O IDIOTA - DOSTOIÉVSKI

   Conheço escritores e críticos literários que dizem que Dostoievski escreve mal. Que é o pior escritor dentre aqueles que são gigantes. Entenda, eles falam do modo como ele escreve, não falam de seus livros. Ao contrário de Flaubert ( de quem não gosto ), o russo é descuidado. Ele muitas vezes escolhe mal as palavras, repete termos, deixa a coisa se expandir, corta pouco ou corta mal, se embaralha. Para alguém que ama o texto exato, preciso, perfeito, essa característica incomoda. Dostoievski não tem amor pela palavra, ele ama a mensagem. E ainda há mais um defeito...
   Por ser tão solto, descuidado, impetuoso, seu texto tem personagens sem grande lógica. Eles são profundos, mas inconstantes até o nível do inverossímil. Esse defeito, que pode não ser um defeito, irá incomodar aqueles que acham a vida real previsível. Para os que pensam ser a vida uma tempestade sem lógica e sem rumo, esse defeito pode agradar. Para eles não é um defeito, é uma psicologia nova.
  Bem, estou aqui para dar uma opinião e eu penso que sua psicologia é a psicologia de Dostoievski e isso me incomoda. Eu sei que todo autor escreve a partir de sua cabeça, e que é humanamente impossível não construir alguma coisa que não seja seu espelho. Mas o melhor artista consegue disfarçar isso. O grande escritor consegue criar personagens contrários ao que ele é e parecer crível fazendo isso. O grande artista olha o mundo fora de si e percebe um pouco o que esse mundo é. Ele deixa o Eu de lado e luta para alcançar o OUTRO. Aquele e aquilo que está fora.
  Muito da literatura, desde Montaigne, o grande ego, se aplica em dissecar sua própria alma. Escritores que olham o umbigo, o quarto, a fé, sempre DE SI MESMO, DE DENTRO PARA DENTRO. Hoje 90% dos autores não conseguem escrever nada que não seja espelho. Falam de seu passado, de gente que conhece, de bairros onde viveu. Não imaginam, não criam, não inventam. Apenas examinam.
  Dostoievski sabe criar. Mas é sempre auto referente. Todos os personagens são Dostoievski. Ou são amigos próximos de Dostoievski. E as situações são dramas vividos por Dostoievski. E quando ele cria uma surpresa, que pena, ela sempre parece artificial. Ele é imensamente melhor que autores como Gide, Sartre ou Lawrence, todos tão auto-referentes como ele é. Mas eu o culpo pela pior literatura que existe. A literatura que confunde criatividade com confissão.
  Para mim ler Dostoievski é duro. Fiz isso por amizade. É duro porque ele escreve como eu escrevo. ( Falo de estilo natural. É óbvio que sou ruim ). Ele escreve aos borbotões, em um tipo de febre sentimental, sem muito cuidado, sem muita delicadeza. E eu adoro autores que fazem aquilo que eu jamais conseguiria nem mesmo tentar fazer. Os escritores que corrigem, que pensam muito antes de escrever, que planificam, que sabem usar a frase perfeita, que criam a situação imaginativa e ao mesmo tempo convincente, que ficam páginas e páginas descrevendo um rosto, um sentimento, um pensamento. Os autores lógicos, falsamente frios, mestres em frases e parágrafos. Tudo aquilo que Dostoievski não é. O desinteresse pelo mundo de fora é tão grande em Dostoievski, que ele mal descreve uma sala, uma rua ou uma roupa. E quando o faz, faz com pressa.
  Bem, voce agora deve estar pensando: " Que idiota! Esse cara odeia um gênio universal! " Mas saiba que eu gostei do livro. É divertido. E, isso deve ser um defeito meu, engraçado. Não consegui levar um só personagem a sério. Todos me pareceram personagens de farsa teatral. Aliás, imaginei todo o romance como uma peça de teatro. Burlesco. Quase um Gogol. Um carnaval dramático.
  Tolstoi e Dostoievski são o Fla Flu das letras russas. Tudo o que disse sobre Fiodor não se aplica a Liev. Inclusive no fato de que Tolstoi é horrivelmente sem humor, mesmo involuntário. Cada frase de Tolstoi parece esculpida em mármore. Lhe falta o descuido de Fiodor.
  Por fim saúdo o quanto é maravilhoso poder ler um grande romance da era de ouro do romance. Entre 1750-1930 tivemos uma avalanche de grandes, vastos, belos, eternos romances. Cheios de personagens, de criação, de delicadezas, de vida. E Dostoievski tem vida, muita vida. E disso não podemos reclamar.