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HIGIENÓPOLIS, IMPRESSÕES SEM FOCO

   Eu vestia um tipo de paletó de couro que era uma geladeira ambulante. Comprado por minha mãe, na loja Garbo, ele tinha a dureza de uma armadura e a frieza de uma casa de janelas quebradas. Eu me encolhia na rua lateral ao cemitério. Sentia o vento gelado de maio. E como fazia frio naquele maldito lugar! Um frio sujo, fuligenoso, grudento, mesclado a fumaça dos carros e ao suor do corpo encapotado. Meus lábios rachavam e eu puxava a pele e fazia com que eles sangrassem. Minha língua tinha áftas, minha garganta doía. O cabelo, longo, despenteado, sujo, a mochila de lona rabiscada com o nome de "hendrix". Espinhas na cara e um lenço sujo que eu levava no bolso para assoar meu nariz sempre vermelho e entupido. Nunca fui tão feio. Nunca tão infeliz. Lá era Higienópolis.
   O muro do cemitério parecia nunca terminar e então eu via a entrada do Mackenzie júnior. Eu fora parar naquele colégio por influência de meu professor, o mesmo cara que hoje, trinta anos depois, ainda me influencia ao ponto de me fazer ser professor. O ano anterior fora feliz, brilhante, maravilhoso. Mas agora, no primeiro colegial, longe de meu bairro, nesse detestável Higienópolis, eu desabava. Solitário, eu me deixava andar pelo bairro estranho, o sol gelado na cara, longe das meninas bonitas que lá moravam e dos amigos esnobes de suas ruas vazias. O bairro era feito de sombras as sete da manhã. Uniformes mackenzistas nas ruas e velhinhas passeando com cães. Estranho lembrar que naquele tempo eu pouco ligava para cães. E também nada via de bom nos casarões. Eu os temia. Me deprimia a velhice do bairro. Todo ele me lembrava um cemitério. Em suas ruas ainda se viam casas sem muros, imensas, com suas janelas art-déco e mármores italianos. Hoje eu sei o que sentia, hoje eu saberia, mas aos 16 anos eu estava perdido. Andava então.
   Sentia respeito pela biblioteca do Mackenzie, com suas madeiras escuras e o cheiro de papel se desfazendo. Mas a Mario de Andrade me intimidava. Deprimido, eu a sentia como um hospital. A arquitetura das Clínicas. Aliás ir de casa até lá era uma excursão ao inferno: passava por três hospitais e três cemitérios. Ida e volta. Argh!
   O bairro era esnobe? Penso que sim. Hoje eu me divertiria, na época, caipira, sentia medo. No Mackenzie de então só se podia entrar de sapatos, tênis eram proibidos, assim como jeans. Alguns conhecidos da minha classe se reuniam para um chá. No apartamento em estilo Oscar Wilde de um deles, tudo era branco, tapetes, paredes e sofás. A porcelana portuguesa era rosa e branca. O que eu fazia lá? Minhas referências eram então Jimi Hendrix e Mick Jagger! Chá? Só se fosse com whisky! Hoje sei que provávelmente a culpa não era do bairro, eu andei com a turma errada. Andei? Melhor dizer, fugi da turma errada.
   Aconteceram manhãs em que andei pelo bairro inteiro. E era fácil se perder nele. Não havia nada para quebrar a monotonia das ruas. Casas, prédios sóbrios, árvores, e algumas poucas farmácias e padarias. Parecia que a gente não estava no Brasil. Buenos Aires ou Montevideo talvez. É estranho lembrar que as calçadas não tinham buracos e dava para se andar de olhos fechados. De certo modo era o que eu fazia. Aquele foi um ano em branco. Triste dizer que nessa minha história em bairros de São Paulo, história que vai do Caxingui a Paulista, do Brooklyn ao Itaim-Bibi, Higienópolis é uma sombra, manhã fria e um desfilar sem fim de casas fechadas e exageradas. Recordo então que não consegui tirar uma nota maior que seis em todo o ano e que fui reprovado já em agosto. Um desastre!
   Mas eu posso salvar algo desse ano... Porque no âmago de todo esse azedume flácido, eu sentia a certeza de um amor inflado. Me apaixonei pela menina mais esquisita da escola, uma loura espinhuda e magra, que em minha mente romântica era a encarnação de Anita Pallemberg em Higienópolis. E eu, ao som de Their Satanic Majesties Request, seria seu Brian Jones difamado e destrutivo. Nunca em minha vida, antes ou depois, fui tão rocknroll. Andar pelas ruas de lá era cantar baixinho: No Expectations e Paper Sun. Estava só, mas posso dizer que aquela sombra foi minha iniciação ao sublime.
   Por isso eu odeio não só Higienópolis como a Consolação. Para mim eles serão sempre frios e embalados em fumaça e couro duro. Mas é lá que ficou um resto, algum nó não desatado, uma chance esquecida, uma canção ainda em andamento. Higienópolis é minha sombra. Terra de meus vampiros, do medo da perdição e dos desafios perdidos.
   Preciso um dia lá voltar.