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AS DUAS MORTES DE CERTOS AUTORES

Muito mais chata que a notícia da morte de um autor é quando voce percebe que existem autores que morrem duas vezes. Talvez o maior exemplo mundial seja Bernard Shaw. Voce pode não saber, mas até os anos 60 Shaw era considerado o segundo maior autor teatral da história. Apenas Shakespeare era mais encenado que ele. Ganhou o Nobel, viveu quase 100 anos e morreu como um tipo de centro luminoso das letra inglesas. Mas, desde sua morte, nos anos de 1950, sua obre entrou em ostracismo. Não é nem o caso de se dizer que nosso tempo está errado. Na verdade Shaw era novidadeiro. Suas peças, muitas, defendem a liberação feminina, direitos trabalhistas, fim ao sistema de classes, liberdade sexual. Quando esses temas passaram a ser tratados de modo muito mais explícito e feroz por gente como Albee e Osborne, Shaw se tornou passado. André Gide é um caso diferente. Ele foi até os anos de 1960 o gigante das letras francesas. Vivo até seus 90 anos, lúcido, homossexual, foi amigo de Wilde, escreveu relatos honestos sobre o mundo gay, sobre a igreja, sobre a crise da moralidade. Mas, atacado pelos escritores políticos de então, Gide foi chamado de individualista, desinteressado por política, anódino. Seu estilo, refinado, não o ajudou. Ao contrário de Shaw, eu aposto que se ainda houver leitura séria nos anos de 2030 ele pode voltar. Herman Hesse é outro autor que um dia, principalmente nos anos hippies, foi chamado de gênio. Hoje voce só o encontra em sebos. Seus livros sumiram. Nas letras alemãs de 1940-1950, a grande discussão era descobrir quem era maior: Hesse ou Mann. Hoje parece uma heresia essa comparação. Robert Musil tomou o posto de Hesse. Lawrence Durrel é um inglês que morreu nos anos de 1980 e que hoje está criando mofo nos sebos. Ele era muito levado a sério. Livros sobre sexo e demonismo, mas que hoje parecem soft. Passado o escândalo, restou um autor competente, mas que não consegue público agora. Posso falar de muitos outros. Gente de fama intelectual imensa. Tipo Gabriela Mistral, John Galsworthy ou Pearl Buck. Todos com Nobeis. Milan Kundera já foi mega considerado e é claro que após morrer, Sam Shepard caminha ao esquecimento. Esses casos não são como Graham Greene ou Evelyn Waugh. Greene e Waugh tiveram sucesso demais, acima de suas espectativas durante um certo tempo. Mas jamais foram o centro da coisa, como foram Shaw, Hesse e Gide. Se hoje Greene e Waugh não vendem mais como venderam durante três décadas, isso é apenas uma normalização. Sobreviverão ao lado de Nabokov e Bellow como ícones do século XX. Mas a queda moral de Shaw, a maior queda de meu tempo, é incomparável.

OS MOEDEIROS FALSOS- ANDRÉ GIDE

Dizem que Aldous Huxley leu este livro antes de escrever CONTRAPONTO. Estranha sina a de Gide. Até os anos 70 ele era tão grande/famoso quanto Mann ou Joyce. Agora, em 2011, há quem goste de livros e não o conheça ( como desconhece Malraux, Claudel ou Colette ). Porque? Eu não sei.
Os Moedeiros é seu grande livro e vale dizer que em 1948 Gide ganharia seu Nobel. O livro é de 1926.... O que havia com a década de 20? Se pensarmos que entre 1921 e 1929 foram lançados os melhores livros de Heminguay, Fitzgerald, Faulkner, Joyce, Eliot, Lorca, Yeats, DH Lawrence, Dos Passos, Stein, Cocteau e ainda as pinturas de Picasso e Matisse, Chagall e Miró.... Que década! E ainda Bunuel, Lang, Murnau, Buster Keaton, Chaplin, Jean Renoir e René Clair... e o jazz, e Cole Porter, Irving Berlin, os Gershwin... Paul Klee e Kandinski.... Murilo Mendes e Oswald, mais Mario de Andrade e Fernando Pessoa... Como seria viver em mundo com tanto talento vivo e produzindo? Thomas Mann e Hesse, Proust e Valéry, Ezra Pound e Kafka. Bem...
Mas o livro....
Gide é moderno. Seu livro não tem enredo. Tem vários personagens que vivem. Gide os segue e cria algo de muito dificil de se fazer ( e o faz bem ) livro dentro do livro: um dos personagens escreve o livro que lemos. Enquanto a história corre, Edouard descreve o livro que prepara, o livro se chama OS MOEDEIROS FALSOS. Assim, enquanto lemos o livro, um dos personagens o comenta. E nos fala aquilo que dá certo, o que foi um erro, que personagens merecem mais espaço, quais devem sumir. Essa técnica, que poderia ser pedante ou hermética, funciona por ser natural em Gide. Não nos chóca, nos surpreende.
A base do livro é Edouard, um escritor que se apaixona por seu sobrinho, um adolescente brilhante. Há ainda Laura, amiga de Edouard que fica grávida de Vincent apesar de casada com outro. Vincent é irmão de Bernard, adolescente amigo de Olivier ( o sobrinho de Edouard ). Bernard foge de casa e prega a anarquia. Mas ao se apaixonar por Laura muda de opinião e seu crescimento espiritual é a melhor coisa do livro. Ele percebe que sua raiva era uma convenção, que ser rebelde pode ser um hábito, uma moda. Sua mudança é maravilhosamente bem escrita. Muitos outros personagens habitam o livro: condes decadentes e sórdidos, escritores vaidosos, putaines bem sucedidas, crianças desequilibradas... O mundo gay é mostrado sem bandeirices ou exageros, há inveja, há paixão, há timidez. André Gide foi militante, seus livros eram abertas confissões sem culpa ( e não vamos esquecer que André Gide, que morreu em 1951, ainda teve tempo de conhecer e ser amigo de Oscar Wilde, o que mostra como Wilde poderia ter vivido mais e o quanto deveria ter produzido ). Há um fato no livro que irritará meus amigos psicólogos. Gide mostra o quanto a psicanálise tem de "otimismo cristão". A fé na compreensão, na ajuda, no descobrimento do bem, na confissão, no "bom espírito". Ele diz que o trabalho desses profissionais é útil como consolo a almas atormentadas, mas não diferente de qualquer outra fé. Se o paciente não possuir a fé cega em seu guia, adeus ciência.
Mas não pense que Gide é um anti-freudiano. Ele usa essa dúvida em relação a tudo. Inclusive as paixões. O quanto não escolhemos aquilo que gostamos, aquilo que desejamos, e mais, o quanto nossos sofrimentos não são papéis que escolhemos seguir. Gide nos joga essa dúvida no meio de seu livro, para ao final demonstrar que pode não ser assim. Talvez não tenhamos poder algum sobre sentimentos, vida, destino, gostos, afetos e repulsões. A vida como escolha de explicações, sempre falhas, consolos, falsas teorias. O que sabemos?
Ah.... esses franceses! É o mesmo tipo de escrita de Camus, Malraux, Sartre ou Lolita Pille. Uma montanha de pensamentos, tudo analisado a exaustão, derrotas e medos, dúvidas, e aquele enorme EU no centro de tudo. Esse tipo de narrativa não conta uma história, ela analisa e reanalisa os personagens, os disseca, os explica, e os faz perder. Me cansa. Nos cansa. É febril.
André Gide pode um dia voltar a moda. Georges Bernanos voltou. E Bernanos e bem mais árduo. Ler Gide não nos faz felizes. Mas pode abrir algumas portas. Vá lá....