A ALMA DO MUNDO- ROGER SCRUTON. MÚSICA, PRÉDIOS E ROSTOS.

   Roger Scruton se tornou o autor que mais leio. Fácil entender porque. Seu pensamento coincide muito com o meu e então posso dizer que sou um "scrutoniano". Chesterton tem um lado de frequentador de igreja que não bate com minha preguiça, mas Scruton alcança a fé sem negar a ciência. Ele faz perguntas, perguntas incômodas.
   De todos os livros dele que li, este é o menos acessível por ser o mais puramente filosófico. Ele fala de Kant, Hegel, Kierkegaard, Locke, e de Darwin, Freud, Marx, as vozes dominantes de hoje. Se voce conhece Scruton, sabe que ele aponta como "o mal do tempo atual", a morte da beleza, da fé e do humanismo. Para ele, tudo isso pode ser dito com uma palavra, a "morte de Deus". Entendido isso como o fim do sentimento de continuidade, de se viver e trabalhar para a eternidade, o senso de se fazer parte de um passado vivo no presente e carregado ao futuro.
  Dentre os vários assuntos Scruton fala de música, um de seus mais caros temas. Ele diferencia ouvir de escutar. Hoje se escuta música, mas pouco se ouve. Ouvir pressupõe tempo, silêncio, atenção e lugar apropriado. Com a vulgarização do escutar se perde a chance de encarar a música como uma experiência de crescimento, de refinamento dos sentidos e de beleza. E nesse texto interessantíssimo, Scruton levanta a questão de que a música é uma coisa inexplicável. Encadeamento de sons que dizem muito sem falar nada, que mostram um mundo sem ser visível, que nascem do nada, que não têm matéria, que não se pode explicar. Voce pode analisar e saber tudo sobre tom, timbre, notas, mas mesmo assim não sabe porque esses sons conseguem falar, mostrar, levar e embelezar. São harmonias, crescendos, combinações que revelam porquês jamais explicados.
  Daí Scruton vai ao mistério do rosto e ao maior dos mistérios, a empatia. O olhar olho no olho que mostra a alma. Nossa procura por algo de escondido no olho do nosso amor. Pornografia é a destruição do rosto, a transformação de sexo em pernas e bundas. O amor e o erotismo são faces, rostos, olhares. O rosto que fala sem falar, eis a revelação da alma. Olhamos o rosto de uma pessoa e não vemos olhos e nariz, boca e orelhas, vemos um sujeito que ansia por ser revelado.
  E daí vem a arquitetura e de forma esperta Scruton revela que a boa arquitetura tem rosto e a má tem objetos. Boas construções são como rostos, têm vida, são únicas, revelam o que se esconde por trás. Más construções nada revelam. São corpos sem rostos. Não falam, não mostram e nada comunicam. São mortas, frias, indiferentes.
  Fiz um resumo apenas, o livro é vasto, grande, colossal. É preciso o ler.

SUICÍDIO E ALMA - JAMES HILLMAN

   Na verdade é um livro indicado para terapeutas. Ele ensina um modo de lidar com pacientes suicidas. E fala, de uma forma interessante, corajosa, do que é esse ato.
   Hillman morreu em 2011 e foi um dos mais lidos junguianos dos anos 60-90. Neste texto ele defende a não-especialização dos psicólogos e, mais ainda, faz uma defesa apaixonada do direito à morte.
  Construímos nossa morte dia a dia. Nossa alma, parte mais importante de nós mesmos, luta por evoluir, crescer, desabrochar. Mas, na vida, só nasce aquilo que se desfaz, aquilo que morre. Para uma nova fase aparecer, para a vida se renovar, é necessário se deixar morrer. O suicida é aquele que não soube simbolizar a morte, que não entendeu a morte e que escapou do desespero. Não existe mudança sem dor, não há morte sem desespero, não se encontra nada sem que se perca tudo. É um fato radical, não existe acordo: crescemos criando mortes. A morte da infância, do amor, dos pais, do passado, das esperanças, das certezas, da fé. E renascemos somente após morrer. O suicida se poupa disso tudo. Ele mata seu corpo por não suportar a morte da alma. Ele não é o grande desesperado. Ele morre antes do grande desespero.
  Nosso mundo, científico, ama a vida. E considera que vida boa é vida longa. Prolonga-se a vida, mesmo que mal vivida. Mais que isso, poupa-se a pessoa de toda morte. Vida sem morte, sem símbolo, sem luto.
  A forma como Hillman explica a influência, nefasta, da medicina sobre a terapia de alma é instigante e esperta. Médicos lidam com sintomas e curam sintomas. Psicólogos têm a ilusão de poder curar sintomas. Se esquecem que o sintoma é a pessoa. Médicos dão diagnósticos e aliviam a dor. Psicólogos querem aliviar e diagnosticar. Diagnóstico em psicoterapia é uma piada. Cada ser é sua dor, cada ser é uma alma única. Pior de tudo, o médico deseja que o doente volte a ser o que ele era antes da doença. Um paciente em terapia não pode voltar a ser o que foi um dia. Isso seria negar sua evolução rumo à individuação. Na fantasia de ser um "médico", psicanalistas vendem a ideia de que uma pessoa é uma origem eterna, um ser criado na infância, e que todo mal vem de lá. Como patologistas, querem crer que uma pessoa pode ser reduzida a pedaços mínimos, partículas mais simples, átomos comuns. Não. O paciente é uma vida que se faz aqui e agora e não no passado. Sua dor é agora, seu sofrimento é agora, seu desespero é uma presente que não passa. Não existe volta "ao início".
  O suicida é o individualismo levado ao extremo, e por isso é tão mal visto pela sociedade. Ele morre quando e onde escolhe, é responsável por seu ato, por seu fim. E para ele esse fim é o fim da morte. A alma, ansiosa por nova vida, leva a destruição do antigo ao seu extremo. Perde o símbolo, torna tudo óbvio, sólido, imediato. Mata o corpo.
  Um terapeuta não tem como impedir um suicida. Mas pode e deve participar de seu ato. Ouvir e lhe abrir caminho para o desespero. A única chance é essa, facilitar o diálogo entre alma e consciente. Respeitando sempre a morte do ser. A sua morte.
  Eu já morri mais de quatro vezes. A última foi em 2010. Todas foram marcadas por desespero, vazio, falta de vontade, medo, sensação de prisão, desperdício. Todas terminaram em renascimento, um novo modo de sentir, de querer, de ver a vida, de aceitar as pessoas. Não há uma receita para renascer. Pois não há uma receita para morrer. O suicídio vem quando a pessoa, mais que viver, perde o dom de morrer. Ela não consegue mais morrer, não consegue sentir a agonia, o desespero, a desesperança. Ela seca dentro de seu corpo e a alma, essa nossa parte que nunca morre e desconhece o tempo, que vive em transformação, reclama a morte, seu direito a mudança radical, ao crescimento. O corpo se rompe. Morre. A alma vence. Sempre vence.
  Para Hillman toda morte é um suicídio. Construímos nossa morte ao comprar um carro, uma moto, ao tomar uma droga, ao começar uma viagem, ao tomar sol. Ao nos apaixonar.
 

NO AEROPORTO

   Amamos aquilo que tememos...é um chavão e às vezes é uma verdade ( só às vezes ). Tenho receio de pegar estrada, mas quando estou nela fico doido de alegria. Estou numa agora, perdido de novo, tentando chegar no aeroporto, que fica fora da cidade. Passam campos limpos e sem fim, bichos em currais, algumas ruínas, pontes e riachos. O carro vai a 150 km por hora e eu me deixo ir com a paisagem. Nossa alma precisa de espaço.
  No aeroporto há uma alegria ansiosa. Sinto a energia do lugar assim como senti os eflúvios virulentos do IML. As pessoas aqui estão vivas, em movimento, e me dá uma vontade imensa de embarcar. Mas não para Paris ou Londres. Sinto vontade de ir ao Tahiti. De ir à Bali. Ao Congo. Lugares que podem fazer diferença em sua vida. Lugares de viajantes.
  Esperamos minha mãe que volta de Portugal. Ela acabou de perder seu filho, meu único irmão. Ele se foi porque sua alma, presa a um corpo doente, precisava voar. Ele quebrou a casca e saiu pelo ar afora. Livre afinal.
  Pessoas esperam com a gente. Uma muçulmana tem um cartaz onde se lê: I Love You Kamal. Ela usa um véu amarelo. Há outro cartaz onde se pode ler: Welcome Pravid! Um menino indiano que vem morar um tempo no Brasil. Chega um monte de gente vinda da Irlanda via Ethiópia. Uma mistura de caras com prancha de surf e negros cor de petróleo. E lindas meninas. Um grupo de hare krishnas cantam com tambores e sinos. Esperam mais um indiano.
  Minha mãe pegou o avião sozinha. Ela é forte. No voo uma menina de olhos e rosto lindos como um sonho, sentou-se ao lado dela. E veio a amparando por todo o caminho. Ela é brasileira e namora um luso. Vai lá duas vezes por ano. Ficam juntos 3 meses, e 9 separados. Minha mãe fala de seu luto. E a menina a consola, ajuda, segura sua mão.
  É noite e voltamos pelas estradas escuras. Meus primos e ela conversam. Eu sei que vamos todos sobreviver. Eu sei que a dor nunca será esquecida. Ela vai repercutir lembrando o valor da vida e da morte.
  Luzes ao longe em janelas espaçadas. A vida nasce todo minuto. Porque a gente morre a toda hora.

The Band, Up On Cripple Creek



leia e escreva já!

RICHARD FRANCIS BURTON - EDWARD RICE. A MELHOR BIOGRAFIA QUE LI NA MINHA VIDA ATÉ AGORA.

A JORNADA DE TODOS SE DIRIGE A SUA PERFEIÇÃO....Mantiq Ut Tayr.
  No último capítulo da vida de Burton, ele, doente, deprimido, traduz As Mil e Uma Noites. E escreve 500 páginas de notas sobre a obra. Segundo Burton, a vida é uma jornada, uma PEREGRINAÇÃO. Daí o fato de que todas as obras literárias que valem a pena, são viagens, são trajetos, são peregrinações. ( mesmo que interiores ).
  Mais que islâmico, Burton foi um seguidor do sufismo, o mais sutil dos ramos do islã. Não há como saber se Burton realmente acreditava em Allah, ou se ele apenas era um curioso. Mas, e isso é certo e verdadeiro, ele seguia a Tariq, o acobertamento da fé, o disfarce, o não revelar aquilo que se sabe de mais íntimo. No centro da fé islâmica mora o segredo. Não se deve dizer o que se sabe, o que se é e o que se deseja. Burton seguiu isso. Mais, viveu isso.
 O Nós e o Tú são um só. Assim se começa a explicação de todo segredo. Por detrás de todo ego há um Nós. E voce, o Tú, é Nós. O eu é a ilusão. Morremos quando morre o eu. Vivemos quando sabemos o Nós. Burton chegou até aí. Havia muito mais.
  O pai de Richard Francis Burton viajava. Inglês, era um irrequieto. Roma foi onde mais ficaram. Lá, o jovem Burton conheceu o calor, a sujeira, a balbúrdia, a vida solta e vadia. Se misturava na rua. Depois veio Oxford, Cambridge, mundo que o matava de tédio. Ele jamais amou a Inglaterra. Seu mundo era quente.
  Virou militar e diplomata. India. Sexo, muitas mulheres, caçadas, e o hinduísmo. O interesse de Burton pela religião era o do viajante. Ele ansiava por saber, por encontrar, por entender. Se transformava. Fisicamente ele se tornou cada local onde viveu. Virou hindu na India. Cigano entre ciganos. Depois Egito. Afeganistão. Muçulmano.
 Seu respeito permaneceu islâmico. Sua família era católica. Peregrinou à Meca, e nessa jornada ele poderia ter morrido. Era heresia um branco ir à Meca. Mas ele não era mais branco. Era um negro para os ingleses. Um renegado. Um maluco. Foi a Medina. Damasco. Amava as mulheres do oriente. Mulheres que amavam o sexo, que faziam sexo, que tinham prazer. Burton traduziu e levou o Kama Sutra ao ocidente. Escrevia 11 livros ao mesmo tempo. Lançou mais de 80 em vida. Um deles sobre seu grande ídolo: Luis Vaz de Camões. Burton achava que Camões era seu eu anterior. Se via nele. Traduziu o poeta luso para o inglês.
  Burton falia sempre. E viajava sem parar. Goa. Brasil. Paraguai. Argentina. Perú. Percorreu o Pantanal de cavalo. Navegou pelo rio São Francisco. Procurou ouro em Minas Gerais. Morou em SP e em Santos. Odiou o clima. Fez amizade com Pedro II.
  África. Andou selvas a pé. Aprendeu mais línguas nativas. ( Sabia mais de 70 línguas. Do persa ao tupi ). Conheceu florestas onde brancos nunca haviam pisado. Febre, feridas, bichos, infecções, uma lança que perfurou sua face de lado a lado. E ele continuava. A pé. Meses, meses e anos. Era 1870, o auge do mito do viajante inglês, do descobridor de lugares isolados, do civilizador de negros, do caçador branco, do pesquisador afiado. Muitos morreram em florestas, geleiras, desertos. Burton sobreviveu e sempre voltou.
  Amou o deserto. Deus vive no deserto. No silêncio. No nada. Nas estrelas do deserto. No frio da noite e o calor do dia. No limite da vida. Entre os beduínos que ele amava. Sempre em marcha. Sempre sem casa. Porque a casa era tudo. Todo lugar.
  Casou e não teve filho. A esposa era um romântica católica. Ela queimou documentos secretos dele. Sim, pois Burton era um agente do governo inglês. Um James Bond real. Abria caminho para o imperialismo. Mas disso quase nada se sabe. Ela queimou tudo. O que a rainha não esperava era que o James Bond se tornasse um negro, um nativo, um árabe.
  Burton dizia que só o islã salvava India e África da sujeira, da imundície, da crueldade completa e total. Havia limpeza, clareza e ética no islã. Todo um modo de ser que civilizava. E ele advertia que a Europa pouco tentava entender isso. A beleza do islamismo.
  Ele morreu feito sir. E famoso. Um dos símbolos do Império. Mas isso só veio no fim da vida. Porque na maior parte do tempo ele era o esquisito, o pornógrafo, o imoral, o negro, o escândalo. Foi traído, foi enganado, foi roubado. Seguiu sua jornada.
  Estava escrito. Tinha de ser assim. E assim foi.
  Nunca li melhor biografia.

IRMÃO

   Nós rodamos pela estrada e nos perdemos. Isso foi ontem, após o enterro. Caímos no rodoanel e entramos na Imigrantes. O tempo cor de chumbo e a conversa dentro do carro que nunca cessa. Porque temos de falar. Temos de falar muito. Palavras não expressam a verdade, mas o ato da fala, a força que nos faz emitir sons, esse ato diz muito. Verbo, sujeito e conjunção nada significam, mas soltar um som, um uivo, um blá blá blá, uma canção sublime, isso tem significado. A gente sabe.
   Cruzamos imensidões de água. Espelho cinzento, frio, retrato. Cada segundo gasto olhando a água era um prazer melancólico para mim. A natureza entende a morte e o que há de natureza em nós a aceita. A ajuda vem. Ela vem. Ela vem.
   Tomamos café numa padaria. Quando o liquido quente cai no meu estômago eu sinto que tudo está como precisa estar. Há um encaixe. E o carro corre muito, corta caminhões agressivos, segue a BMW do meu primo, e uma BMW corre muito mais que um simples GM econômico. Mas o carrinho se esforça.
   Não. Meu irmão não foi um samurai. E nem um inventor maluco. Meu irmão foi um homem que amava sua esposa. E que vivia só para ela e ela só para ele. Nunca o vi mentir. Nunca o vi esquecer. E só o vi chorar uma vez. A doença, a doença que destrói aquilo que ela pensa proteger, destruiu a vontade de meu irmão. Ele sabia que estava em auto-rebelião. Suas forças de defesa se voltavam contra ele mesmo.
  Mas não mais falarei de doença. Ela morre com ele e eu vi o fundo da cova onde ele está. A vinte metros de meu pai. Entre grama, pássaros que voam, vento em árvores. Um banco verde de madeira. Espaço para abrir as asas.
  Meu irmão era bonito. Tão bonito que me dava inveja. Ciúmes. Chegou à vida chorando, um bebê que não dormia e não comia. E que pegou laringite e quase morreu. Depois se tornou o que tinha de ser, alegria do meu pai, suporte da minha mãe. Era o favorito do pai. Jamais brigaram e falavam a mesma língua. Se entendiam como amigos. Com minha mãe havia um atrito. Ele pensava ser eu dela o favorito. Não era. Eu apenas sabia mais como falar com ela. Ela o admirava e respeitava. Por mim ela tinha preocupação.
  Fomos amigos. Muito amigos. Futebol nas tardes de domingo, no Morumbi, quase virei torcedor do SP por ele. Jogar bola na chuva. Rir do Chacrinha, do Carnaval na TV, de videoclips ruins, de desenhos animados bobos. A gente gozava as coisas, inventava novas palavras, tinha códigos secretos, rimas, ataques de riso sem fim.
  Ele bebia néctar de flores. É verdade. E engolia bananas até vomitar. Eu falava muito. Ele agia. Eu tinha melancolia. Ele brincava sem parar. Eu tinha insônia. Ele roncava. Eu falava. Ele se movia. Corria. Pulava. E às vezes a gente brigava...
  Agora é ir em frente. Pedir ajuda à meu pai, à ele, à meus deuses. Agora é abrir as asas. Voar, navegar, seguir pela água, pela Serra do Mar. Levar sua lembrança como uma das penas mais claras. Sua seriedade adulta que se desfazia em brincadeiras de bebê. Ele sabia amar. E por isso foi amado. ( Mas houve a doença... ).
  É cedo, muito cedo para não sofrer por ele.
  Ainda falo com ele dentro de mim.
  O BMW pega um desvio, e acena. Eu e minha prima seguimos rumo à casa. Minha mãe chega amanhã.

ISLÃ

   Doze anos depois estou relendo a biografia que Edward Rice escreveu sobre o aventureiro inglês Richard Francis Burton. Aventureiro é modo de dizer, pois Burton foi soldado, filósofo, escritor, descobridor e o primeiro ocidental a se tornar mestre do sufismo, corrente mais sofisticada e sutil do islã. Mas não vou falar do maravilhoso livro agora ( é a mais fascinante biografia que li e deveria ser obrigatória em dias como os de hoje ). Vou falar do islã.
   Uma das coisas mais legais deste volume é que ele fala do islamismo antes do 11 de setembro. Rice o escreveu nos anos 80. E Burton esteve na India, no Egito, na Somália, em Meca por anos e anos. Ele viu os mestres, ele fez os sacrifícios, ele viveu com mulheres de lá. Ele se tornou um deles. Por curiosidade e por fé. Era um europeu gnóstico. Entrou de cabeça na cabala e depois na religião de Maomé.
  Burton criticava o hinduísmo. O cristianismo. Mas nunca o islã. E um dos preceitos do sufismo é calar sobre sua fé. Não se mostrar diante dos infiéis. Ser invisível.
  O cristianismo, segundo Burton, errou muito em seus primeiros séculos. Errou por não insistir na reza diária como caminho para a concentração e a iluminação. Errou por não observar os horários do dia como momentos sagrados. Errou por não seguir uma receita de alimentos impuros. Errou por divulgar a dúvida e não a absoluta certeza. E exatamente em sua primeira grande crise, o século VI, surge o islã. Maomé traz de volta tudo aquilo que o cristianismo perdera.
  Para o seguidor do islã, a vida não tem questões a serem respondidas. Não há dúvidas. Vivemos num vale de lágrimas. Mas esta vida significa apenas um ponto, uma pulga, em vista da imensidão da eternidade. Estamos aqui para orar à Deus e para amar à Deus. Não para O questionar. Jamais. Todas a respostas estão no Corão. E só nele. Devemos ser limpos. E seguir os preceitos.
  Claro que existem as correntes que se detestam e se negam. Burton conheceu todas elas. E Rice as explica. É um intrincamento de caminhos sutis ou não. Mas o islã tem algo que o cristianismo tenta esconder : proibições. O cristianismo, sempre politico, fez concessões para poder crescer. O islã cresce por apresentar um mundo que não muda nunca. Ele é o que é e nunca mudará. Nega o tempo. Tempo que o cristianismo ama e venera.
  Neste momento de preconceitos de ambos os lados, ler este livro é acima de tudo um ato de paz.