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RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS - DOSTOIEVSKI

Interessante fazer uma comparação entre as estadas na prisão do autor russo e de Oscar Wilde. ---------------- Wilde, enquanto na prisão, começou a tecer elogios à São Francisco de Assis. Mas ao sair, entregou-se à bebida e a miséria. Dostoievski encontrou o renascimento dentro da prisão, e ao sair, vestindo uma nova vida, escreveu seus grandes livros. Por que essa diferença? ------------------ Wilde, pagão até o osso do pé, não conseguiu levar a cabo sua conversão. A apreciação cristã de Wilde foi puramente estética. O renascer após morrer lhe era impossível por ser inaceitável. Já Dostoievski mergulhou completamente no dogma cristão: é PRECISO MORRER para então VIVER. Sua estadia no inferno foi QUERIDA, ÚTIL, NECESSÁRIA. O cristianismo, religião que vê sentido na dor mais absoluta, lhe serviu, não de consolo, mas sim de alimento. ---------------- Leio este livro e o acho, talvez, o melhor romance do autor. Estranhamente, este, que deveria ser o mais chorão livro de Dostoievski, é, de longe, o mais sóbrio. Ele aceita a prisão e não só a aceita como vê nela algo de "bom". Ele descreve os prisioneiros como abnegados, estoicos, homens que não querem lembrar. Há entre eles um código de ética que só posso chamar de nobre. E a Sibéria surge como o mais belo lugar da Terra ( Cole Porter viajou por lá e achava o mesmo ). É um livro que se lé com prazer e é quase um manual de entendimento da dor. Dostoievski percebe isso logo, a prisão e os trabalhos forçados salvam sua vida, matam tudo aquilo que ele foi e lhe dão um novo nascimento. Eis toda a fé cristã em sua mais profunda realidade. A religião da dor, da morte e da ressurreição. ------------- Para Wilde nada disso era possível como para nós nada disso pode ser absorvido. Wilde como eu e como voce, está atrelado às coisas, aos objetos, aos luxos e prazeres efêmeros. Não havia como ele se despir da matéria e mergulhar na completa espiritualidade. Na prisão ele, inteligente, percebeu o poder de CONSOLO da cristandade, mas foi apenas isso, um consolo, exatamente o mesmo que ela pode ser para nós. Ao sair, de volta à vida, ele não pode renascer porque não morreu de fato. Wilde continuou o mesmo, apenas mais sofrido, ou seja, piorado. Dostoievski, homem da realidade russa de 1850, mundo sem luxo, sem exibicionismo, sem esteticismo, conseguiu se despir, se fazer espírito, morrer totalmente e assim viver de novo e novo. Esse renascimento é impossível para aquele que tem saudades das viagens que fez, dos objetos que teve, dos amores que provou, das paixões de sua vida. --------------------- Leia o livro.

DOSTOIEVSKI - NOITES BRANCAS

O filme de Visconti é lindo e não há como ler esta novela sem lembrar do rosto de Mastroianni. Nunca houve no cinema alguém que interpretasse um homem frágil de modo mais perfeito. Marcello conseguia ser vulnerável sem deixar de ser bonito, e sua triateza nunca era repgunante. Ele não apelava às lágrimas, era melancólico sem ser, nunca, fake. ----------------- Então leio Dostoievski, autor que amei aos 15 anos mas que desde os 30 eu não engulo. E logo lembro o porque.... Se Tolstoi é a voz do idealismo russo e Gogol da alma original do país, Dostoievski é o escritor que nos lembra da tristeza russa. E isso me dá desejos de matar o autor de Noites Brancas. Dostoievski dá sempre a impressão de estar escrevendo e chorando ao mesmo tempo. Tudo nele é fragilidade, dor, lágrima, falta de vontade, derrota. Eu sei que ele foi um gênio etc etc etc. Mas eu realmente o acho um mal. ----------------------- O que me dá pena, porque sempre leio Dostoievski querendo muito o amar. Foi um bom homem e no mundo de 2023 ele tem sido desvalorizado, isso porque ele acreditava em Deus. O mundo atual valoriza muito mais um autor russo semi esquecido que os mitos Tolstoi e Dostoievski. O mundo atual não suporta personalidades muito grandes, e mesmo que eu não suporte ler Dostoievski, é lógico que sinto o quanto ele era grande. ----------------------- Noites Brancas descreve um tímido romântico à perfeição. E é trágico o modo como ele, que é só bondade, se auto ilude. Para meu gosto pessoal, o autor estraga tudo por lamber as feridas do homem tímido. Ele sempre se comporta, Dostoievski, como um enfermeiro. O mundo era para ele um imenso hospital. Estou errado? Provável. Mas seria fácil eu tecer elogios ao humanismo de Dostoievski, sua sensibilidade, seu amor às pessoas. Mas não. O que vejo é um homem que sente pena de seus personagens. E isso me é insuportável. ------------------ Pois eu amo a fria narração de Henry James, a ausência de partido de Proust, a não simpatia de Nabokov. Todo texto de Dostoievski parece pedir por ser amado. Não, não amo não. É isso.

TOLSTOI, A BIOGRAFIA, ROSAMUND BARTLETT.

   A Rússia não existe. Nem Europa, nem Ásia. A coisa mais sensacional deste ótimo livro é fazer nos sentir dentro da Rússia. E a Rússia não é fácil não! Coisas que só existiam no país. O SANTO-TOLO por exemplo. Pessoas que vagavam pela nação, mendigando, sendo recebidas como santos homens e como tolos ingênuos. Aristocratas culpados. Não havia no mundo aristocratas tão esbanjadores e cercados de luxo como os russos. E ao mesmo tempo, em nenhum outro país acontecia de tantos deles largarem tudo e se tornarem peregrinos pobres. Tolstoi viveu todos os meandros da alma russa. Foi a encarnação daquilo que o país pode ser e será. Penso agora se há na Inglaterra alguém que encarne e alma inglesa. Ou nos USA. Ou na França. Talvez Wagner seja a alma alemã. Mas não há um só artista ou filósofo que resuma em si a alma da França, da Inglaterra ou de qualquer outra nação. Tolstoi é a Russia. E isso é muito complicado.
  O livro começa traçando as raízes da família aristocrata do autor. Pai e mãe têm origens nobres, a mãe com mais dinheiro, o pai com muito história. As primeiras 200 páginas do livro são sublimes. Tios e tias com vidas sensacionais. E alguma dolorosas. E então nasce Liev Tolstoi, em meio a muitos irmãos, parentes, servos, visitas, na imensa propriedade de Iasnaia Poliana. ( Servos eram parte de uma terra. Não podiam ser vendidos, portanto não eram escravos, mas eram parte das terras dos nobres, como eram as árvores e as casas ).
  O jovem Tolstoi usou sexualmente as servas, se apaixonou, caçava, brigava muito, duelou, serviu na guerra. Foi um jovem inquieto, cheio de ideias, dúvidas e excesso de energia. Desde cedo tinha paixão por vida no mato, exercícios. Mas a guerra o mudou. A absurda guerra da Crimeia, a luta contra turcos e ingleses. A Russia era então um esbanjamento. Muito dinheiro usado para o luxo, muita repressão politica e a religião ortodoxa. Tolstoi seguiu a fé de seus pais, por algum tempo. Começa então a escrever em revistas, em jornais. Publica pequenas histórias e logo se torna o escritor mais famoso da Russia.
  Faz amizade com Turgueniev, mas logo brigam. Nunca encontrará Dostoievski. Este admira Tolstoi, mas Liev o ignora. São opostos. Escrever Guerra e Paz é um prazer. Sonia, sua esposa de origem alemã, passa a limpo o texto. A obra estoura e vende muito. Pronto, ele é famoso. Mas existem os servos e Liev começa a mudar.
  A obra de sua vida é fazer o bem aos pobres. Incrível como Tolstoi passa a desprezar sua vida de artista. Ele dá muito mais valor às cartilhas educacionais que redige e imprime que ao seu livro de sucesso. Tolstoi quer educar o povo russo e abre escolas, inventa métodos educacionais, percorre as aldeias. Começa a ser perseguido pelo estado.
  Mas há a escrita. Ana Karienina é um martírio. Tolstoi escreve com dor, com desprazer, como obrigação. E o sucesso é mundial. Karienina se torna o romance mais famoso de seu tempo e Tolstoi o mais admirado dos autores. Mas ele continua a mudar.
  Pensa na morte, entra em crise, cria uma religião. Lança textos e livros religiosos, traduz evangelhos do grego, faz palestras, funda o "tolstoismo". Eis a obra da sua vida.
  Torna-se vegetariano, pacifista, influencia o jovem Ghandi. Comunas tolstoianas surgem nos Canadá, nos EUA, na Inglaterra. Ele prega o fim da propriedade privada, o sexo apenas como reprodução, o fim do estado, o trabalho como bem maior. Trabalhar com as mãos, comer o que se planta e seguir Jesus Cristo. Tolstoi é o guru da Russia e uma das pessoas mais famosas do planeta. E ao mesmo tempo passa a ser odiado pelos ortodoxos e pelo governo russo.
  Ele se abstém de suas posses, se afasta da família. Vive em trapos, como um santo-tolo. Prega a paz e a resistência pacífica. Então vem a Primeira-Guerra, a revolução de 17 e o bolchevismo. Tolstoi é considerado o precursor de Lenin. Lenin o admira, mas Liev é contra o estado, o que cria uma rusga entre as duas filosofias. Tolstoi morre em 1910, numa estação de trem. Seu enterro é um evento mundial e sua casa centro de peregrinação. O livro segue sua esposa e seus filhos até os anos 30.
  A vida de Tolstoi é o desconforto de um gênio com o mundo onde lhe coube nascer. Escrever era pouco para ele. O que ele desejava era mudar o mundo. Acabar com toda a violência. Trazer a verdade do cristianismo para o centro da politica. Dar comida e educação aos pobres. Dignidade a todos.
  Em 2017 ainda matamos bichos para comer bife. Ainda fingimos não ver os rostos de esfomeados. Rezamos sem atentar para nossa mentira fundamental: somos violentos. Educamos sem salvar. Vivemos sem agir. E a Russia, terra que Tolstoi amava mais que tudo, ainda é esbanjamento e luxo.
  Ler Anna Karienina foi um dos pontos fundamentais de minha vida.

O IDIOTA - DOSTOIÉVSKI

   Conheço escritores e críticos literários que dizem que Dostoievski escreve mal. Que é o pior escritor dentre aqueles que são gigantes. Entenda, eles falam do modo como ele escreve, não falam de seus livros. Ao contrário de Flaubert ( de quem não gosto ), o russo é descuidado. Ele muitas vezes escolhe mal as palavras, repete termos, deixa a coisa se expandir, corta pouco ou corta mal, se embaralha. Para alguém que ama o texto exato, preciso, perfeito, essa característica incomoda. Dostoievski não tem amor pela palavra, ele ama a mensagem. E ainda há mais um defeito...
   Por ser tão solto, descuidado, impetuoso, seu texto tem personagens sem grande lógica. Eles são profundos, mas inconstantes até o nível do inverossímil. Esse defeito, que pode não ser um defeito, irá incomodar aqueles que acham a vida real previsível. Para os que pensam ser a vida uma tempestade sem lógica e sem rumo, esse defeito pode agradar. Para eles não é um defeito, é uma psicologia nova.
  Bem, estou aqui para dar uma opinião e eu penso que sua psicologia é a psicologia de Dostoievski e isso me incomoda. Eu sei que todo autor escreve a partir de sua cabeça, e que é humanamente impossível não construir alguma coisa que não seja seu espelho. Mas o melhor artista consegue disfarçar isso. O grande escritor consegue criar personagens contrários ao que ele é e parecer crível fazendo isso. O grande artista olha o mundo fora de si e percebe um pouco o que esse mundo é. Ele deixa o Eu de lado e luta para alcançar o OUTRO. Aquele e aquilo que está fora.
  Muito da literatura, desde Montaigne, o grande ego, se aplica em dissecar sua própria alma. Escritores que olham o umbigo, o quarto, a fé, sempre DE SI MESMO, DE DENTRO PARA DENTRO. Hoje 90% dos autores não conseguem escrever nada que não seja espelho. Falam de seu passado, de gente que conhece, de bairros onde viveu. Não imaginam, não criam, não inventam. Apenas examinam.
  Dostoievski sabe criar. Mas é sempre auto referente. Todos os personagens são Dostoievski. Ou são amigos próximos de Dostoievski. E as situações são dramas vividos por Dostoievski. E quando ele cria uma surpresa, que pena, ela sempre parece artificial. Ele é imensamente melhor que autores como Gide, Sartre ou Lawrence, todos tão auto-referentes como ele é. Mas eu o culpo pela pior literatura que existe. A literatura que confunde criatividade com confissão.
  Para mim ler Dostoievski é duro. Fiz isso por amizade. É duro porque ele escreve como eu escrevo. ( Falo de estilo natural. É óbvio que sou ruim ). Ele escreve aos borbotões, em um tipo de febre sentimental, sem muito cuidado, sem muita delicadeza. E eu adoro autores que fazem aquilo que eu jamais conseguiria nem mesmo tentar fazer. Os escritores que corrigem, que pensam muito antes de escrever, que planificam, que sabem usar a frase perfeita, que criam a situação imaginativa e ao mesmo tempo convincente, que ficam páginas e páginas descrevendo um rosto, um sentimento, um pensamento. Os autores lógicos, falsamente frios, mestres em frases e parágrafos. Tudo aquilo que Dostoievski não é. O desinteresse pelo mundo de fora é tão grande em Dostoievski, que ele mal descreve uma sala, uma rua ou uma roupa. E quando o faz, faz com pressa.
  Bem, voce agora deve estar pensando: " Que idiota! Esse cara odeia um gênio universal! " Mas saiba que eu gostei do livro. É divertido. E, isso deve ser um defeito meu, engraçado. Não consegui levar um só personagem a sério. Todos me pareceram personagens de farsa teatral. Aliás, imaginei todo o romance como uma peça de teatro. Burlesco. Quase um Gogol. Um carnaval dramático.
  Tolstoi e Dostoievski são o Fla Flu das letras russas. Tudo o que disse sobre Fiodor não se aplica a Liev. Inclusive no fato de que Tolstoi é horrivelmente sem humor, mesmo involuntário. Cada frase de Tolstoi parece esculpida em mármore. Lhe falta o descuido de Fiodor.
  Por fim saúdo o quanto é maravilhoso poder ler um grande romance da era de ouro do romance. Entre 1750-1930 tivemos uma avalanche de grandes, vastos, belos, eternos romances. Cheios de personagens, de criação, de delicadezas, de vida. E Dostoievski tem vida, muita vida. E disso não podemos reclamar.