O MAIOR SHOW DA TERRA

   Eu estava no berço. E minha mãe deixava o rádio ligado, perto. Naquele tempo tocava Roberto, Tom Jones, Hollies e claro, Beatles. Lady Jane eu escutei nesse tempo. Assim como Ruby Tuesday. Eu sei, porque eu as cantava antes de aprender a ler. Eu sei cantar essas músicas desde sempre. São parte de minha vida.
  Minha casa ficava no alto do bairro e lá de cima a gente podia ver um pedaço do estádio do Morumbi. Em dias de jogo a gente ouvia a torcida. E ficava assistindo os carros que passavam. Eu continuava, entre córregos e pastos, a cantar Lady Jane, Ruby Tuesday e uma outra da qual só lembrava o refrão. Eu não sabia que todas eram dos mesmos caras.
  Passaram quase 50 anos desde então. Guerras acabaram, a Lua foi tocada, modas se foram, o tempo acelerou. Hoje os jovens são apressados. E eu continuo aqui, no bairro, e décadas depois eu sei quem eles são. Eles são os caras que criaram 50% do que se entende como rock. O lado sujo, tosco, sexy e infame da coisa. O lado de Dionisio. E assim, eles têm enterrado todos os concorrentes. São eternos. Estão além do tempo.
  Quando toca Simpathy For The Devil, em arranjo que faz tudo o que os Primal Scream levaram dez anos para fazer, eu saio de onde estou. E olhando as pessoas vejo almas que vagam além do tempo. Na verdade não são os Stones que estão além do tempo, todos estamos, eles apenas usam isso melhor. Jagger estar sobre o palco é a atualização do mito de Mefisto. Ele jogará flores para todos nós.
  Keith tem se apagado. Ele se obscurece gentilmente. Nessas horas é bom ser inglês. Eles sabem ser velhos. A velha cara sacana está lá. Os trejeitos. Mas é outro. Sua dimensão é a mesma de velhos curandeiros.
  Minha primeira lágrima foi ao ver Ronnie solar. Porque Ronnie é um cara possível. Ele é daqui, deste mundo. Ele vai no buteco. Ronnie é um face pra sempre.
  Mas Mick é impossível. Ele se fez. Tudo foi um plano feito por volta de 1968. E foi aí que Simpathy nasceu. Andando em Londres ele teve a antevisão de sua vida. E a viveu.
  Eles tocaram a dois quilômetros de meu berço. Eles vieram até mim. Eu fui até eles.
  Continuo careca. Continuo com mamãe. Continuo cantando She's a Rainbow.
  E Brian....bem, tinha um cara na pista vestido de branco com uma cartola preta. A banda ainda é dele não é...

O FRANGO ENSOPADO DA MINHA MÃE- NINA HORTA

   Assim como às vezes amamos a comida simples da mãe, também precisamos de livros como este. Nina Horta, quituteira veterana, escreve curtas crônicas sobre assuntos vários que acabam todos por fim em comida. Ela escreve bem, naquele estilo cheio de sabor calmo, brasileiro, sabor que temos perdido. Festas, casamentos, pratos, lembranças, ruas. Os temas são triviais como arroz com feijão, mas abrem desejos, como arroz e feijão. Posso dizer, e digo, que o livro exala aroma e que a melhor crônica fala sobre o prazer de se ter um quintal com jardim.
  Prazer que entendo. Pra mim um quintal é mais que desejo satisfeito, ele é a fábrica onde aprendemos a desejar.

CRISTIANISMO PURO E SIMPLES- C.S. LEWIS.

   O mal considera que seus atos são o bem. O bem pode às vezes ter dúvidas, teme que o bem que pratica possa ser o mal. Lewis sabe que o homem verdadeiramente bom duvida sempre de sua bondade. Lewis diz que Deus nos deu o livre arbítrio exatamente para isso: o amor e a bondade só podem ter valor se forem conquistas, e não algo dado. Não há valor algum naquilo que em nós é natural. O homem cristão é aquele que nega o que é natural. ( E só nessa frase já cai por terra todo argumento que diz que o erro dos cristãos é serem não naturais. Ora, essa é a própria razão de ser do cristianismo. Sair do que é natural. )
  O homem só pode começar a ser feliz quando abre mão de seus desejos e de suas posses. Essa é mais uma verdade que costuma ser mal lida. Não significa virar escravo ou cair na mendicância. No livro de Eric Clapton isso é bem explicado. É o momento em que reconhecemos que nada sabemos, que não temos mais força, que nada mais podemos fazer. É o momento além do desespero. É quando depomos as armas. Há quem chegue a esse momento de forma gradual, mas os vaidosos costumam chegar apenas após um imenso sofrimento. Foi o caso de Eric. Ele entregou tudo a Deus como forma de dizer: "Chega, nada mais sei e nada mais sou". E então ele iniciou sua caminhada rumo a paz. Imperfeita paz, pois Eric continua sendo humano, claro, mas um humano melhor.
  Lewis diz que não é preciso ser cristão para seguir as pegadas de Cristo. Há quem as siga pensando ser budista, ateu ou até mesmo pagão. Como existem fiéis que nada têm de cristão. O grau de comprometimento está no tanto de descompromisso com sua vaidade e seu orgulho. Quanto mais um homem preza seu ego mais ele sofre. Simples assim.
  Durante a segunda guerra CS Lewis falava dez minutos por noite, na BBC, sobre o cristianismo. A igreja dele era a inglesa, mas ele sabia que as mensagens do bem são dadas em várias fés. Este livro é um apanhado daquilo que ele falou no rádio. Por isso o texto é simples e conciso.
  Lewis explica o mal como um ato de orgulho. Toda maldade tem como raiz esse pecado, o orgulho. O diabo, anjo caído, é aquele que se achou melhor que todos. Toda alma começa a se perder ao se considerar especial, e termina presa na cela da solidão dos vaidosos. Mas não é preciso ser crente para ler este livro. A moral que ele advoga é inatacável. A única derrapada se dá quando ele fala das mulheres. Mas é uma pequena derrapada. Lewis se esforça para suavizar o machismo, e até se sai bem. No resto não há como atacar alguém que crê na bondade, na vida como aprendizado, e na evolução das almas rumo a perfeição.
  Penso que todos vocês, mesmo os ateus, deveriam ler este livro. Não pense que ele vai os irritar ou tentar os converter. Talvez vocês se surpreendam ao perceber que desde sempre suas estradas são as mesmas de Lewis.

Ritchie - Casanova



leia e escreva já!

EDNARDO FANTÁSTICO 1976.mpg



leia e escreva já!

PAVÕES MISTERIOSOS- ANDRÉ BARCINSKI....FOI ASSIM, MAS FOI BEM MAIS

   Caro André, o grande mérito de seu livro é o de tocar em assunto pouco explorado. Tem gente com menos de 40 anos que acha que MPB começa com Bossa Nova, salta sobre os anos 70 e continua com rock e Ivete. Eu lembro que até meus 18 anos eu não comprava música em português. Tinha preconceito. Às vezes até gostava, mas não tinha coragem de assumir. Muito menos de consumir. Mas então joguei tudo ao ar e comprei meus primeiros discos de MPB: Secos e Molhados e Pepeu Gomes. E comecei então a comprar muito. Era 1980 e eu tive muita sorte. O que se achava nas lojas era exatamente o melhor do Brasil, aquilo que fora gravado entre 1972-1979. Você tenta André explicar porque a música desse período é tão boa, e desculpe, você acerta e erra feio. Acerta quando diz que por serem menos profissionais, as gravadoras davam maior liberdade aos artistas. Ok. Mas hoje você grava um cd em casa e nem por isso nós temos novos Acabou Chorare...Você erra ao dizer que as rádios FM ajudaram a qualidade musical. É exatamente o contrário! As FMs destruíram a diversidade. Rádios AM como a Difusora e a Excelsior tocavam de Benito di Paula à Led Zeppelin, de James Brown à Ednardo. Isso nos dava uma imensa abertura mental. Você ligava o rádio para ouvir a nova do Bowie, e na espera acabava ouvindo Caetano, Alice Cooper e Slade. Nas FM o padrão de "bom gosto" era muito mais restrito. E hoje....bem...hoje o ouvinte escolhe o que deseja ouvir e acaba ouvindo a mesma coisa por toda a vida.
  Belchior merecia mais espaço. Ele foi um estouro em 1976. Mas ok...Devo dizer que você fala de Lulu Santos mais que o devido. Mas ok...Agora, ao falar da Disco você derrapa. Dá pra notar um certo preconceito. E não precisava falar do ato verdadeiramente fascista que rolou nos EUA com a queima de discos de discoteque no campo de beisebol. Foi um ato contra latinos, negros e gays. Além do que a Disco nunca morreu. Ela continuou com Madonna, MJ, Prince, e continua com Beyonce. Onde existir gente misturada dançando sons negros que não sejam RAP haverá disco. Se o Village People ou Sylvester fizeram sucesso só por 3 anos, devo dizer que o América, Bread ou Moby Grape são bandas de rock que também não fizeram hits por muito mais que isso.
  Outro erro André: Você às vezes se estica em assuntos que nada têm a ver com o tema do livro. Para que falar de coisas de fora do Brasil! O livro é curto demais, falta espaço, fale mais daquilo que importa! ( A crise nas gravadoras em 1980 não veio por causa do fim da disco. Veio por terem se tornado absurdos os custos de produção de um disco de rock. Bandas ficavam até um ano em estúdio!!!!! E pensar que Sinatra gravava um LP inteiro em duas sessões de seis horas! )
  Mas adorei o livro. Tanto que o li em apenas uma sentada. Não consegui parar. E sua descrição do que foi ouvir Ritchie pela primeira vez, em 1983, bate com a minha lembrança. Era um disco brasileiro que falava de frio, noite, e que lembrava a sonoridade do Roxy Music! Foi um choque de chique.
  A MPB entre 72 e 79 foi surpreendente, rica, poética, engraçada, trágica e sempre inspiradora. Ainda dá lições de criação e de gosto nos dias de hoje. Feliz de quem a escuta.
  Valeu!

A TERRA INTEIRA E O CÉU INFINITO- RUTH OZEKI

   Um livro de uma tristeza sem fim, longo e melancólico, representou para mim uma luta para ser lido. Ele é belo, mas é um buraco fundo, pois seu assunto mais fremente é o suicídio e todos os personagens, em crise, rodam nesse questionamento: até onde vale a pena persistir.
   No Canadá, uma escritora chamada Ruth, encontra na praia um diário abandonado. O diário era de uma adolescente japonesa em crise. Essa menina, chamada NAO, morava nos EUA e o pai, despedido na crise econômica de 2000, volta ao Japão. Na escola, a menina sofre bullying.  Frequenta um bar "francês" e passa as férias com sua bisavó de 110 anos, uma monja zen. O pai tenta se matar 3 vezes, a menina é estuprada, e o tio do pai foi piloto kamikaze na segunda-guerra. Esse o enredo do livro, mas seu tema central acaba por ser a física quântica e o zen-budismo.
  Seria uma tremenda mancada se eu revelasse a chave do livro. Espero que você passe pela árdua leitura. Ele não é fácil, mas compensa. O que posso dizer é que ele acaba por filosofar sobre escolha, tempo e claro, a vida. O que posso revelar é o choque que foi para mim tomar contato com a podridão do Japão de hoje. A menina sofre coisas inimagináveis por ser uma "estrangeira". Diz a autora que lá não existe a possibilidade de imigração, uma vez estrangeiro, estrangeiro sempre. É uma molecada competitiva, agressiva, vaidosa e mais que tudo materialista. Há um imenso vale que divide o país entre o tempo da guerra e o tempo de 1980 em diante. E nessa amnésia, até o profundo instinto guerreiro do Japão é renegado. Para os jovens, é uma lugar de paz e de calma, quando na realidade sempre foi um país de guerra e de crueldade.
  A vida no Canadá também se revela fraturada. As pessoas são apáticas, caladas e bastante intrometidas. O marido de Ruth, Oliver, é um homem do mato. A floresta e seus seres ameaçam sempre invadir tudo e todos.
  Livro forte.
  PS: Estudantes americanos de Stanford tentam banir do currículo todos os livros que "fazem mal". Virginia Woolff, Joyce e Proust, dentre vários, trazem depressão e tristeza para as pessoas, e por isso atrapalham a vida. É a primeira vez na história que a censura vem dos estudantes e também é a primeira vez que se fala em censura por questões de saúde mental e não moral.
  O livro de Ruth Ozeki, escuro e triste, é um alvo dessas crianças que negam o lado escuro da força.
 

TRUMBO- BRYAN CRANSTON-HELEN MIRREN-SCOTT-COOPER-WOODY

   TRUMBO de Jay Roach com Bryan Cranston, Diane Lane, Helen Mirren e John Goodman.
Jazz vibrante no começo e o filme consegue ir nesse ritmo. Para quem, como eu, conhece o cinema dos anos 50, o filme é uma delicia. O diretor, Jay Roach, jamais faz dramalhão, o filme é direto, não enrola, e conta sua bela história. Uma história que parece ficção de tão incrível. Mas é real. Foi assim. Dalton Trumbo era um dos vinte roteiristas mais bem sucedidos de Hollywood. Então acontece a lista negra e tudo desaba. O filme conta tudo de forma correta, darei apenas alguns esclarecimentos. Sam Wood, o diretor direitista do começo do filme foi um grande diretor. Bem mais importante do que o filme sugere. John Wayne era aquilo mesmo. E eu não o culpo. Wayne foi vítima do tempo e do meio em que foi criado. Ele lutava para ser o John Wayne das telas. Era um homem bastante complexo. Reagan fez mesmo o papel lamentável e espertalhão que o filme mostra. Ao contrário de Wayne, ele sempre soube quem era e o que queria. Edward G. Robinson foi uma estrela da Warner. Fraquejou e dedurou. E sua carreira depois disso nunca mais foi a mesma. Antes era um ator exuberante. Depois se tornou uma figura encolhida, amarga. O diretor de Roman Holiday, o poderoso William Wyler, não aparece no filme. Ele sabia que o roteiro era de Trumbo. Sua coragem merecia ser citada. E sim, Roman Holiday é o famoso A Princesa e o Plebeu, um dos mais deliciosos filmes, e que lançou Audrey Hepburn ao mundo. Muito bom ver Otto Preminger no filme. Otto foi o mais corajoso dos diretores. Quebrou vários tabus nos anos 50 e pouco se lixou para a lista negra. Era famoso, duro, e o retrato no filme é fascinante. Você já deve ter visto algum filme dele. De Bom Dia Tristeza à O Homem com o Braço de Ouro, seus filmes estão sempre na TV. Kirk Douglas sempre foi aquele cara direto que o filme mostra. Uma pena Michael não ter mais a idade para ter feito seu pai. Kirk era muito mais bonito que o ator que o faz. E temos Hedda Hopper. Na Hollywood de então, 3 fofoqueiras-jornalistas tinham o poder de erguer ou destruir uma estrela. Elas eram uma mistura de crítica de filmes, cronista de festas e relações públicas. Nada hoje tem nem de perto o poder que elas tinham. Jornais, revistas e rádio, esses seus veículos. Helen Mirren quase rouba o filme. Se sua Hedda parece caricata é porque na vida real ela era uma caricatura. E é fato, os grandes produtores de Hollywood se acovardaram porque temiam a divulgação de suas raízes judaicas. Era um mundo extremamente anti semita. Aliás, Edward G. Robinson também era judeu. E por ironia, Kirk Douglas também. No livro de Sinatra se diz que Frank odiava Hedda Hopper. E ela prejudicou muito Sinatra. Os Kennedy varreram esse tipo de coisa do mapa. E Reagan nos anos 80  trouxe de volta. Bryan Cranston ficaria bem com um Oscar. Ele é ótimo sem nunca apelar. Nada de emocionalismos baratos. Trumbo não é um coitadinho. Por fim, aqui no Brasil, nessa guerrinha ridícula entre vermelhos e verde-amarelos, se deveria assistir o filme e perceber o tipo de ridículo em que podemos às vezes cair. Não se deve apostar tudo em nada. E é bom ver tudo com o distanciamento do tempo que passa. Ah sim! Jay Roach, o diretor, fez os filmes de Austin Powers...bela carreira hem.... Nota 8.
   SOBRE AMIGOS, AMOR E VINHO de Eric Lavaine com Lambert Wilson, Sophie Duez.
Um francês de meia idade, bonito e bem sucedido, sofre um infarte. De volta à vida, ele resolve viver de um modo melhor. Mas esse melhor talvez seja,,,pior. O filme é agradável. Tem toques de comédia, às vezes vira drama, mas nada em exagero. É um tipo de episódio de série cool. Os personagens tentam ser "gente como a gente", mas não são. São personagens. O bom é que passam simpatia. É um filme legal para se ver no fim de tarde bebendo vinho branco gelado. Nota 6.
   PEGANDO FOGO de John Wells com Bradley Cooper, Sienna Miller e Omar Sy.
Um chefe de cozinha junkie tenta dar a volta por cima e ganhar mais uma estrela no Michelin. Que estranho! É um filme sobre cozinha que não desperta a fome! Na verdade o foco é todo na ambição e no excesso de trabalho. Eu já trabalhei nesse ambiente e sei que na vida real é ainda pior. Gritos, ansiedade e pressa. Sempre. O filme tem momentos bem bobos, mas depois melhora. E acaba sendo ok. O elenco é bacaninha. Em tempo de atores pouco interessantes com menos de 40 anos, Cooper acaba fazendo sua carreira sem grandes sustos. Nota 6.
  PERDIDO EM MARTE de Ridley Scott com Matt Damon
Hmm....que dizer...é tão....tolo! O cara fica só em Marte e calmamente passa o tempo cultivando batatas...Esse é mais um Robinson Crusoé, mas uma versão da história do cara que sobrevive numa ilha. No caso, Marte. Ok, as cenas com Damon são divertidas, mas todas as cenas na NASA são apenas propaganda. Chatas e dispensáveis. E são muitas! Se o filme fosse apenas Damon em Marte seria melhor. É um filme com muitos momentos beeem chatos...Nota 4.
  UM MISTERIOSO ASSASSINATO EM MANHATTAN de Woody Allen com Diane Keaton
Aff....que saco!!!! este filme de 1993 era o único Woody que eu nunca tinha visto. Que pena, é um pé no saco. Sem graça, vemos Keaton tentando febrilmente provar que seu vizinho viúvo é um killer. E temos um monte de diálogos cruzados, Allen em seu papel de bobo balbuciante, Diane histérica e por aí vai...chato de doer! Nota 1.

...MAS EXISTE A VIDA...

   Teve um peixe que foi o último. Quando me mudei pra este bairro, em 1972, ainda viviam alguns peixes nos córregos desta região. Nasci perto, no bairro vizinho, mas como esse bairro onde nasci fica no alto de um morro, o segundo morro mais alto da cidade, não conheci córregos até me mudar em 1972. Fui para um bairro mais baixo e me vi cercado por córregos e até mesmo riachos.
 Esses cursos de água ainda existem, nenhum secou. Mas, claro, os peixes se foram faz muito tempo. Não se deve dizer que estão mortos. Sapos ainda resistem. Pássaros brincam às margens. Mato e árvores crescem. Mas a água, imunda, está muito mais baixa. Lembro que havia uma profundidade de um metro, dois, e que agora mal chega a um palmo. O maior dos cursos de água tinha três metros, dava para nadar nele. E tinha peixe.
 Sábado no fim da tarde a gente andava pelo bairro. E a vida rodopiava ao redor da nossa mente. Bandos de passarinhos minúsculos se apoiavam nas cerdas de capim e se balançavam na brisa quente de janeiro. Cigarras cantavam alto e gafanhotos pulavam na estrada. Longas carreiras de formigas abriam caminho na terra seca e girinos escureciam as margens dos riachos. E mais ao centro da correnteza nadavam os peixes cor de prata, esguios, frios, condenados.
 Não sei quando eles desapareceram. Mas deve ter sido em um ou dois anos. Talvez o riacho tenha secado e depois voltado a ser o que é hoje, raso e pobre. Talvez uma carga pesada de esgoto tenha vindo, e como maldição tóxica, varrido a vida da água. Eu não sei. Mas o último peixe soube.
 Engraçado pensar que eu conheço um cara, vinte anos mais velho que eu, que caçou pacas onde agora é o estádio do Morumbi. O lugar era cheio de tatús, de gambás e de gatos do mato. Era 1960, e na boa, 1960 foi ontem! Eu lembro bem de 1980, e em 1980 tudo já era mais ou menos como agora, a única diferença é que tinha mais espaço, muito mais espaço, e muito menos barulho. Sapos e pássaros. O último gato do mato há muito fora embora. Em 1980.
 A vida é nossa casa e parece tolo dizer isso. Estou lendo um livro de uma nipo-americana chamada Ruth Ozaki. Houve um tempo em que havia mariscos em Manhattan. Como meu pai um dia viu peixes no rio Pinheiros. E nesse dia ele, imigrante solitário, sentiu que o rio Pinheiros era sua casa também. Ninguém hoje sente que o rio sujo é sua casa. Na verdade ninguém hoje olha para o rio Pinheiros.
 A gente vive e a vida é tudo. Desacredito da morte. Religioso que me tornei, vejo a vida como vencedora. Ela existe e fora dela nada pode ser. E a vida, onde ela está, é nosso lar.
 O último peixe do último córrego limpo sabia que era um peixe pra sempre vivo. E toda a filosofia de que me sirvo vive nos olhos do meu cachorro. Ele respira. E eu dou graças por isso.
 Até o fim.

DE CEMITÉRIO E DE MARCHINHAS

   As casas da rua continuam à venda. Ninguém quer morar nelas, ou o preço pode ser muito alto. O sol me faz suar e encontro meu amigo Julio que me espera em seu carro. O carro tem uma porta quebrada. A tranca não tranca. Ele dirige e as ruas parecem menos vazias do que eu esperava. É carnaval hoje. Segunda feira.
 O carro acha uma vaga. Os túmulos se amontoam no velho cemitério.
 - Você tem medo...eu não. Sabe, eu sou um ex ateu...tive umas coisas que me aconteceram...
 O velório fica no alto de uma ladeira. Logo na entrada vejo um cara conversando que me recorda, em sua aparência despreocupada, alguém que conheci muito tempo atrás. É Ricardinho. o irmão de Romeu, que é o cara com quem ele conversava. São dois irmãos que conheci nos anos 80 e que não vejo desde...1992...Caramba...
 Abraços e eles lembram de mim, o que me surpreende. Ricardinho não mudou nada. Romeu engordou, e como eu sempre adivinhei, continua solteiro. Tempos de hoje, somos quatro velhos amigos de 50 anos, três nunca se casaram. E aquele que nos uniu hoje, Giba, também morreu só, sem esposa, sem filhos, numa praia de Floripa.
 O caixão repousa entre flores. Talvez eu esteja acostumado aos enterros portugueses, não sei, mas eu estranho a ausência de lágrimas. Cerca de 40 pessoas estão ali, de pé, olhando o véu que cobre meu amigo. Não há crianças. Nenhuma.
 Giba foi capoeirista. E por isso um mestre de capoeira faz um discurso. Lembro então de como ele era quieto. Conhecia as pessoas sem fazer questão de as conhecer e ficava com as meninas sem nunca se apaixonar. Parecia um cara natural. simples, fácil de conviver, mas tinha terríveis acessos de teimosia. E brigava bem. Era alto.
 Quando o conheci ele tinha 15 anos. Eu tinha 18. Gostei dele de primeira. Era um cara que representava o melhor de então, dos anos 80-82. Um pé no take it easy hippie. E outro na vida louca dos anos que viriam. Pó. Onda. Estrada.
 Andamos atrás do caixão entre túmulos. Ricardinho reclama do absurdo daqueles túmulos que ostentam tanto. Muito melhor ser cremado. Eu peço para eles não se esquecerem meu desejo: ser cremado. E que minhas cinzas sejam adubo para uma mangueira. O caixão desce e o mestre canta capoeira. Batem palmas. Romeu fala em cerveja.
 Eu e Julio discutimos se a pessoa escolhe sua vida ou se ela é vítima daquilo que a vida faz. Giba viveu só. Sempre só. Numa praia. E morreu só. As pessoas, poucas, iam o visitar, mas ele era um homem quieto. E morreu cedo.
 A cerveja tem pedaços de gelo. Desce arranhando. Romeu continua o mesmo. Carros, motos, bebidas e um silêncio grande. No bar de esquina, cheio de gente que ele conhece, Julio lembra de uma música de sucesso dos anos 70. Uma canção que hoje seria proibida: "Te carreguei no colo menina, Cantei pra ti dormir"...
 Sinto que estou dentro de um sonho. Que o tempo não existe. Que estamos onde sempre estivemos. Mas Giba partiu e eu li as datas dos túmulos. Há quem tenha morrido em 1910.
 Passa um bloco de carnaval na rua. Cantando "Ó jardineira por que estás tão triste..." Garotos vestidos de panos brancos. E muitas meninas de shorts e garrafas na mão. Olho seus rostos e observo que nada há de alegre neles. Ou talvez eu não seja alegre. As meninas olham o vazio enquanto marcham atrás do som. Os meninos ficam bêbados. Um bando de coroas na mesa de um bar, nós, as assustamos com nosso olhar de lobo mal.
 O tempo passou meus amigos. Hoje achamos que todos os caras são viados e todas as meninas são mal amadas. O mesmo que nossos pais diziam e pensavam. E enterramos nossos amigos.
 Não sei se os melhores morrem primeiro. Os mais puros sim.
 As últimas meninas passam com suas bundinhas redondas em shorts brancos pouco sexy. O novo gole me parece ruim. Me levanto. Abraço Romeu e vou embora com Julio. Ele vai lançar seu segundo livro e um filme está sendo feito do primeiro. O sol lança tudo sobre a gente.
 O sol, ele é sempre o mesmo.

HÁ MALES QUE VÊM PARA BEM- A AUTOBIOGRAFIA DE ALEC GUINNESS

   Não cumprimente Alec Guinness por seu papel em Star Wars. Ele odeia. E assume que o filme serviu apenas para lhe dar um fim de vida confortável. Isso era dito em 1980. E era verdade.
   Na Grã Bretanha do século XX, Alec nunca fez parte do quarteto supremo: John Gielgud, Ralph Richardson, Laurence Olivier e Michael Redgrave. Alec era do grupo dois: Charles Laughton, Richard Burton, Marius Goring, Tom Courtney, John Mills, Ian McKellen, Cyril Cusak, Albert Finney e Peter O'Toole. Havia ainda o grupo três: Michael Caine, Robert Donat, Peter Sellers, Sean Connery, Paul Rogers, Nicol Williamson, Daniel Day Lewis, Ian Holm, Terence Stamp, Jack Hawkins, Rex Harrison...
   Alec nasceu pobre e passou fome. Começou no teatro muito humildemente e deve sua primeira boa chance ao mito Gielgud. Nesta agradável e bem humorada bio ele não fala tudo. Divide o livro em uma dúzia de capítulos e em cada um conta um relacionamento. São doze histórias de sua vida, não é "a sua vida". Edith Evans, Noel Coward, Gielgud, o alegre Ralph Richardson, Peter Glenville, e as lembranças da Segunda Guerra. Peças, filmes, jantares, festas e algumas viagens. Alec escreve bonito e escreve leve. O livro levante voo.
   Uma época de grandes peças e de atores inesquecíveis. Do afetado Olivier ao humilde Alec. Lógico que o conheço apenas das telas e nelas destaco A PONTE DO RIO KUWAI, que lhe deu um muito justo Oscar, e as comédias da Ealing. Guinness tinha o estilo inglês de representar. O papel vinha de fora para dentro, daí a maquiagem e os tiques. Foi muito famoso e fez vários filmes em Hollywood. Depois foi diminuindo o ritmo e quando George Lucas o chamou em 1977 para Star Wars já filmava muito pouco. Uma nova geração o conheceu. Foi o Ian McKellen para quem tem hoje mais de 45 anos.
   O livro não é fácil de achar. Mas vale procurar.