HAMLET, FREUD E COUTINHO.

   Vivemos num tempo sem tragédias. Temos dramas, temos azar, frustrações, mas não tragédias. Para a tragédia existir é preciso que existam deuses. É necessário o diálogo com algo de superior a voce mesmo, alguma coisa que lhe submeta. Se acima de nós existe apenas o vazio, não há tragédia, há apenas a solidão e o drama individual. Porque o trágico é uma dor que atinge todos nós. Na particularidade da tragédia individual reside a dor de todos. O drama é um drama. A tragédia é um símbolo universal. Dor comum. Comunitária.
  Um escritor da Folha diz que Freud errou porque não há nenhuma narrativa na vida humana. Que ele ( Coutinho ), teve 4 psicanalistas, e com cada um deles a narrativa foi diferente. A vida é um acidente, a narrativa é uma ficção, sempre.
  Coutinho acerta o alvo mas erra o caminho. Freud errou porque confundiu seu particular com o geral. Deu a sua vida a generalidade da verdade. Sua terapia é conversa entre amigos, apenas isso. Substituiu o pastor por um doutor. Igreja para ateus. Mas a narrativa existe, caro Coutinho. Várias narrativas e todas são válidas. Essa confusão não significa que elas sejam falsas. Elas são confusas, apenas. O próprio ato de existir sem narrativa já é um tipo de narrativa.
  Andei revendo o Hamlet de Olivier. Uma narrativa, a de Hamlet, que não é a única possível. Um modo de agir, o de Hamlet, que é apenas um entre vários possíveis. Hamlet é uma virtualidade. E Olivier escolheu o viés freudiano, viés que era moda em 1948. Um caso edipiano. Assim, toda a grandiosidade cosmológica da peça é reduzida a fricotes familiares. O filme é bom porque a fotografia, os sets e a música são sublimes. Mas Olivier errou. Seu Hamlet é um drama e nunca uma tragédia.