiça. Traído, nunca os medievais se esquecem que este mundo é do mal, Merlin perde ao fim.

UM TEXTO MAU ( NÃO LEIA SE VOCE NÃO QUER FICAR CHATEADO )

Ela tatuou 8 símbolos satânicos no corpo. Dentre eles, um pentagrama no peito e uma cabeça de bode na coxa. Hoje muita gente faz isso, há um modismo bobo sobre bruxaria, Wicca, Satã etc. Mas ela odeia Wicca. Tem uma coleção de livros satanicos, inclusive alguns que ensinam sacrifícos animais. Não, ela não mata bichos. E não faz voodoo. Mas quando a vi envolvida nisso, temi pela sua sorte. O mal atrai o mal, não é? Pois veja: ela morava em um barraco e mal ganhava o bastante para comer. Então houve um convite para trabalho, depois mais um, e hoje ela ganha 10 mil reais por mês, fazendo aquilo que ama fazer. Tenha calma quem me lê, voce já vai entender onde quero chegar. ------------------ Sou de um país onde um homem que passou passivamente esperando a ajuda de Deus, perdeu, e um outro, partidário óbvio da matéria pura, venceu. Vamos falar da Idade Média agora. -------------------- Na França surge no sul um movimento herético: o catarismo. Sua filosofia é terrível, mas estranhamente faz sentido: Tudo o que Deus faz é Divino e portanto IMORTAL. Tudo que seja falível, mortal, limitado é obra de Satã. Isso explica o porque da existência da morte, do mal, da doença, da dor. Obras de Deus são nossa ALMA imortal, o amor. Deus criou a vida imortal e Satã nos ilude com a matéria falível. O perigo desse pensamento é que ele pode, e levou, ao desprezo pela vida material. O ódio ao corpo, à natureza, à matéria, tudo sendo visto como obra da maldade. O papa logo combateu esse grupo e os destruiu sem piedade. Todos foram mortos, inclusive vários nobres que adotaram essa fé. ------------- O outro lado dessa crença diz que o Homem deve adotar dois comportamentos: a retidão e a bondade nos assuntos de Deus, a malícia e a maldade nos assuntos da matéria. Volto então ao tema exposto: dinheiro é assunto do mal pois é material, temporal e falível. Minha amiga passa a vencer a partir do momento em que usa essa força. Claro, mera coincidência....ou não? Pois se dinheiro é um dos temas mais materiais e portanto satanico, política é a rainha do mal. Confiar no bem e esperar a justiça NUNCA significaram vitória. Mesmo cristãos como Thatcher, Reagan ou Churchill tinham um lado, secreto, de bastidores, terrivelmente duro, cruel, maldoso. Jamais venceriam se fossem bons e pacientes. A bondade havia, para a família, os amigos, o povo, que eles amavam, mas para os adversários, para o jogo de poder, havia a maldade. Reagan, unido a Thatcher e ao papa João Paulo, venceu o império soviético. Se ajoelhando e rezando? Não seja ingênuo. A vida material não é do reino do bem. Mesmo o papa tinha um lado bastante duro. E sabia usar o mal para obter um ganho, no caso dele, o Bem do catolicismo. Grandes personalidades viviam e vivem nessa dualidade: usar o mal para ganhar um bem. Mas a maioria deles usa o mal apenas para vencer egoísticamente. Usam o mal para aumentar o mal. Dinheiro, sexo e vaidade. ----------------- Eu creio nisso? Não sei. Mas confesso que neste momento, em que o mal vence mais uma vez, não há como não ser tentado por esse pensamento. Minha amiga está comendo em restaurantes de 300 reais o prato. O filho do chefe do tráfico chega na escola com motorista. Os outros alunos se sentem humilhados. Goethe sabia disso. Fausto é a história desse pacto. Para vencer neste mundo, o das aparências, é preciso saber lidar com o MAL. ------------------- Olhe para a Europa e veja um bando de fofos líderes iludidos. E observe um único que sabe usar a força da maldade. ( Talvez dois, pois a Ucrania nada tem de bom, é um país tomado por tráfico de sexo, drogas e lavagem de dinheiro ). A diferença é que Putin, maldoso e sempre esperto, realmente ama a Russia. Ele usa sua malícia para o bem de seu amor real, a nação. Já o outro é apenas mal. Usa essa força para proveito próprio. Não exita em sacrificar seu povo numa guerra sem chance de vitótia. Mas ele se dá bem. O dinheiro americano jorra sem parar para seu bolso. -------------- Dentro desta filosofia, Trump perdeu a eleição por não ser mal o bastante. Topou com algo pior que ele: o partido Democrata. Quanto a Bolsonaro, seu comportamento foi tolo como o de um coroinha de igreja. Achou que por intervenção divina a verdade surgiria e a justiça seria feita. Foi patético. Os adversários, firmes com os dois pés no chão, estão rindo. Satanicamente. ----------------------------- Haverá um preço cobrado por Satã? Essa a grande questão. Talvez a solidão, um câncer ao fim da vida, um sentimento de vazio? Ou o Inferno na eternidade. O problema é que as coisas de Deus nos são imperceptíveis por serem invisíveis à nossos sentidos, enquanto as coisa do mal estão diante de nossos olhos, todo o tempo. Percebeu o perigo dessa heresia?

Cantos Gregorianos Marianos em Português [CD Magnificat I]

CORO DE MONJES DO MONASTÉRIO BENEDICTINO DE SANTO DOMINGO DE SILOS

Em 1990, na Espanha, uma radio resolveu tocar estas músicas, gravadas originalmente em 1973, na hora do rush. Os motoristas telefonaram durante dias à rádio dizendo que sentiam-se relaxados enquanto as ouviam. O índice de buzinadas e stress caiu. A notícia se espalhou pelo mundo e o disco, depois de 17 anos de lançado, vendeu um milhão de cds no mundo afora. -------------------- É a música mais antiga que voce poderá ouvir na vida. Ela era cantada nos mosteiros por volta do ano 400 de nossa era. Mas entendidos dizem que ela descende, de forma direta, daquilo que era cantado no Templo de Salomão. O que lhe daria mais de 2000 anos de vida. Pelo fato de não termos notações legíveis do que se cantava entre egípcios ou gregos, nada nunca será mais antigo que isto. ----------------------------- Não pense que é fácil ou simples de entender este tipo de música. Ela é monofonica. Mesmo havendo, e há, mais de uma voz cantando ao mesmo tempo, todas as vozes cantam a mesma linha, daí o "mono". Nós, seres da polifonia, mesmo na forma mais simplórida de canção, um simples cantor de voz e violão, esperamos sempre pelo menos duas linhas de música: a voz e os acordes que a acompanham. E caso voce seja antimusical, perceba agora: a linha que a voz canta não é igual aquela que o violão emite. ----------------- Coral é para nós Haendel, e Haendel usa dezenas de linhas vocais ao mesmo tempo. Melodia é para nós Mozart, e Mozart usa voz central e mais dezenas de harmonias. Aqui não. As vozes cantam todas a mesma linha, o que nos dá uma sensação de monotonia. Não espere a sensação do maravilhoso. A música, sinto dizer, é monótona. ----------------------- Mas tem valor sim. O valor de uma lembrança de um mundo morto. Morto e tão morto que jamais voltará. O modo como essas pessoas entendiam a música nos é irrecuperável. O coração delas é um outro, nada tem a ver com o nosso. O cd merece ser escutado nesse sentido. ------------------ Quanto aos motoristas de 1990...sim, ele relaxa.

UMA COMPARAÇÃO ENTRE DOIS MUNDOS.

   Leio em seguida a Ilíada este livro de 1440. É um choque absoluto. E serve, muito, para expor o que mudou entre esses dois mundos tão opostos.
   A Imitação de Cristo foi, no começo do livro impresso, um best seller. Todo cristão deveria o conhecer de cor, e toda Europa era então cristã. Poderíamos dizer inclusive que o século XV foi o último século do cristianismo como união europeia. Em seguida viria Lutero.
   Thomas de Kempis nasceu perto de Colônia, na Alemanha. Foi padre agostiniano e morreu aos 91 anos. Seu mosteiro ficava na Holanda e lá ele era responsável por receber os noviços. Seu livro, sucesso desde sempre, ensina a seguir os passos de Cristo. Pode ser resumido em 3 preceitos:
1- Devemos viver dentro de nós mesmos, pois é lá que Deus fala conosco.
2- Devemos estar prontos para a dor, pois viver é sofrer.
3- Devemos negar a vaidade. A humildade é o que nos leva ao caminho.
   Na Ilíada existe dor. Ao contrário do que pensam os anticristãos, a vida na Grécia era tomada pelo medo. Os deuses vigiavam o mundo e esses deuses eram imprevisíveis. É estranho ver que nenhum deles tem uma ética. São deuses imprevisíveis e temperamentais. Tudo o que o homem pode fazer para os agradar é homenageá-los com sacrifícios e templos. Cada dia e cada manifestação da natureza pode ser um presságio. O homem da Ilíada vive assustado e em guerra.
  No cristianismo há uma negação de tudo isso. O cristão conhece a Lei de Deus. São regras claras e se não forem seguidas, voce é livre para as negar, as consequências não virão aqui e agora, elas cairão sobre o homem no futuro. Agradar a Deus é negar o mundo da natureza, é viver dentro de si, isolado do mundo. Não se assuste com esse "negar o mundo". Pode haver caridade, mas o centro dessa fé é a busca por Deus dentro de si mesmo. E Ele se encontra na negação da vida e na negação do eu. Eis a grande mudança: na Grécia e no mundo antigo, o herói é aquele que tem um ego imenso. São vaidosos, arrogantes, violentos, se impõe pela força. Aqui, a partir de Jesus, o herói nega seu próprio valor. Ele é apenas mais um, o último dos últimos. Não tem força física, não tem vaidade, na verdade a odeia, não se vê como nada mais que um pecador, um trapo, um ser feito para padecer. É um tipo de herói não heroico, um herói inconsciente, um herói que se manifesta em bondade e altruísmo por graça de Deus e jamais por mérito próprio.
   Esse cristianismo se perdeu. Mas foi hegemônico por 1000 anos ( de 500dc à 1.500 mais ou menos ). Com a ciência o homem sai de dentro de si e passa a valorizar o olhar sobre as coisas. Conhecer deixa de ser entrar para seu centro e passa a ser ir ao mundo e o explorar. Esse o credo dos últimos 500 anos.
   Um belo livro este.
  

QUADRIVIUM, AS QUATRO ARTES LIBERAIS CLÁSSICAS DA ARITMÉTICA, DA GEOMETRIA, DA MÚSICA E DA COSMOLOGIA.

   Não meus queridos, não é um livro onde se diz que a Terra é plana. Nem se fala de magia. Nem mesmo de Deus se fala. Ele nada tem de místico, de estranho ou de perturbador. Mas então, que livro é este?
   Bem, é uma decepção com certeza. Deixa explicar para você:
   São dois volumes, este é o segundo, sendo que o outro fala de gramática e de retórica. Se voce ler os dois, diz a editora, voce terá uma ideia daquilo que um bom aluno da renascença deveria saber. Até aí a ideia é interessante. Um jovem estudante de Bologna ou de Oxford, em 1500, deveria ler Pitágoras, Platão, Ptolomeu, Santo Tomás, Roger Bacon etc...claro que em latim e em grego, e claro que ele teria de ler suas obras completas. Mas...o que temos aqui é uma muito pequena explicação, escrita HOJE, sobre aquilo que eles sabiam ENTÃO. A sensação é de um resuminho para o ENEM.
   O tema é vasto e é fascinante, as ilustrações são ótimas, mas fica tudo com a profundidade de apostilas.
   Em geometria ficamos tomando conhecimento das proporções que formam o universo. O modo como elas se repetem sem parar. Das medidas do ínfimo e do imenso, do modo como esses totais podem ser reduzidos sempre à mesma proporção. Da música temos o mais difícil dos postulados. Difícil ser entendido por quem não lê partitura. Mas há o fato de que toda harmonia se resume a combinações matemáticas. Uma equação errada traz a desarmonia. É fato conhecido por todo músico sério.
  Temos so triângulos como base para toda a construção da natureza, a sequência de Fibonaci como paradigma de plantas, animais e estrelas ( 1,1,2,3,5,8,13,21....). É sim, um conhecimento não mais discutido, mas isso tudo merecia uma obra muito maior.
   Pensamento: Em 2518, qual será a lembrança daquilo que um jovem médio aprende na escola?

Inside the mystery of medieval manuscripts - BBC Newsnight



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MANUSCRITOS NOTÁVEIS - CHRISTOPHER DE HAMEL...UMA VIAGEM MARAVILHOSA...

   A mais brilhante sacada de Jung foi aquela que diz que após mil anos de era medieval, a Europa ainda carrega em seu inconsciente toda delicia e dor da idade dos santos, das guerras e do código de cavalaria. Demorei um tempo imenso em minha vida para aceitar esse fato. Leitor de Voltaire e depois ateu orgulhoso, reprimi uma herança que em mim é muito viva. Sou da primeira geração não europeia, não camponesa, não plebeia, não serva. Muitos dos hábitos e costumes que vi em minha casa seriam considerados medievais por pessoas de centros mais modernos e mais burgueses. Conheço esse mundo "das trevas". E sei que de treva nada teve. Foi uma época de busca incessante por explicações, por razão, por vitórias e por vida. Mais vida.
  O autor deste livro é paleontólogo. Ou seja, ele estuda livros antigos, letramento, rastros escritos. Feliz, bem humorado, ele nos leva numa viagem por vários países. Em cada parada ele visita uma biblioteca onde nos mostra um antigo livro medieval. Livros raros, livros delicados, livros com mais de mil anos de história. Livros que quase ninguém pode ver. Muito menos tocar.
  De Hamel começa pelo mais antigo, Os Evangelhos de Santo Agostinho, que se encontra na Inglaterra, em Canterbury. Escrito por volta de 400 DC, ele inaugura a idade média. O autor descreve sua viagem, como o livro está guardado, e a aparência da biblioteca. Depois fala da capa, tipo de escrita, iluminuras, quem foram seus donos, onde esteve. E esta edição, linda, traz ilustrações soberbas. Podemos ver a fragilidade das páginas, das capas, a beleza da escrita, dos desenhos, das iluminuras. Para quem ama livros, o objeto que define nossa civilização, é um passeio de sonho. Livros e leilões da Sothebys, livros que foram roubadas pelos nazistas, livros que sumiram e surgiram como por milagre.
  Entramos no cotidiano dos donos desses livros, nobres, reis e rainhas. Entendemos o uso desses volumes, como eram feitos, como eram comprados, o status que eles davam a seu possuidor. Por mais de 600 páginas, e numa viagem por 12 livros que abrangem mais de mil anos, nos acostumamos com esse mundo encantado, assustado e brincalhão. Um mundo distante de nós, mas sempre presente em nossos sonhos e em nossa arte.
  Senti luto quando o terminei. Foi como voltar das férias. Foi como voltar ao cotidiano banal. Um livro que vou sempre amar.

Cantiga de Maio "O que da guerra levou cavaleiros"



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A IMAGEM DESCARTADA - C.S. LEWIS ( escrevemos para eternizar a vida ).

   Lewis não foi um autor de livros juvenis. Ele foi também um autor de livros infantis. Mas, assim como Tolkien foi um linguista em Oxford e Cambridge, Lewis foi um professor de literatura medieval nas duas instituições. Este é seu último livro, uma coletânea de uma série de palestras dadas em 1963.
  O objetivo do livro não é falar de literatura. É tentar aproximar o mundo medieval de nossa época. Jogar ao lixo preconceitos e mostrar como era a cultura medieval. E ele me surpreendeu muito. Ao contrário do senso comum de 2017, a idade média NÃO FOI um tempo de improviso e de falta de ordem. O homem medieval tinha um profundo amor pela ordem. Sua grande paixão era catalogar, listar, colocar tudo em uma hierarquia. Desse modo, havia a hierarquia da guerra, o catálogo do amor, o modo certo de se escrever, a maneira de ver a vida. Lewis fala da catedral, da igreja, dos anjos, dos livros, da zoologia, da geografia e do espaço sideral.
  Ao contrário do que se pensa, a Terra era considerada redonda, mas centro e periferia do Cosmos. Centro por ser o alvo das influências planetárias; periferia por ser o lugar menos elevado do Cosmos. A Terra era "morta" por não se mover, os planetas eram considerados "animais", seres viventes que influenciavam mas não dirigiam a vida do homem. ( Sim, isso é astrologia ). Talvez a imagem mais bela do livro de Lewis seja essa: O homem medieval via o espaço não como um lugar "lá fora", mas sim um lugar "lá dentro". O espaço era cheio de luz, de anjos, de planetas vivos, de estrelas animadas, de sons, de movimentos. O espaço era olhado como "o alto", o ponto mais perfeito e elevado. O espaço era festa, objetivo de vida, vida absoluta. Daí se deduz que esse homem via a morte como ilusão, a vida era a condição natural do cosmos. Cada planeta vivo em sua órbita, cada espaço escuro, noite de um dia luminoso, cada estrela reino de anjos.
  Homens letrados medievais tinham um profundo amor pelos livros. Para eles tudo que era escrito era "verdadeiro". Se Platão escreveu, mil anos antes, sobre os hermafroditas, então esses seres são uma verdade. Não importa se eles existiram ou não, por terem sido pensados e escritos, eles são parte do mundo. O mesmo se dá com a história. Heitor ou Ajax existiram pois estão na Ilíada. Eles fazem parte da história e a história existe para divertir e para ensinar. Se desconhece o conceito de informar. O que importa é ensinar e divertir.
  Esse mundo se revela, desse modo, pleno de interesse. É um mundo onde tudo importa. Cada pedra e cada animal, cada texto e cada lenda oral, tudo tem algo a ensinar e a dizer. Então o autor medieval escreve com paixão sobre aquilo que a vida é. Nossa dificuldade em os ler é o fato de acharmos que eles "perdem muito tempo" descrevendo o trivial. Esquecemos que isso ocorre porque para esses autores tudo na vida é digno de espanto. A descrição de uma fonte, de uma fada ou de uma parede é tão importante quanto a vida de um rei ou um santo. Tudo é da vida e tudo DEVE SER HOMENAGEADO. A escrita medieval é sempre uma homenagem, a vontade de eternizar o mundo na escrita. O que se escreve é o que se sabe, o que se sabe é amado.
  Lewis diz que um escritor medieval sentiria pena de um autor moderno. Acharia uma pena ele ter de inventar histórias. Isso lhe mostraria que o mundo deveria ser indigno de ser homenageado. O medieval pegava o que já existia e o descrevia. O atual imagina e descreve sua imaginação.
  Não falarei dos anjos pois esse não foi o assunto que mais me seduziu neste muito interessante livro. Termino dizendo que talvez voce tenha pensado que a biografia seria então um tipo de literatura medieval. A resposta é sim e não. Sim porque ele pega o real e vê interesse nisso. Mas essa biografia só terá esse espírito medieval se tiver por objetivo "ensinar e maravilhar". Uma biografia puramente jornalística está tão longe da idade média como o cinema de ação está próximo desse espírito.
 

CS LEWIS DIZ O QUE FOI A IDADE MÉDIA.

   Contos e poemas fantásticos são uma parte da idade média. Assim como peças religiosas. O que Lewis destaca, em suas últimas aulas, é que o ponto central do pensamento medieval é o desejo de ordenar, catalogar, salva o universo. ( Salvar no sentido que hoje damos a "salvar um texto ou uma foto no arquivo de nosso computador ). Lewis diz que nenhuma invenção moderna deixaria o homem medieval mais feliz que a enciclopédia. Com sua ordem, índice e abrangência, ela pareceria ao medieval a realização suprema de um sonho.
  O homem medieval amava o livro. E acreditava em tudo que estava escrito. Para ele, se estava num volume, era uma verdade. Mas esse homem conhecia textos que se negavam, que brigavam entre si, e daí vinha a vontade de os ordenar, de construir um pensamento, um sistema que os abrangesse, em ordem e sem conflito. Essa é a raiz de toda filosofia medieval, a ordem, a classificação, a criação de um tipo de sistema onde tudo se encaixa. Hierarquicamente.
  Esse PANO DE FUNDO, preste atenção nessa frase, PANO DE FUNDO, criou a ordem heráldica para a guerra, criou o amor cortês para o sexo e toda a cerimônia da igreja para a religião. Um pano de fundo feito de ordem, ritos, deveres, costumes, a serem usados a fim de dar um sistema coeso àquilo que antes lhes parecia caótico.
  A Divina Comédia é o ápice desse modo de pensamento, a transformação do além em um sistema ordenado, mecânico, coeso, infalível. Longe da ideia popular, de que o homem medieval era um tipo de beberrão infantil, ele era um amante de sistemas, um buscador de ordem, um construtor de catedrais.
  PANO DE FUNDO. Lewis diz que se o pano de fundo de toda obra medieval é o sistema, no século XX é Freud. Toda obra traz as teorias de Freud como pano de fundo, como um tipo de cenário onde o drama acontece. Interessante ele observar, e acertar, que logo esse pano de fundo poderia ser trocado por Einstein. Ou seja, a relatividade e a ciência como pano de fundo às obras da arte e do pensamento.
  Outro fato é que Lewis conta que toda grande obra vai contra esse pano de fundo. Desse modo, Freud seria destruído pelos grandes pensadores ou artistas, assim como os sistemas seriam corrompidos por Shakespeare após a idade média.

MONGES

Quando os vikings invadiram a Europa, e estupraram, queimaram, massacraram, nosso mundo sobreviveu graças a meros monges irlandeses. Eles esconderam textos antigos e esperaram a poeira baixar. Então andaram a pé por todo o continente, fundando mosteiros, escolas. Sem eles a Europa seria hoje um apêndice do mundo e eu seria um muçulmano. Quais serão os monges de hoje? Quem salvará os textos?
Quando comecei a ler jornais, nos cadernos culturais os autores vivos mais comentados eram NABOKOV, BORGES, CORTÁZAR, BELLOW, GRAHAM GREENE, BECKETT. Ainda se falava de Gide e Malraux. Hoje se fala do que? Aliás, ainda há caderno cultural?
Hoje um amigo falou de Paulo Francis. Francis dizia que quando fumava maconha ouvia Wagner a todo volume.
Em 1752 Samuel Johnson mandou uma carta para um nobre inglês dizendo dispensar um mecenas. Um artista não mais obedeceria a ninguém. O publico culto o sustentaria. O mundo do que conhecemos nasceu nesse dia. Ainda existe?

POEMA DO CID, EM FORMA DE PROSA POR MARIA DO SOCORRO ALMEIDA

   Escrito em 1140, o poema do Cid é o primeiro texto conhecido da península Ibérica. Então, em letras, pode-se dizer ser nosso mais antigo testemunho. Antes dele houve A Canção de Rolando na França, e o mais revelador é dizer as diferenças entre um e outro, já que ambos são sagas sobre cavaleiros medievais. Heróis fundadores de uma nação.
  Rolando é nobre. E em toda a canção só há lugar para nobres. O sangue azul manda. E o rei, Carlos Magno é Deus na Terra. Nas aventuras tudo pode acontecer. Magia acontece, donzelas morrem de amor e na verdade Rolando deseja morrer. Nada de real ou de cotidianamente vulgar acontece. Como nobre, nunca se fala em dinheiro, luta-se por honra. O inimigo é ruim, incrivelmente ruim. E o mais importante, o tempo nunca passa, na canção todos terminam como começaram. No mundo de Rolando o bom morre bom, o mal morre mal, nada muda, nada pode mudar.
  Vamos ao Cid. Ele não é nobre. Ele é um pequeno burguês que almeja ser rico. Caído em desgraça diante de seu rei, ele luta contra os inimigos para readquirir sua honra perdida. No Cid há de tudo: nobres, gente comum, judeus, árabes, reis. Inexiste a magia, magos não há. As lutas são ganhas por estratégia e por força, e o mais incrível: o Cid luta para ganhar bens, dinheiro e ouro. Ele divide os ganhos com seus soldados, todos lutando por isso, para enriquecer. O inimigo não é de todo ruim, ele pode se tornar aliado. E o tempo passa, as pessoas mudam, os lugares são descritos, o Cid envelhece, se cansa, e até mentir ele mente. A saga da Espanha é real, a francesa é nobre. A espanhola admite tudo do homem, os erros, e nunca conta com a magia. A de Rolando é irreal ao extremo. A magia salva o bem, ninguém muda jamais e um herói é perfeito. 
  Há como fazer analogias com aquilo que os dois países são hoje? Não, ambos mudaram demais em quase 10 séculos de história e de misturas. Mas algo ficou. A França continua se vendo como reino da nobreza, de finura e de perfeição. Dogmática, empedernida, protegida pelos deuses.
  Na Espanha ficou essa consciência do possível. Do relativismo, do caldo de interesses e do dinheiro como motivo central de tudo. Deus atende a quem se sacrifica. E para vencer é preciso lutar, sofrer e se precaver. Vale tudo, pois nada o ajudará. Para o espanhol o mundo é de pedra. Para a França o bem vence sempre. O corajoso, o inteligente, o belo, vencerá. O mal, irredutível, tentará, mas a França vencerá. Sempre. Para o francês o mundo é ideia.

E NASCE A LUZ INTERIOR!

   Primeiro foi Platão. Dois mundos. O mundo onde vivemos e o mundo perfeito das ideias. Aprender, viver, é relembrar onde já estivemos um dia, o universo onde a inteligência manda e tudo é ideal. Aqui, sombras. Lá, a luz.
  No ano 470 de nossa era, o fim de Roma. O começo da Idade Média. Bárbaros invadem a Itália. Seitas hereges brotam. Surge Agostinho. Pagão, aos 30 anos ele se faz cristão. E tem, para salvar o cristianismo, uma ideia genial. Unir à fé cristã, a lógica grega. O ocidente nasce exatamente nesse momento. Este nosso mundo onde lutamos para unir crença e razão, dogma com liberdade, espírito e carne.
  Agostinho criou a interioridade. Foi o primeiro autor a falar em vida interior. Surpreso? Explico.
  Talvez voce já tenha lido Homero. Ou Ésquilo. Sófocles. Virgilio. E tenha sentido que em meio a toda aquela beleza, criação, filosofia, falta alguma coisa. Parece que há uma certa superficialidade estranha. Como superficialidade? Eles falam sobre coisas graves, sérias, reais! Sim, é vero, mas...não há vida interior. Tudo neles é para fora, é ação, ato. As coisas só existem se forem ditas, discutidas, feitas, o ser só existe no convívio com a comunidade. Na dialética, no diálogo, na conversa. Impossível nesse mundo a criação do romance. Tudo é para fora.
  Agostinho cria um raciocínio que salva a igreja e que nos cria, mesmo a voces, amigos ateus. O pensamento é tão arraigado em nós que lhe parecerá óbvio, mas creia-me, foi uma revolução!
  Ele disse: Se Deus criou o homem, e esse homem foi feito à Sua semelhança, então, lógico, cada homem tem em si algo de divino, possui em seu INTERIOR uma fagulha divina. 
  As consequências dessa afirmação foram tremendas! Vamos à algumas:
  Todo homem merece o respeito. Todo homem faz parte da criação divina. 
  Um homem pode ser destruído fisicamente, mas sua fagulha não. Voce pode prender um corpo, mas nunca uma alma.
  A sabedoria está dentro de cada um e não lá fora. Deus vive dentro do ser. 
  Aprender é encontrar um caminho para essa fagulha. 
  Agostinho dava assim toda a direção para onde fluiria a filosofia e a igreja dos próximos mil anos. Santo Tomás de Aquino faria alguns acréscimos, mas as fundações estavam dadas. A partir da renascença, com a ciência experimental, começaria a se procurar a verdade no mundo lá de fora, mas até hoje, em 2015, mil e quinhentos anos mais tarde, ainda pensamos em iluminação interior, seja via arte, fé ou descoberta científica. 
  Tudo isso me foi passado num curso de filosofia que tenho feito. Diz a professora que Agostinho remete direto à Descartes e Wittgeinstein. Como pode? Digo para ela que isso foi uma...revolução! Que estou pasmo! Ela responde, Sim, é uma revolução, ele inaugura a interioridade na história do pensamento. Cada um passa a ser responsável pela sua fé. Ele não podia prever, mas isso abriu caminho para a Reforma Protestante e para o agnosticismo. Se cada um deve olhar para dentro de si à procura de Deus, nasce a possibilidade de nada se encontrar ou de se encontrar um Deus novo. 
  Estava feita a cisão. Nascida dentro do próprio cristianismo. O homem como o reconhecemos começa a partir daí. De certo modo Agostinho foi o primeiro contemporâneo.

AMOR ROMÂNTICO FEITO VERDADE

   Como ela pode ter adivinhado? Um mistério se faz aqui, ela não sabe, não tem como saber, mas ela sabe. Como? Talvez ela seja um sonho e nada do que aqui agora relato tenha de fato acontecido. Ou não?
   Meu desejo maior sempre esteve vivo e forte no mundo dos menestréis. Nos cantores-poetas, naqueles que compuseram as canções de amigo. Palavras ditas as musas, senhoras que viviam sempre no limite do desejo e da satisfação. Mas eu queria viver nesse mundo sabendo ser impossível o encontrar em meu tempo de gozo imediato. Somente um tipo de jogo masoquista poderia criar um simulacro pobre daquilo que em 1.200 era comum. 
  Então ela veio. Inesperadamente. Me dando o nome de amigo e mostrando seu corpo aos poucos. Excitando meu desejo e negando sua satisfação. Adiando indefinidamente o prêmio. Ela faz testes. E eu os venço. Sem alcançar, ainda, o ganho. Possuo a certeza da vitória, mas vivo na incerteza de quando ela virá. 
  Semanas que viram meses. Nos vendo sempre, flertando sempre, desejando sempre, e nunca tendo. Será esse o amor sem fim?
  Meu corpo arde e eu rolo de desejo. Quero ficar só para poder visualizar seus seios. Quero guardar comigo seu cheiro. Ela é minha, mas não é. Como se um outro ser fosse explodir dentro de mim, vivo fértil, dando vida aos lugares onde vou. Sinto potência em cada momento que respiro. Desde quando me sentia tão vivo? 
   E me consumo na expectativa. Quando a terei? Quando terminará essa espera? Deus, ajudai-me! Meus amigos dizem que estou feliz. Estarei louco? 
  E ela insiste em me chamar de amigo. Mesmo dando a mim coisas que a amigo não se dão. Fidelidade, compromisso e atenção constante. Planejamos um futuro. Sabemos que estaremos juntos. Mas não nos consumimos. E meu corpo exige sua posse. Que não vem.
  Virgindade que não temos mas que aqui fazemos. Porque?
  Terão os deuses me concedido essa graça que tanto pedi? Viver na carne o que meus ídolos viveram? E assim descobrir sua beleza? 
  Porque eu sou feliz e temo perder esta beleza. Temo perder essa tensão que nos amarra unidos em vida que se renova na esperança da graça. E ela sabe disso tudo. Como eu não sei. talvez toda mulher saiba mas poucas a executem. Ela faz de mim o cavaleiro. Até quando?
  Vivo em desejo por ela. E não me satisfaço nem mesmo a sós. O desejo dura horas, dias, meses. Insatisfeito ele me faz viver inteiro, desperto, contido, decidido, comprometido, para sempre. 
  Cheio desse desejo sinto-me invulnerável. Eis o segredo da castidade! Ela nos deixa na sensação da invulnerabilidade. Intocável e invencível. Cocaína natural. 
  Serei para sempre? Eis o amor de Eros. Cada momento se torna erótico pois cada segundo está tingido pela cor do desejo vivo. Quando irei tê-la? Quando nascerá esse dia de graça? 
  Amada. Deixe-me olhar mais uma vez seus seios que me deixam louco. Deixe-me dormir mais uma vez ao seu lado. Liberte-me prendendo-me em voce.
  Eu nunca ousei imaginar que assim fosse. Ela me disse que seus olhos brilham ao me ouvir e que sua boca vomita arco-iris. Chegará o dia em que iremos ver um unicórnio. 
  Será essa a loucura que temi por toda minha vida? 
  Vivo aquilo que nasci para ter.
  Amor, Eros, Vida, Crescei.

OS CONTOS DE CANTERBURY- GEOFFREY CHAUCER

   Um grupo de homens e mulheres fogem da peste. No caminho, para se distrair, fazem uma aposta: cada um deles irá contar um conto. O que for eleito melhor ganhará um jantar. E lá se vão eles.
  Se voce pensou no Decameron de Boccaccio pensou errado. Apesar de Chaucer conhecer a obra do italiano, seu livro é muito diferente. Escrito em verso, Chaucer, influência enorme sobre Shakespeare, faz algo que o bardo sabia construir como poucos: escreve com a voz do personagem. Desse modo um monge narra seu conto ao estilo de um monge, um cavaleiro conta como um cavaleiro e por aí vai. 
  O elenco de personagens abrange toda a fauna medieval. E ao lermos a obra nos sentimos lá, naquela estrada rumo a Canterbury. Mais ainda, vivemos em plena idade média. E o que vemos? Que a época é bastante diversa do que nos foi dito. É um mundo de malandros. E de idealistas também. Sexo e religião se misturam. Deus é Ser inatacável, Sua existência não pode ser discutida, mas, por isso mesmo, o diabo também existe e portanto o mal é não só cotidiano como aceito. Ele, o mal, faz parte. 
  As mulheres devem ser virgens, mas os homens tentam apaixonadamente as corromper. Elas devem ser virgens, mas raramente são. Em alguns contos a linguagem é "suja". E deliciosa. Fala-se muito de pau, buceta, cu, bagos. E tudo feito em malandragem ( o que me faz pensar na realidade de meu país hoje ). Usa-se de toda artimanha possível para se ir à cama de uma mulher, seja virgem, seja puta. 
  O dinheiro existe, mas mal se encontra. O que se faz é o roubo. Monges e cônegos são mentirosos, ambiciosos, glutões e tarados. Comerciantes roubam e camponeses são idiotas. E ao mesmo tempo existem contos de fé e de pureza. Fala-se da Virgem com plena fé e em total compreensão. Chesterton desvenda bem isso: no catolicismo tudo é extremo. É uma fé que pede pelo abismo, pelo tudo ou nada. A dor ao limite e a alegria desenfreada. O grande pecado e o grande arrependimento. Nada pode ser sóbrio, a sobriedade é falsa. Desse modo, o sexo e a castidade existem juntas e são hiper-valorizadas. Chaucer exibe esse universo sem retoques. As coisas são o que São. Sem máscaras. 
  Na introdução se conta que aqueles são os ingleses originais, os saxões, o povo britânico antes de 1750, da revolução industrial que domesticou a raça. Eles são aquilo que hoje entendemos como "Povo de Asterix". Nada em comum com Thackeray ou com Jane Austen. São exaltados, apaixonados, brigões e muito diretos. Sua transformação demonstra o poder da educação. Se mudaram para melhor ou pior, fica a discussão. 
  Devo dizer que esta obra foi um dos maiores prazeres em leitura que tive em anos. Coloco-o entre meus vinte mais queridos livros. Suas 600 páginas, em verso, voaram diante de meus olhos. Seu realismo sujo e fétido e sua vitalidade objetiva e prática me encantaram. É um retrato de um tempo, mas é acima de tudo uma lembrança daquilo que somos, seremos, seres que erram, seres sujos e brutos, tolos e espertos, burlescos. Gente. 
  Chaucer foi um dos grandes humanistas de seu tempo ( por volta da metade do século XIV ), erudito, sabia a lingua de todas as classes. Tinha o principal dom do escritor: sabia escutar. Os tipos que ele criou nos seduzem. São maldosos adoráveis. E fiéis sinceros. Não por acaso sua obra vive a mais de 650 anos. 
  Fundador da literatura moderna inglesa, Chaucer é rei. Seu livro é inesquecível.

ABANDONE-SE HOJE

   Eu já lera isso ( em Nietzsche, em Agee ) e volto a ler a mesma ideia em Chesterton. A ideia de que o homem tem se tornado cada vez mais frio, contido, reprimido, inumano. Já tenho algumas décadas de memória para contar e devo dizer que o mundo que vi em 1975 ou em 1985 é bastante mais quente que aquele que agora vejo.
 Cada pensador dá sua opinião sobre o porque dessa transformação gradual, mudança que tem feito das pessoas ilhas de indiferença. Para Chesterton o problema é da própria mudança. Uma época que ama a mudança em si-mesma não consegue lutar ou dar valor a nada. Mudar se torna rotina e mudam-se os objetivos, os ideais. Mudar a meta é mais fácil que a alcançar. Derrubam-se totens, a vontade se desfaz e o homem se torna indiferente. Mudar todo o tempo vira rotina. Tudo muda todo o tempo para que nada se construa. 
 Inclusive relações ou arte. Como tudo vai mudar, e assim sabemos que tudo será destruído, para que construir algo de realmente bom, eterno, perdurável ? Se sabemos que o amor não é eterno, para que amar ? Para Chesterton, o primeiro passo para a felicidade do homem ( e ela é possível, aliás, mais que possível, ela existe aqui ), é retomar o conceito de eternidade. E com ela reavivar a moral. Existem coisas que são eternas SIM. E com essa eternidade vive uma moral que é imutável. 
 Um erro repercute para sempre. Um crime será punido com completa reciprocidade. A bondade mora na verdade e a verdade é real e eterna. O amor dá acesso a vida sem fim onde tudo é maior e melhor. A violência é um mal sem nada que o redima. E o principal: Somos todos nós um campo infinito onde se dá a luta sem fim entre o bem e o mal. E, como seres donos de liberdade e de missão escolhida, devemos lutar essa luta. Honrar a vida. 
 Se todo esse modo de pensar parece medieval é porque tudo de mais profundo e imutável que possuímos é medieval. Amamos como homens da idade do romance, cremos como homens de fé, lutamos por um pouco de honra e justiça e sentimos os pavores dos pastores e lavradores de então. Ou, se todo esse mundo agoniza ( é o que observo ) temos a missão, sublime, de defender seus últimos, e derrotados, testemunhos. 
 O coração perdeu. A razão dogmática nos faz crer que o coração é o menos confiável dos orgãos por ser simplesmente o menos controlado. E o que menos aceita dogmas que o reduzem a nada mais que músculo e sangue. Bilis secou.
 Não mais a ira divina, não mais a vingança maligna. Nunca mais iremos morrer por uma ideia. A paixão que move a vida ou a dor que faz com que a vida se revigore. Não mais o mistério. E se voce é cego ao mistério, creia-me, o tédio irá lhe matar. Gota a gota.
 Se um amigo é apenas um contato, se a arte é apenas um evento e se a criatividade nada mais pode ser que uma distração futil, a vida terá o valor da futilidade. Será nada mais que o tic tac de um relógio.
 Vá além. Enlouqueça. E cometa os piores vexames. Seja infantil como todos são e temem parecer. Exiba sua originalidade. Mesmo que ela seja burra. Ame e fale que esse amor é pra sempre. Mas acima de tudo, jogue seu cinismo no lixo e com ele seu egozinho. Confunda-se com a vida. Rasteje. Rasgue. Sangre. E beije. Perca a vaidade de nunca se ajoelhar. Ajoelhe-se. Admita que alguém sabe o que voce nunca irá saber. Apequene-se. E se abandone. E então encontre. 
 É isso.

SAGA DOS VOLSUNGOS- SAGAS ISLANDESAS.

   Feira de Livros da USP. Não ia desde 1999. Melhorou muito e valeu muito a pena! Rocco e Companhia das Letras não foram. Mas eu comprei 12 livros! Nos meus cálculos, em preços da Cultura, teria gasto mais de mil e quinhentos reais. Na Feira gastei 400. Comprei livros de luxo. Um com fotos de SP no século XIX. A bio de Matisse. Um livro com fotos de Doisneau. O livro escrito por Capa, com imagens raras. O recém lançado livro sobre o glitter rock. A bio de Bergman com intro de Woody Allen. A bio de Pete Townshend. E mais Chaucer, Marlowe, um livro catalão Tirant Lo Blanc, um álbum de Snoopy, Guerra e Paz em capa dura, um sobre decoração, e ainda este livro, sobre sagas medievais da Islândia.
   Porque Islândia? Na introdução de Théo de Borba Moosburger, fico sabendo que a Islândia ocupa um lugar privilegiado na história do romance europeu. Primeiro, foi o país que antes de qualquer outro escreveu em língua própria e não em latim; e segundo, escreveu em prosa e não em verso. Tolkien adorava essas sagas e muito de sua obra vem daqui. Do que trata? Da fundação da ilha islandesa, de seus primeiros reis e heróis. Um mundo que nos é quase incompreensível.
   A primeira coisa que salta aos olhos: A ausência de clemência ou de piedade. Matar é coisa absolutamente corriqueira. Mata-se por que se gosta de matar, pois para se poder ir para o céu dos vikings era preciso morrer em luta. Morrer de doença ou velhice era ir para o reino de Hel, o inferno, morrer lutando era ir para Asgard, onde se podia lutar mais. Pois a vida era isso, uma briga sem fim. Sangue e vísceras. Um homem vivia pela espada, por sua familia e por seu rei.
   Não posso nem discutir sobre sua coragem. Em barcos pequenos eles chegaram a Groenlandia e até a América!!! Eles eram mais que corajosos, não tinham noção alguma de preservação da vida. Tinham muitos medos, mas ao contrário de nós, seus medos não se ligavam a morte ou a dor. O maior medo era a desonra, ter o nome sujo, ser um fraco. Dor fisica e morte eram nada.
   Algumas cenas espantam. Além de assassinatos sem culpa ( e não falo de guerra, as mortes eram em simples passeios na floresta ), o reino começa com um filho que é fruto de um casamento entre irmão e irmã. Sem qualquer culpa, a irmã seduz o irmão e têm um filho que será um rei e um herói.
   Dragões, bruxas, adivinhações, tudo entra nessa saga como fato normal, conhecido, cotidiano. É um mundo pré-cristão e não-greco-judaico, é o mundo da mais pura raiz européia ( nos esquecemos sempre que Atenas e Judéia, Pérsia e Egito são reinos orientais. A Europa pura é a celta, ou seja, a dos vikings, suevos, francos, saxões, íberos ). Uma sociedade familiar, voltada para a guerra e para a magia.
   O estilo da escrita, sem qualquer adaptação, traduzida a crú, é rústica. As coisas são narradas de modo direto. Nada de descrições, nada de ambiente, nada de clima. É ação e mais ação. Briga e mais briga, viagem e mais viagem, mortandade sobre mortandade.
   Anti-europeus gostam de falar que a Europa e sua cultura são violentas, a mais violenta do mundo. Não sei. A China nunca foi um mar de rosas e Maias ou Incas estraçalhavam os inimigos sem dó. Talvez a velha cultura judaica, os cartagineses e os hindús tenham sido menos cruéis. Talvez. Mas nos choca muito ver um massacre inutil de crianças e mulheres ser louvado como ato heróico, o que ocorre todo o tempo aqui. Para passar o tempo, o herói vai a uma cidade para "saquear e matar um pouco".
   Jung estudava muito essas histórias medievais e via nelas a raiz de sonhos e de sintomas. Se ele estiver certo, chega a ser aterrador a imensa carga de violência que temos em nosso sangue. Porque neste mundo, o grande, o supremo prazer é o de matar. Se assim for, nosso mundo cristão e pós-cristão cometeu uma obra ainda maior do que eu pensava. A substituição da guerra pela convivência e do sangue pela fé. Mas o guerreiro, o doido e sem freio assassino, o irrefletido e puro impulso, o vaidoso e inconsequente está lá, está cá e está em todo canto. Desse duro ponto de vista, um moleque briguento e ladrão está muito mais perto da verdade humana que um dinamarquês hiper-civilizado e do bem. Não a toa o alto indice de suicidio na Suécia, o reino dos vikings tendo se transformado no país da paz e da sociedade justa.
   É um livro dificil.