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O MUNDO DO FUTURO, A ALMA DO PC, GLYN JOHNS E OSCAR WILDE

   Foi Glyn Johns que gravou mais da metade dos discos que eu mais adoro. Era ele que ficava detrás da mesa de mixagem mexendo os botões e olhando aqueles ponteiros dançarem. Glyn estava lá nos melhores discos dos Stones. Do Who. Estava no Led Zeppelin. Beatles. E depois com London Calling do Clash. Com Plush dos STP. E neste século voce vê o nome do cara em discos que tentam resgatar a sonoridade 60`s.
  É muito dificil escrever sobre som. A qualidade do som, o que diferencia um som de outro som. Falar em graves, em eco, em delay, em ruído pode ser disfarce daquilo que não se consegue expressar. O som de Glyn era diferente, era redondo. 
  Recentemente comparei, com um jovem amigo, o som de Transformer em cd e em vinyl. É outro disco. E eu não sei exatamente onde esse som muda. No vinyl ele parece impar. O som da bateria chia, o bumbo está mais áspero, e o chimbau arranha. O baixo desaparece no cd. Ele no vinyl parece descontrolado. No cd está onde deve estar, subterrâneo. Mick Ronson em cd soa quase convencional. No vinyl ele raspa as cordas e zune. Como disse um amigo meu, músico profissional, no cd voce ganha e perde: fazer um disco é barato, mas o som fica todo chapado, o cd não permite agudos ou graves que extrapolem um certo padrão. Glyn sabia produzir trovões. Os dois primeiros acordes de Led Zeppelin I, Good Times Bad Times provam isso. Em vinyl.
   Paul Valéry disse que não se pode escrever a verdade. Ela sempre escapa. Letras só se prestam a falar do mundo das letras. E, triste isso, pensamos em forma de escrita e quase que sentimos apenas em frases escritas. Quase. Então como falar de música? Como descrever um som? George Steiner dizia que toda arte aspira a ser melodia. Mais que isso, ele dizia que arte verdadeira não nasce na ordem, na paz e na limpeza. Arte surge no kaos, na injustiça e na sujeira. Ele próprio diz que talvez não valha a pena, mas a democracia mata a filosofia. E a falta da filosofia, principalmente da metafísica, destrói a criação artística. O homem democrata sob a democracia pode sentir dor, tristeza e criar boas tentativas, mas não sente o absurdo, o desespero, e a iluminação da arte mais atemporal.
  Glyn Johns foi cantor e ninguém sabia mais disso. Na Londres de 1966, ainda com ruínas de Hitler, ruas de barro e casas sem banheiro, a arte tentou erguer a cara do Kaos e sorrir. Não sei se alguma coisa vai durar até 2200. Mas a coisa foi bela. No close do rosto de Glyn, estranhamente andrógino, a arte está prometendo acordar. Os moleques sujos e fedidos crescidos entre 1940-1960 queriam brincar e esquecer.
  Metafísica. Para Steiner, a filosofia só é verdadeira filosofia quando se embrenha na metafísica. Filosofar é pensar na morte e em Deus. No infinito e na existência. No tempo. Uma coisa irônica está acontecendo, e eu notei isso em minhas limitadas leituras de física, a ciência mais moderna está a seguir, sem querer perceber, os passos da mistica. Mundos paralelos são agora aceitos como possibilidade real. ( E me espanta alguém ainda usar a palavra real ). O tempo é tratado como ficção. E a arte, pobre faminta, está ficando atrás da ciência. Hoje a física parece mais criativa que a arte.
  Nosso corpo é apenas um tipo de tablet. Um receptor e divulgador de informações, memórias, insights que giram pelo espaço afora. O tablet se estraga, fica doente e é jogado fora. Isso não afeta o mundo da internet, que continua a rodar. Mesmo sem a máquina individual. Hoje essa ideia parece bastante comum. Em 1980 seria incompreensível. Como Wilde falava, o mundo segue a imaginação. 
  O desenvolvimento científico dará aval para a religião e a metafísica. No fim dos tempos a cauda da cobra vai tocar a cabeça do bicho. A ciência nos levará ao mais arcaico. Que será o futuro. O mundo é ironia. Borges é o futuro.
  Glyn Johns canta Lady Jane em 1966 na BBC. É 2014 e eu o vejo só porque um técnico criou a internet, o youtube e meu PC. O cantor fala de um mundo de 1800, de Byron e Shelley. E eu o revivifico. No futuro um homem verá isso outra vez. E a imagem será cada vez mais mítica. E Lady Jane ainda mais terá status de totem. A referência de uma cultura e de um modo de sentir. O passado cada vez mais futuro, o presente cada vez mais indiferente. 
  Se não destruirmos tudo, e essa possibilidade existirá sempre, será o mundo mais budista que se possa exigir. Plácido. Quieto. Individualista. Voltado para dentro de si-mesmo. E a procura do oculto. Sejamos otimistas.

GEORGE STEINER E A BÍBLIA

   Minhas raízes materialistas me impedem de ler a Bíblia. Lê-la seria como capitular. É estranho, pois eu venho a anos num processo de estudo e de interesse por religião cristã e de epifanias variadas. Mas não consigo me aproximar da Bíblia. Há algo naquele livro que me traz a mente algo que eu não quero ver. Agora não. 
  George Steiner diz que a Bíblia é o maior e o melhor livro já escrito. Todas as histórias de todos os autores estão lá escritas. De Dante a Kafka, de Cervantes a Sartre, tudo está lá. Poesia e drama, lenda e romance, erotismo e o mais profundo pessimismo. Terror insuportável e beleza transcendente. Mas não é disso que desejo falar. 
  O que deixa Steiner confuso é que ele consegue imaginar Dante trancado num quarto escrevendo a Comédia. Consegue, com muito dificuldade, imaginar a mente que pensou o Quixote. Apesar de ser imensamente complexa, a mente que nos deu os pensamentos de Montaigne é uma mente como a nossa. Porém dotada de mais brilho e de mais inteligência. Steiner consegue até mesmo imaginar Shakespeare acordado, preocupado com o final de Lear ou com o que fazer com Falstaff. 
  Mas é impossível imaginar um homem a escrever, a imaginar, a criar o sofrimento de Cristo na cruz. Não há como nossa mente entender uma mente que criou Moisés, Salomão, Jó ou a cena no monte das oliveiras. Isso foge a nosso entendimento do que seja arte ou filosofia. Isso foge até a nossa ideia de loucura ou de delírio. Está além do mundo que conhecemos ou que podemos criar na imaginação. É um texto tão embrenhado em nossa mente que faz parte de nosso modo de existir. Vemos a vida pelos olhos daquele universo. Mas ao mesmo tempo ele nos é completamente estranho.
  E mesmo com esses comentários de Steiner, e antes eu já lera os de Tolstoi, Whitman e Donne, todos em mesmo nível de admiração, mesmo assim eu não posso pegar e ler o livro dos livros. A história que fez com que eu afinal fosse o que sou. Minha familia vinda da Europa, européia desde quando? E antes? Judia? Muçulmana? Bíblica nos três casos possíveis, minha carne meu sangue meus genes, moldados em histórias de David, em milagres de Jesus Cristo, em ensinamentos de Paulo, de Israel, de Ismael, de Canaã... desde 1500, desde 1200, desde quando?  Aqui, em 2010, procurando por um salvador, por uma luz, uma nova vida, uma purificação, salvação. Louvando o Amor. Desde quando?
  Guardo o livro. 
  Um dia.
   Um dia.... 
  

NENHUMA PAIXÃO DESPERDIÇADA- GEORGE STEINER. A GRANDEZA DE UMA PESSOA.

   George Steiner é judeu. E ele jamais nos deixa esquecer isso. Nascido em Paris, em 1929, educado e começando sua carreira de professor em Londres, ele se fez um dos grandes críticos da cultura do século XX/XXI. Lecionou em Oxford e em Harvard. Sua cultura é enciclopédica. Ele vê a cultura do ocidente de dentro do judaísmo. Para Steiner, o Ocidente é filho de Atenas e de Jerusalém. Como pensador refinado, ele nunca afirma a existência ou a não existência de Deus. Seus guias são Kierkegaard, Spinoza, Nietzsche, Marx, Pascal e Kant. Profundamente filosófico, sem medo, ele afirma e duvida, deixando claro todo o tempo que toda a glorificação do texto, da análise, do contra-argumento, da bibliografia, tão caras ao ocidente, têm claras raízes judaicas. O Velho Testamento, a Torá, são modos fundadores de análise textual. Este livro precioso ( olha minha influência judaica dando as caras ), se divide em palestras, teses, capítulos de obras, folhas avulsas escritas entre 1978- 1995. 
  São 21 ensaios em 490 páginas. Dificil escrever sobre seus textos. São tão profundos, tão claros e ao mesmo tempo complexos, que apresentá-los a quem não os conhece é como os desmerecer. Não há como comentar sem rebaixar sua grande altura. O que posso dizer? 
  Posso falar da profunda impressão, impressão que chegou ao quase pavor, da visão de Steiner sobre a beleza, a verdade e a dor de se ser um judeu. Ele consegue, racionalmente, unir a morte de Jesus ao campo de extermínio nazista. E não teme tocar na ferida: Nós odiamos todo aquele que nos chama a atenção para a perfeição possível. Jesus, assim como Sócrates, morre por ser insuportávelmente perfeito. Por cobrar de nós a perfeição da qual abrimos mão. Pessoas assim sempre serão martirizadas. É a explosão da individualidade dentro de um mundo que preza a anônima mediocridade. No caso de Jesus, e esse é um texto que me perturbou, judeus serão perseguidos sempre, mesmo que de forma inconsciente, por terem "" jogado fora a chance de dar ao mundo o reino de Deus. Os judeus negaram Jesus, nunca o aceitaram, e isso faz com que o ocidente veja neles aqueles que optaram pela dor, pela morte e pela desunião.""
  Steiner tem um capítulo soberbo sobre a América. Como pode um país que tem um museu de bom nível e uma sinfônica até no deserto, não conseguir produzir um só filósofo relevante? Não ter um grande compositor, não ter ninguém que se compare a Mann, Joyce, Proust ou Kafka? Um país com centenas de ótimas universidades não produzir um único grande pensador,ou uma grande nova teoria de arte, de filosofia, de politica ou de psicologia.  Steiner lembra que mesmo na ciência, todo grande desenvolvimento teve algum estrangeiro emigrado envolvido.  Sem a mente estrangeira, os EUA se tornam um país cheio de dinheiro, porém pobre de ideias. 
  Ele nos mostra então o porque. E sua tese não faz média com nosso tempo bonzinho. Grandes ideias nascem na pobreza, na guerra, na ditadura, na luta. A sociedade americana, e nisso ""ela pode estar certa""", optou pela democracia e pelo bem da maioria. Acontece que a maioria sempre será incapaz de apreciar ou de entender coisas complexas. Não se ensina numa grande universidade a ouvir Mozart ou a ler Wittgeinstein. Isso nasce com a pessoa. Nos EUA a maioria quer ter museus onde se tenha a POSSE de tesouros europeus, mas onde imperem produtos culturais ralos, simples, fáceis de entender. Mais que isso, é insuportável a um americano, ou incompreensível, a ideia de que uma poesia ou uma sinfonia possam valer mais que dinheiro. Uma vida vivida na pobreza, mesmo que plena de poesia e de filosofia, é uma vida jogada ao lixo. Numa sociedade SINCERA como a americana, que escancara a ganância material da maioria dos homens, a grande arte, que requer solidão, sacrificio e estranheza, se torna uma doença, algo a ser tratado. A Europa, lugar profundamente não-democrático, onde a ideia de genialidade, de beleza na pobreza, do charme da loucura, está arraigada, a obra de arte é vista como parte da vida, coisa cotidiana, normal, privilégio a que se tem direito de usufruir pelo dom SUPERIOR de uns poucos escolhidos. Sim, toda arte e filosofia são aristocráticas. Não existe grande humanidade onde a democracia impera. Eis um paradoxo. A alma só atinge sua plena grandeza na adversidade. Steiner cita a literatura russa sob o jugo dos czares e depois do stalinismo como exemplo de força espiritual. Para ele, grandes pensadores hoje estarão fermentando no oriente, na África, na América do Sul ou na Palestina. 
  Impressiona como esse modo de pensar se afina com o meu. A falta que faz na arte do primeiro mundo de hoje de uma certa sujeira, de algo de profundamente despojado, imperfeito, cruel, injusto e desafiador. A higiene, a organização, a garantia das bolsas de estudo, tudo isso contribui para a construção de uma arte e de um pensamento subjugado, preso, sem desafios.
  George Steiner ainda escreve sobre Kafka, Weill, Husserl, Freud, Marx, Hegel, Péguy...e muito sobre o Velho Testamento. Sócrates, Platão e Jesus de Nazaré. Sempre sob a ótica assumidamente judia. Desse povo escolhido. De gente que pensa sobre o pensamento, escreve sobre a escrita. Desse povo de rabinos que criou o marxismo e a psicanálise, formas de judaísmo revigorado. O mais terrível é que Steiner crê no sacrifício final do povo de Israel. Sua total aniquilação. E crê que nesse momento o mundo perceberá que com Israel se perde o sentido de história, de Deus e de continuidade. Ficaremos orfãos. 
  Ele não nos poupa. Adoramos odiar judeus. Adoramos odiar intelectuais ( que se parecem todos com judeus ), cristãos verdadeiros ( que são filhos de judeus ), marxistas ( que pregam a igualdade do Velho Testamento ), esquisitos ( com sua cara de gente do gueto ). Odiamos todo aquele que não é da tribo. A tribo do comum, do igual, do parecido comigo. 
  Não, não pense em sionismo. Steiner acusa Israel de negar, com seu estado, as leis de Moisés. De não ter aprendido com a Shoah ( o holocausto ). De ser injusto. Desigual. E pouco espiritual.
  George Steiner é o intelectual clássico. Ele perturba. Desassossega. Corrompe.
  Ao fim ele defende Judas. E nisso ele toca em nossa maior ferida... Judas, o judeu, o grande traidor.
  Sem mais palavras. Steiner sabe, assim como eu intuo, que a palavra tudo estraga. Leia.