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HERÓI

As pessoas amam os herois. E em sua maioria, gostariam de ser um deles. Mas poucas, muito poucas, têm a coragem e podem pagar o preço que o heroísmo pede. Pessoas espertas perceberam então que pessoas que não tentam o heroísmo estão dispostas a ser comandadas. Precisam de comando e de dogmas que as livrem de responsabilidade.
O herói é o homem/mulher que saiu da "vila". Seja fisicamente, seja metaforicamente, todo herói rasga o véu da ilusão, obtèm a imagem da verdade e sai/entra em busca de uma missão. Para obter essa visão é necessário o descompromisso com o comum. O herói não segue um padrão, seja comportamental, religioso, cientifico ou politico. E aquele que não segue um dogma paga o preço, a solidão, condição do herói, de todo herói, mesmo daquele que vive em grupo. É fácil perceber que nada é mais nocivo à sociedade que um herói. Ele lembra ao homem comum aquilo que ele poderia ter sido. Traz em si a ideia de que existe vida fora da banalidade. Irritará o materialista por seu desapego, o cientista por sua irracionalidade, o religioso por sua insatisfação, o lider por sua insubmissão.
Nós, que não somos heróis, não suportamos a vida sem regras estabelecidas. Amamos a ideia do heroísmo, mas temos pavor do que significa sê-lo. Queremos segurança e anonimato, ser como todo mundo, não carregar o peso de nossa individualidade.
Segundo Jung, sem o encontro com esse individualismo que existe em cada um de nós, não há como viver uma vida com sentido. O  não-herói aplaca sua angústia, mas paga o preço de só poder viver sob o jugo de um lider, uma lei ou uma regra. Busca o esquecimento de si-mesmo, não suporta se olhar. Corre numa sucessão de distrações, de viagens sem fim, de êxtases vazios. Vive na esperança louca de não precisar viver. A vida é história, a vida é alma, a vida é futuro. E história, alma e futuro pertencem individualmente a cada um que vive. O covarde procura viver a história de outro, sonhar o futuro comum e negar a alma como coisa sua e ao mesmo tempo sem dono.
A arte nos faz ter contato com a história interna de todos nós. E abre a possibilidade de encontrarmos nossa história pessoal. A linguagem da poesia é a linguagem do inconsciente, ela é lúdica, criativa, volátil, sábia. A religião não dogmática nos dá contato com a alma, pois religião não é superstição ( resposta fácil, covarde e tola, que nada responde na verdade ), religião é uma necessidade de todo humano, a necessidade de sentido, de transcendencia e de tomar contato com aquilo que está além do que sabemos e podemos saber. Impulso tão forte quanto a própria vida, impulso que é sublimado em alguns ateus radicais pela politica, sexo ou filosofia racional. Não percebem que essas são suas religiões sublimadas e empobrecidas.
O futuro é uma construção permanente que depende da realização da história e da alma. Futuro que não é um alvo, não é um destino, não é premeditado. Ele é conhecimento. Da vida e de si-mesmo.
Existe em voce a potência de se ser aquilo que voce pode vir a ser. Essa imagem mora dentro de voce desde sempre. E se voce tiver algum poder de introspecção poderá vê-la. Isso nada tem de mistico ou de louco, ela está lá, é um tipo de "homem que eu poderia ser e talvez um dia seja". Não é melhor ou mais bonita que aquilo que voce vê no espelho e que seus amigos vêem. É tão somente mais verdadeira. Estranhamente calma e definida. Como se fosse um fim de história. Um eu que não mais se move. Esse é o futuro seu e só seu. Mas não é o futuro que necessáriamente vai acontecer. Para vir a ser ele precisa de seu esforço, de sua responsabilidade com voce mesmo, e de conhecimento. Principalmente de conhecimento.
O herói é o homem que foi ao encontro desse "ele definido".
A industria cultural sabe usar essa nossa fé com soberba simplicidade. Peter Parker encontrando dentro de si o Homem Aranha. Marinheiros partindo e retornando como Lobos do Mar.  Cowboys que se lançam ao deserto para se encontrar e voltam á cidade para a salvar. Reis do rock que se martirizam em individualismo e que retornam e nos passam sua mensagem.  É sempre o caminho do mergulhar dentro de si e o sair transformado no homem que se nasceu para ser. À parte do meio social, com ideias experimentadas e experimentais e pleno em sabedoria dolorosa. E sempre haverá o incômodo que causam/causaram herois reais como Muhammad Ali, Leon Tolstoi, Thoreau ou Oscar Wilde. Amados e repelidos, anti-dogmáticos e criadores de seguidores que os seguem sem nada para ser seguido, a não ser o exemplo da vida do herói que a viveu. Porque o herói de verdade nos convida a criar nossa sina, nossa vida, nossa dor. A saber que o compromisso é com voce-mesmo e com a vida.
Ninguém pode viver sua vida. E ninguém pode te salvar daquilo que voce faz de voce mesmo. Essa é a lição do herói. Esse é o começo do sentido da vida.

SHANE, UM LIVRO INTEIRO SOBRE O FILME DE GEORGE STEVENS ( HEIDEGGER E O WESTERN )

   Paulo Perdigão, programador de filmes da Globo, lançou em 2000 este livro. São 190 páginas analisando cena a cena o monumento SHANE ( Os Brutos Também Amam ) de Stevens. Para quem adora o filme é obrigatório, mas não vou falar de tudo aquilo que ele fala. O que mais me alegrou é o paralelo que Paulo faz entre o western e a filosofia de Heidegger. Ele sintetiza algo que eu intuia mas não conseguia ver com muita clareza.
   O cowboy é aquele que vive no limite entre dois mundos. Não faz parte da cidade/familia, e nem é parte da marginalidade. Não é da cidade e nem do campo. Não está no presente e nem pensa no futuro. Ele está na solidão e me movimento. E vem daí a filosofia Heideggeriana: o cowboy se debate por se sentir preso. Preso numa condição existencial. Mas o que ele não percebe é que ele é o único personagem realmente livre. A angústia perante o vazio e a falta de propósito é a própria sensação de liberdade. Os fazendeiros jamais ousam pensar em liberdade, o mesmo acontecendo com os homens da cidade. Eles vivem nas formas que foram para eles construídas. O cowboy é o ser que saiu dessa forma e se lançou ao limite, ao vazio. Ele sente a solidão, mas nesse sentimento ele pode ver o que acontece a seu redor. Ele vive no vazio dos espaços e dos dias, mas ele sabe, intuitivamente, que foi ELE quem escolheu, foi ele que assim o desejou.
   Todos os grandes heróis trazem embutidos em si esse trajeto existencial. Ninguém melhor que o cowboy exemplifica isso de forma tão nítida.

O HERÓI COMO SER FELIZ, A ODISSÉIA- HOMERO

A melhor coisa que voce adquire ao ler é tomar a consciencia de que o modo como o mundo existe hoje não é o único possível. Mais que isso, já fomos completamente diferentes. O modo como pensamos, sentimos e vivemos é apenas uma etapa na história da vida. E veja bem, não estou dizendo o que pensamos, estou dizendo COMO pensamos. Falemos da Odisséia.
Obra da Grécia arcaica, ela não tem autor. Na verdade, a obra é uma coleção de canções, uma espécie de repente/rap que era passado de voz para ouvido por gerações. E sempre acompanhada por cítara, e talvez, dançada. Narra as aventuras de Odisseu, herói grego que tenta voltar para casa após a vitória sobre os troianos. Mas o deus Poseidon não quer que ele volte. Enquanto isso, em sua casa, Penélope, sua esposa, deve rechaçar pretendentes e seu filho Telêmaco tornar-se um homem. Esse é o tema contado muito superficialmente. Mas do que trata o épico e o que ele nos diz hoje?
Nos mostra um mundo tão distante do nosso que se torna quase incompreensível. Primeiro fato: A escrita já existe, mas ainda não é dominante. Ou seja, o que se fala ainda é mais importante. O pensamento, por ser falado e cantado e não escrito e lido, está livre, solto. Ele ainda não está preso a caracteres e a léxico. O que eles falavam era como água e não a rocha imutável que veio a ser.
Segundo: Tudo é exterior. A introversão não existe. O homem existe como ação e não como reflexão. Mais que isso, a vida interior ainda não foi inventada. É estranho dizer isso, porque cremos que vida interior é um atributo nato ao humano. Mas não, ela é criada pela cultura, a subjetividade não nasceu como nasceram o desejo ou a guerra. Os poetas líricos ainda não haviam se voltado para dentro de si-mesmos analisando os sentimentos, e o teatro ainda não fora criado, o homem ainda não se via como ator em drama vivo. O homem então era um ser aberto para fora, ele olhava a vida e reagia a ela. Interessante notar que mesmo a beleza física, tão valorizada nessa época, é vista pelo outro e nunca por si-mesmo. Ninguém fica se glorificando por sua beleza, são os outros que a idolatram.
Terceiro: Tudo tem um sentido. Em cada coisa que ele vê há uma razão, mesmo que essa razão lhe seja oculta. Nada é gratuito, tudo tem um fim. Deuses regem tudo o que acontece, e Deuses são como homens, vingativos, ciumentos, cruéis, impulsivos e sexuados. A noção de pecado não existe como a conhecemos, o que existe é a ofensa ao deus. E tudo pode ser um deus. O bicho na mata, o vento que sopra, o estranho na rua, cada coisa na vida pode ser manifestação de um deus. Portanto, para esse grego, tudo deve ser respeitado, homenageado, e mais: a cortesia é lei. Quem bate a sua porta deve ser abrigado, ele pode ser um deus lhe testando.
Quarto: A morte não é o fim, mas todos vão para o Hades, um tipo de inferno/purgatório. O que o grego mais deseja é uma morte honrosa e principalmente o não-esquecimento. Nada é mais desonroso que passar pela vida e não ser recordado após sua morte. Mas não a fama pela fama, e sim a lembrança da honra. Para o grego de então ( muito antes de Platão ), cada geração que nasce é a confirmação do brilho da geração original. Meu bisneto abrilhantará meu nome.
Nesse contexto temos a história de Odisseu. E a arquitetura de sua aventura é até hoje o caminho de toda aventura ocidental: o mar/estrada, a tentação, a queda, o amadurecimento e o retorno a casa. Herói feliz por ser herói que jamais se questiona, o mundo em que ele vive é seu mundo, ele é esse mundo, esse mundo é feito para ele. A mente ainda não tem a pretensão de crer que ela pode tudo entender e cada ação não tem preço ( questionamento ).
De certa forma, toda vez em que nos vemos desejando um mundo mais simples, sem complicações, estamos com a nostalgia dessa Grécia arcaica. Mundo que jamais voltará, pois expulsamos os deuses de nossa vida, desalojamos esse seres de seu Olimpo, tomamos para nós o peso da vida, criamos a subjetividade, a liberdade. Ler hoje A Odisséia é perceber que nossa mente, nosso mundo, nossa fé é apenas uma possibilidade, um modo de viver. Odisseu iria rir de nossos medos e ridicularizar nossa pretensão. Para ele todos nós seríamos quase bichos, porque se o que para nós define o humano ( razão e linguagem ) nos basta, para ele essa humanidade é definida por engenho, coragem e respeito aos deuses. E coragem, habilidade e respeito ao sagrado ( vida ) tem faltado em todos nós.

JAIR, PELÉ, TOSTÃO E RIVELLINO ( O MELHOR ERA GÉRSON )

A maior alegria que tenho é a de fazer parte de uma geração que ainda sabia o que era ingenuidade. Não sei se por falta de informação, não sei se por causa do monte de tempo livre para ser bobo e bobear a toa, o que sei é que os pais da minha geração tinham ainda um ou dois pés no campo, e então eu e todos os caras da rua crescemos acreditando em heróis, semi-deuses e iluminados. Esse tesouro, a luz da ignorância, é o que mais valorizo em mim.
Porque é preciso ser um pouco tolo para poder criar. Se voce sabe tudo e pode explicar todas as coisas que acontecem, se voce joga luz em todo porão, voce nada consegue criar. Ter fé em coisas inexplicáveis, crer naquilo que é porque é, sem isso voce não consegue inventar uma história, uma lenda, uma saga.
Tive a sorte de ainda ser de um tempo em que a gente tinha a certeza de que todo astro do rock era um ser de outro planeta e de que todo diretor de cinema era um guru versado em segredos ancestrais. E eu sabia que todo amor era pra sempre e toda amizade era divina.
Mas eu estou escrevendo tudo isto só pra dizer que essa época fez com que um grupo de brasileiros se tornassem heróis. Que era uma emoção absurda ( ainda é ) ver alinhados Clodoaldo, Gérson, Jairzinho, Pelé, Tostão e Rivellino. A gente tinha a certeza de que eles eram perfeitos. De que eles eram genuínos, de que eram "para sempre".
Voce pode amar Ronaldo hoje. Ou Romário. Mas é diferente. Naqueles caras de 70 voce via apenas jogadores de futebol. Nada de modelos famosas, de festas glamurosas, de campanhas de midia. Nem Ferraris, nem BMWs. Voce sabia que eles eram simples, amáveis, nada arrogantes, que gostavam de uma caipirinha, um sambinha, um feijão. Cada um tinha sua marca pessoal, mas era marca feita sem jeito, sem acessor, sem grife.
Clodoaldo era o tímido, Gerson o briguento falastrão, Jair o ídolo das crianças, Pelé o melhor do mundo, Tostão o inteligente e Rivellino era o menino. Ninguém ligava muito pra cabelo, sobrancelha ou cor de chuteira. O negócio era jogar bola. Jogar e cavalheirescamente manter uma certa ética: se voce joga eu jogo.
Na última copa, a melhor das últimas três, e mesmo assim tão pobre, tive um pensamento: Tanta produção, imagens tão lindas, gramados impecáveis, para jogos tão feios. O quarto gol contra a Itália em 70 merecia esse monte de ângulos e slows e tira-teimas.
Hoje vi Rivellino. Meu coração foi pra boca. Herói pessoal é aquele que faz o máximo usando o mínimo. É o que vai ao topo e VOLTA A SUA ORIGEM. O que faz de crianças como eu ( em 70 eu tinha seis anos e nunca esqueci do que vi ) eternos apaixonados.
1970 foi um ano de heróis. E os maiores moravam aqui ao lado. E eram um bando de não-loucos, de não-bolas de ouro e de não-capas de Capricho. Que bom!

HEROÍSMO HOJE

Byron escreve sobre um anjo caído, anjo do mal. Lúcifer. Um ser-coisa, que se guia pelo desejo de seu coração, o desejo de seguir o mal. Esse desejo o leva a absoluta solidão. Byron se via nesse anjo caído. Lord Byron viveu isso. E tombou na revolução grega, arma na mão, famoso em todo mundo, maldito na Inglaterra, voluntário pela causa da liberdade. Tinha 36 anos. Sua vida foi um tumulto de sexo, drogas e liberdade. E poemas endereçados aos céus.
Gauguin nasceu no Peru. Pais franceses, logo voltaram para a França. Paul se casou, teve filhos e enriqueceu como corretor da bolsa de valores. Pintava como hobby. Aos 40 anos, largou tudo, mulher e filhos, dinheiro e conforto. Passou a se dedicar exclusivamente à pintura. Viajou para o Tahiti. Defendeu a causa dos nativos contra os colonos franceses, apaixonou-se pelas jovens nativas nuas. Sentiu fome e muita dor. Vendeu quase nada e usava tintas ruins, telas ruins. Teve sifilis. Morreu no amado Tahiti.
Modigliani tinha uma absurda beleza. Nasceu em familia rica, no conforto do sangue azul italiano. Mas se apaixonou pela boemia. Largou tudo e foi viver em Paris. Rei dos bares de má fama, roubava pedras das ruas para esculpir. Enamorou-se de modelos-prostitutas. Namorou e viciou-se em absinto. Jeanne Hebuterne, jovem comportada, apaixonou-se por Modi. Tiveram uma filha. Mas o absinto cobra contas, e Modigliani pirou. Brigas, rompimentos, voltas. Ele morre jovem. Ela se atira pela janela em seguida. Nenhum pintor pintou nada tão erótico quanto Amedeo.
Rimbaud começou a escrever ainda criança. Tornou-se famoso entre os poetas franceses por isso e também por sua beleza. Verlaine, bem mais velho, larga tudo apaixonado por Rimbaud. Os dois viajam pela Europa inteira. A pé. Vivem juntos e são perseguidos pelo preconceito. Aos 17 anos Rimbaud escreve toda sua obra principal, que irá o imortalizar. Era o anúncio da sensibilidade do futuro. Larga Verlaine e vai para a Africa. Aos 19, sua carreira literária se encerra: nunca mais escreverá. Na nova vida, ele resolve ficar rico. Faz comércio de café, tráfico de armas, talvez até escravos. Endurece, cresce, torna-se um outro. Morre de gangrena, em algum buraco da selva. O que ele terá sentido ?
E há tanto mais para ser dito. 200 homens perdidos no Pólo Sul. Sem comida, sem abrigo, sem comunicação. Sobrevivem e são resgatados. Três anos depois.
Thor Heleyal atravessando o Pacífico numa balsa feita de papiro. Só. E consegue.
Jean Vigo dirigindo seu único filme deitado numa maca; morrendo de tuberculose. Termina a última tomada e morre. Deixa-nos uma obra-prima: Le Atalante.
Eddie Aikau se mandando para o fundo da tempestade para salvar náufragos. Com sua prancha, surfista famoso. Salva alguns e desaparece no mar.
Chuck Yeager voando pelo prazer de voar, indo mais rápido, mais livre, mais solitário.
O que é o heroísmo? Se sacrificar ? Por quem? Um soldado se sacrifica, é não é necessáriamente um herói. Então o que faz de um homem um herói ?
É aquele que cai na terra e segue seu desejo. Todo herói é um anjo caído. Que segue, sem se abalar, seu destino. Ele faz o que precisa ser feito e que só ele poderia fazer. Faz por sí mesmo, e como consequencia, afeta uma humanidade ao seu redor. Mas faz para satisfazer sua originalidade. Só ele sabe o que só ele deve e pode fazer. Todo herói está isolado.
O herói hoje está perdido não porque toda montanha foi conquistada ou todo mar rastreado. O que mata o heroísmo é que toda individualidade está cerceada, vigiada, acomodada num rótulo padrão. Byron seria um freak narcisista, Gauguin um irresponsável pedófilo, Rimbaud um giletão arrependido, Modigliani um playboy viciado, Aikau um cara que se deu mal, Yeager um caipira bronco, Mozart precisaria de um empresário melhor e Beethoven seria uma estrela psicótica. Thor teria cruzado o pacífico para vender os direitos do filme sobre sua vida. Rótulos para heróis. Rótulos de supermercado. Um herói precisa esquecer tudo isso : não se julgar, não se auto-analisar, não se corromper. Ele não mira um alvo definido, ele vai fundo no que sua alma quer. Seja o que for. Enxerga o fundo do escuro interior e sai para a vida, fazendo o que seu daimon ordenou. Sem se justificar, sem ser rotulado, sem pedir paz, sem desistir, sem se iludir. Jamais pensando em ser como os outros são, nunca como deveria ser. Um herói se desnuda, larga o supérfluo, não carrega malas, não tem garantias. Nada é menos heróico que um cartão de crédito, um GPS, um comprimido de Prozac. O herói tem como única garantia seu desejo. Seu desejo, não o de ninguém outro.
Cervantes escreveu Dom Quixote na prisão, longe de seu país, esquecido.
Shelley passou a vida lutando pela igualdade dos sexos e pela extrema liberdade em polìtica. E pelo ateísmo.
Tolstoi perdeu tudo por sua fazenda socialista, onde todos eram iguais.
O herói não almeja atingir fama. Ele faz porque TEM que ser feito.
Para entender o que é isso, assista O SOL É PARA TODOS, filme já analisado aqui. Tudo está lá: aquele é o único tipo de heroísmo que nos resta. E é belo, muito belo.

O SOL É PARA TODOS- a melhor das infâncias

De todos os grandes filmes, do grande cinema americano, O Sol É Para Todos sempre foi o filme contra o qual eu mais tive preconceito. Odiava sem tê-lo visto. Pensava ser aquele típico filme liberal-americano : anti-racismo, bonzinho, bonitinho, previsível. E o pior, tinha Gregory Peck no papel central. Pior que tudo, por este papel, Peck ganhara o Oscar de 1962, vencendo Peter O'Toole em Lawrence da Arábia e Marcello Mastroianni em Divórcio à Italiana!!!!!!!
Minha opinião começou a mudar quando em 2007, o American Film Institute elegeu o filme como o número 21 de todos os tempos e os leitores deram a Atticus Finch, personagem de Peck no filme, o título de MAIOR HERÓI DA HISTÓRIA DO CINEMA, deixando Indiana Jones em segundo, James Bond em terceiro e Rick Blaine ( Casablanca ) em quarto. Bem... comprei o DVD então e esperei uns 6 meses para assistir. Ontem assisti...
Pensei que o filme fosse sobre racismo. É. Mas não é seu tema central. Pensei que se passasse num tribunal. Se passa. Mas por pouco tempo. Surpresa ! É o melhor, mais profundo e belo filme sobre a infância que já assisti. As obras-primas de Vittorio de Sica podem ser mais geniais e contundentes ( e eu os adoro ), mas este filme fala exatamente da MINHA VIDA.
O início tem a mais bela apresentação de créditos iniciais da história. Não vou contar como é, mas basta dizer que me causou estupefação e profundo encanto. A música ( de Elmer Bernstein ) é a mais cristalina e comovente que já tive o prazer de escutar. É a perfeita trilha da minha e da sua meninice. É linda. E então começa o filme.
Numa pequena cidade ( toda criada em estúdio, mágica ), uma menina de uns 8 anos ( feita pela inesquecível Mary Badham, uma menina que eu queria ter como filha ), recorda sua vida em um específico momento. Estamos então nos anos 30. São pobres, mas têm uma vida sem necessidades. Ela tem um irmão mais velho, corajoso e ativo, e um pai ( Peck ) advogado. Assistimos todo o mistério, medo, alegria, aventura, magia que há na infância. Tudo no filme transcorre com tempo próprio, sem pressa e sem lentidão. O roteiro, premiado e soberbo roteiro de Horton Foote, tem uma construção de rara e feliz habilidade. Tudo se equilibra e encaixa, e apesar do tom sublime da história, ela jamais se torna piegas ou melosa.
O filme é dirigido por Richard Mulligan, que teria a partir daí, vinte anos de bons filmes. O produtor é Alan J. Pakula, que se tornaria outro bom diretor. Os dois fazem parte da heróica primeira geração da TV americana. TV ao vivo. Dela vieram também Sidney Lumet, John Frankenheimer, Sidney Pollack, Franklyn Schaffner, Martin Ritt, Arthur Penn e muitos mais roteiristas e diretores. Mulligan dirige como quem lê um diário. Ouvimos páginas sendo viradas.
Atticus Finch. O mítico personagem de Peck. Ele existiu. O roteiro é baseado no romance de Harper Lee, escritora sulista que foi criada por esse pai, viúvo. É um herói modesto. Nobre. Sem qualquer afetação. Noto vendo o filme, de onde Clint Eastwood e Harrison Ford tiraram a inspiração para seus melhores momentos. Atticus é o pai que todo jovem precisaria ter, e é o modelo de correção seca e direta, que todos nós gostaríamos de seguir. Os Atticus Finch, quero crer, ainda existem pelo mundo afora. Estão fora de moda, mas levam sua vida. O triste é que o mundo não os valoriza. E tenham em mente, Obama é um seguidor do molde Atticus, e sei que este é dos filmes que ele mais gosta.
Destacar uma cena do filme é impossível. Ele se completa, se encaixa, flui, sempre em alta emoção, suave cadência, harmonia de sinfonia discreta. Voce se apaixona pelos personagens, se encanta com a beleza do que vê. Voce se enxerga em cada cena. Se alguém quiser saber o que significa ser criança, bem, veja o filme.
O final, simples, discreto, certeiro, é de uma tão grande surda emoção, que faz com que imediatamente sintamos vontade de rever o filme. Sentimos saudade de Atticus e de Scout ( a menina ). O DVD está à mão. O SOL É PARA TODOS ( que em inglês se chama TO KILL A MOCKINGBIRD, e a explicação desse título é inesquecível ), é para os americanos, um filme tão famoso e conhecido como Casablanca, Guerra nas Estrelas ou O Vento Levou; e é tão amado como A Felicidade Não se Compra e Shane. Mítico.
Um país se faz também por sua produção cultural. É triste não termos algo como este filme. Um Atticus Finch brasileiro. Seria maravilhoso.
Com este filme, este inenarrável momento de emoção, Gregory Peck se torna meu ator favorito. Eu já sabia ser dele a melhor voz da história, a voz que todo homem gostaria de ter. Mas o que ele faz aqui, com aparente e facilidade, o torna um gigante entre gigantes. Não é uma grande atuação; trata-se de uma grande imagem, uma grande presença, um momento sem igual. Carisma transcendente.
Acompanhando o DVD, um disco com dois documentários. Dignos da jóia que é o filme : um fala do livro e da produção do filme. Seu sucesso, sua lenda, seu legado. O outro mostra a vida e o cotidiano de Peck. Maravilhoso ator-liberal, que lutou contra o Vietnam ( com discrição ) e se tornou modelo de correção para outros atores. Vê-lo falar é comovedor.
Tentarei ser Atticus por toda a vida. Gostaria de tê-lo encontrado mais cedo. É o pai que todos nós gostaríamos de ter tido. O filme é para voce.