TRAGÉDIA E CATARSE: SEGREDOS E MENTIRAS, UM FILME DE MIKE LEIGH

   Nunca chorei tanto com um filme. A tentação, até o fim dos primeiros vinte minutos, é desistir. As pessoas parecem pouco interessantes. Um fotógrafo de gente do bairro, uma mãe solteira tola e chorona, uma adolescente chata, uma moça negra que procura sua mãe, que a deu para adoção décadas atrás. Um enterro, as ruas, casas sujas e pobres, o estúdio do fotógrafo. Depois dessa apresentação, surgem segredos. A gente pega esses segredos só pelas bordas, nada é muito claro. E com eles vêm as mentiras. E a dor.
   Escolhemos nossos pais, com eles podemos aprender alguma coisa que antes não tínhamos como saber. Essa frase me derruba. Ela é dita pela filha abandonada ( mas que viveu uma vida muito melhor que aquela da mãe biológica ), dita no meio do filme. E daí para a frente, num clímax de dor, a vontade é de jogar o dvd contra a parede. A mãe aceita a filha lentamente, a família se reúne para um churrasco e a coisa vem à tona. São alguns dos minutos, talvez trinta, mais devastadores do cinema. Desde Viver!, a obra-prima de Kurosawa, eu não me comovia tanto com um filme. A verdade é quase insuportável, a dor irrompe, e vem então a catarse...
  Pauline Kael disse que Sciuccia, de De Sica, é um filme quase insuportável. Que a dor que ele mostra, crianças nas ruas, abandonadas, chega ao limite do aceitável. O filme de De Sica não me tocou tanto, mas chorei sim, porque a beleza de sua direção nos consola. Há algo de bom ali, o próprio filme. Aqui não. Leigh é da velha escola trabalhista inglesa, aquela que nos deu Frears, Loach e Boorman, ele não disfarça, ele ama o povo simples, ele ama suas sagas tolas e vulgares, ele lhes dá nobreza.
  Brenda Blethyn é patética. Venceu o Globo de Ouro de 1996 por este papel. Suas cenas chegam ao ridículo e por isso são sublimes. Ela chora, ela se desfaz, ela afunda. É burra, é vazia, nada interessante. Mas é uma pessoa. Uma mortal. Timothy Spall prova mais uma vez ser o melhor ator inglês com menos de 60 anos. O pai é nobre. Sem ter  a menor consciência disso. Um herói possível. Que se acha um fraco.
  Nobre como é este filme. Em meio a dramas banais que falam de gente sempre esquisita ( drogados, loucos, suicidas, paranoicos, ninfomaníacos ), temos aqui um drama excepcional que fala de gente muito banal. Um dos grandes filmes ingleses de sempre, um dos melhores dos últimos 20 anos.
  Sensacional. E prepare-se, você vai chorar.
  PS: O final é perfeito.

INTUIÇÃO

   Um raciocínio apresenta começo meio e fim. Há todo um movimento linear, temporal, que leva o pensamento de um ponto A até um ponto B. Uma impressão vira uma certeza. Ou é descartada.
   Uma sensação também vive em um tempo linear. Ela nasce dentro de um estímulo. Uma visão, um som, uma lembrança. Daí a sensação cresce, se estica e dura. Até desaparecer. Após um dado tempo.
   A razão toma conhecimento dessa sensação e a aceita. Ou não. Teme a sensação e a apaga. Ou tenta. Ou deseja a esticar. Fazer com que ela dure mais tempo.
  A intuição não existe no tempo. Ela surge como afirmação já pronta. Ela não cresce, ela é. Ela não se faz numa construção progressiva. Está feita. Sem começo. A intuição surge adulta, como certeza. Ela é uma simpatia. Kant dizia que ela é a coisa a priori. O objeto já pronto antes de que o percebamos. Objeto como ente, seja sentimento ou coisa. Descartes classificava a intuição como verdade atemporal. E hoje se diz que é a capacidade de se estar dentro daquilo que se tem como objeto exterior. A intuição é ser aquilo que se intui: simpatia entre dois objetos distintos.
  Ou seja, além de negar o tempo, pois já vem pronta, uma intuição nega o espaço, pois dois se tornam um.
  Em mundo racional e positivista, a intuição se faz objeto de crítica da razão. Por estar fora de parâmetros, ela é vista como irracional. Em um mundo apressado e distraído, ela mal é percebida. A intuição passa a ser confundida com uma mera sensação passageira.
  A intuição é a visão da alma.

Gong - I Never Glid Before - Live 1973



leia e escreva já!

LENDO ULYSSES DE JAMES JOYCE

   No dia de Ulysses comecei a ler o livro de James Joyce. Falo o que ele nunca foi.
Chato, mal humorado, elitista, arduo. Estou adorando! Na verdade ele consegue capturar o sabor da vida. Pensamentos fragmentados, desejos rabiscados, sujeira e beleza. E o ruido ao redor que nos acompanha sempre e sempre. Os personagens se fundem ao meio. E Joyce, pegando Homero como guia, nos guia pela vida do mundo que mora em Dublin.
   Acima de tudo fica o amor de Joyce pela vida e pelo seu livro.
  Este meu texto quer apenas dizer que Ulysses nada tem do que falam. Me divirto. Para quem ama palavras, texto, ousadias, um deleite.

MORTDECAI/ JOHNNY DEPP/ ERROL FLYNN/ MORGAN FREEMAN/ BELLE E SEBASTIAN

MORDECAI, A ARTE DA TRAPAÇA de David Koepp com Johnny Depp, Ewan MacGregor, Gwyneth Paltrow e Paul Bettany.
Houve um tempo em que pessoas elegantes iam ao cinema. Para essas pessoas eram feitos os famosos filmes de ação sofisticada. Ou comédia sofisticada. De Ladrão de Casaca ate Charada, esses filmes, feitos de 1932 a 1970, tinham cenários pitorescos, atores bonitos e chiques, e trilhas sonoras espertas. Mas o principal eram os roteiros. Eles eram bem escritos, nada óbvios, cultos. Uniam Wodehouse com Coward. Esse tipo de filme continua a ser feito. Atores sonham em fazer papéis que foram de Audrey e de Cary Grant, e diretores querem mostrar seu lado Donen ou Lubitsch de ser. Mas não há publico. Os poucos que gostariam ficam em casa, e pior, os roteiristas cometem vulgaridades deploráveis. Todo ano estreiam quatro ou cinco tentativas de reanimar o chic em filmes, e todos naufragam. O ultimo a dar certo foi Oceans Eleven, faz tempo...Depp produziu este filme que une Jeeves e Pastelão. Eu gosto da tentativa, Depp está bem, mas o filme é um fracasso total! Muito tolo para ser chique, muito metido para ser pop. O fiasco passa pelo roteiro óbvio e por Gwyneth, uma atriz feia fazendo papel super sexy. O filme, que triste, tem dois ótimos personagens jogados no filme errado.
A MESMA VIDA de Richard Locrane com Morgan Freeman e Diane Keaton
Pra que mudar de casa? Essa a questão. Um casal pensa em se mudar e descobre que é melhor ficar. Pois é... Qual é a desse filme? Ruim? Não. Bom? Não. Diane faz o mesmo papel desde 1978. Morgan está bem. Ele não faz Morgan. Nota 4.
BELLE E SEBASTIAN de Nicolas Vanier com Felix Bossuet e Margaux Chatelier.
O filme teve a maior bilheteria da França em 2014. Mas é bobissimo. Em 1943 na divisa entre França e Suíça, um garoto lida com nazistas, um cão perdido e uma fuga. É chato.
Deliciosa Mentira de Irving Pichel com Deanna Durbin e Donald OConnors.
Tudo deu errado nesta penúltima produção com Durbin. Ela largaria o cinema no ano seguinte e viveria mais 40 anos aposentada na França. O filme tem em John Dall o pior herói romântico do cinema. A gente nota a cara de Deanna segurando o riso.
O INTRÉPIDO GENERAL CUSTER DE Raoul Walsh com Errol Flynn, Olivia de Havilland e Anthony Quinn.
Nada a ver com o verdadeiro Custer, mas ora, isto é cinema! O grande cinema dos anos trinta, uma aventura que une ação, romance e humor e nunca perde o ritmo. Walsh foi um dos inventores do filme de aventuras. Errol está em um de seus grandes dias, seu Custer é delicado, suave, meio tolo, e mesmo assim é totalmente heróico. Um dos grandes filmes de seu tempo. DEZ!!!!!!
UMA CIDADE QUE SURGE ( DODGE CITY ) de Michael Curtiz com Errol Flynn, Olivia de Havilland e Bruce Cabot.
Western sobre o progresso corrupto do oeste. Flynn faz um caçador que luta contra os poderosos. Mais um dos grandes filmes de Flynn. Os westerns que ele fez são tão bons quanto os melhores de Wayne ou Cooper, mas têm o modo Errol de ser, são mais educados. DEZ!!!!!


HORAS ITALIANAS, HENRY JAMES

A Itália abriu mão da fantasia e do ócio, e não abraçou o modo de vida do norte europeu.
Essa frase é de Henry James, 1880. Atual. Neste livro o autor passeia por Roma, Turim, Veneza como flaneur. E nos dá suas impressões. É um passeio culto, belo, com alguma ironia, e, óbvio dizer, maravilhosamente bem escrito. Apenas Proust escreve como James.
Ficamos sabendo que o carnaval em Roma durava um mês, e que o modernizavam para durar apenas dez dias. Entendemos o porquê da melancolia de Firenze. A feiúra da moderna Itália, a tomada das villas por ingleses e americanos.
A ideia de que cada nação dá algo de seu ao mundo, e que a Itália nos deu o melhor, a beleza. Por mais que o país decaia não pode ser condenado. Deve ser amado.
James ainda explica onde reside a originalidade dos palácios, o motivo de tanta poesia e o caráter de seus habitantes.
Ele não afirma nada, apenas, felizmente, sugere. O autor, calmo, percebe a miséria, a vulgarização, a podridão, mas salva o belo, o que vale a pena, aquilo que fica.
Um prazer.

UMA EDUCAÇÃO OBJETIVA.

Perrenou. Nasceu na Suíça em 44. Sociólogo, ele diz que cabe ao sociólogo salvar a educação de sua mediocridade atual. Como? Fazendo com que o aluno seja formatado para aquilo que a sociedade do futuro irá pedir. E só o sociólogo pode antecipar esse saber.
Ao contrário do que dizia Hannah Arendt, ele nunca fala que a educação deve preservar a cultura, salvar o mundo. Para ele, a educação deve ser relevante ao mundo prático. Deve ensinar como economizar, como conseguir trabalho, evitar AIDS, arrumar uma casa. História, geografia ou biologia só importam se forem úteis. E as artes só terão valor se forem práticas, claras, se tiverem uma função.
 Para ele um poema só vale se explicar alguma coisa. Um filme deve ensinar algo de útil.
Essas teorias educacionais foram desconsideradas em todo o mundo. Menos no Brasil. O governo FHC convidou o sociólogo para elaborar as bases educacionais que originaram o ENEM. O PT mantém. Abrimos mão da cultura como valor e transformamos tudo numa questão de utilidade. O prazer não conta.
Perrenou é uma besta.

IRMAOS MARX/ DENNIS QUAID/ ERROLL FLYNN/ GABLE/ A MÚMIA/

SMART PEOPLE de Noam Murro com Dennis Quaid, Sarah Jessica Parker, Ellen Page, Thomas Haden Church.
Um professor viúvo cuida dos dois filhos teens. Seu irmão esquisito vem o visitar. É um filme bacana. O professor é um arrogante babaca, mas há beleza na sua relação com sua nova namorada. Quaid envelheceu. É um choque para quem o viu em 1979, estreando no filme dos gazeteiros. Ellen Page é bem interessante. A trilha sonora quase mata o filme. Nota 6.
CAPITÃO BLOOD de Michael Curtiz com Erroll Flynn, Olivia de Havilland, Basil Rathbone.
E do nada um australiano chamado Erroll Flynn protagoniza a mais marcante das estréias. Vindo do nada, este filme faz dele o paradigma do herói de aventuras. Belo, alegre, ágil, esperto. Blood é um médico que vira escravo e depois pirata. O filme é origem de toda uma linhagem que passa por  filmes de ficção, piratas, policiais e até da Marvel. Um clássico. Nota dez!
A MÚMIA de Karl Freund com Boris Karloff e Zita Johann.
De todos os clássicos de terror da Universal, é este meu favorito. As imagens são deslizantes, as cenas parecem de sonho. Karloff jamais esteve melhor. Karl Freund foi um grande fotografo, mas dirigia mal. Mesmo assim, é um grande filme. Nota dez!
TRÁGICA DECISÃO de Sam Wood com Clark Gable, Walter Pigeon e Van Johnson
Tirado de uma peça, é um filme estático. Mostra que o bom general é aquele que não exita em sacrificar seus homens. Duro de ver.
TRINTA SEGUNDOS SOBRE TOKYO de Mervyn Leroy com Van Johnson e John Garfield
Pilotos são treinados e enviados para o Japão. Se trata do primeiro ataque à capital. O filme é todo OK, mas a cena da entrada no Japão, o vôo rasante e as explosões lá em baixo são de uma beleza terrível. É inesquecível.
UMA NOITE EM CASABLANCA de Archie Mayo com Groucho, Chico e Harpo.
Eles aprontam em hotel no Marrocos. Não é dos melhores. A gente percebe que Groucho está no automático.
NO CIRCO de Edward Buzzell com Os Irmãos Marx
Este é bom. Como diz o titulo, eles ajudam um circo a se manter. Não é um de seus clássicos, mas é digno do nome dos três. Harpo rouba o filme.

MOZART, BREVE BIOGRAFIA, PETER GAY

Uma breve biografia de Mozart escrita por um bom escritor. Ele evita todo romantismo. Mozart foi um gênio inexplicável. Peter Gay nunca tenta explicar a genialidade. Ela existe. É um dom. E por ser um dom é inexplicável. Mozart assim não é visto como vitima, como um infeliz e muito menos como uma criança grande. O filme famoso de Milos Forman é bonito mas falso. Salieri era quase amigo. Mozart sabia que era um gênio. Gastava demais em roupas, viagens e no jogo. Tinha crises de melancolia. Que logo eram superadas pelo trabalho. Adorava sexo. E não suportava gente pobre.
Mozart compunha aos 4 anos. Uma sinfonia aos 8. Uma ópera aos onze anos. Famoso quando criança, excursionava com o pai. Era recebido por reis. Quando a infância acabou, a fama se foi. Mas não a memória. Mozart sabia ser digno de reis. Mas a música em seu tempo ainda não comportava personalidades imensas como Wagner ou Beethoven. Ele era um serviçal. Como um preceptor ou um camareiro. Dependia de favores, de mesadas, do bom humor de um mecenas. Isso o exasperava.
O pai era seu rival. O pai queria obediência absoluta, Mozart o amava, mas o pai o oprimia. Essa a questão central de sua vida. Lidar com a inveja que o pai, músico, sentia do filho, genial.
Peter Gay diz que quando Mozart morreu, aos trinta e cinco, de febre reumática, foi lamentado. Haydn sabia reconhecer seu gênio, outros também. Em vida ele teve êxito, apenas menor que seu talento merecia. O século seguinte o valorizou e o século XX o consagrou.
Mozart é, com Bach e Beethoven, o supremo deus musical. Dos três é meu favorito. Descobri seu concerto para piano número vinte em 1988, e desde então considero esse o melhor trabalho musical da história. Seja sinfonia, jazz, música popular, rock, nada se compara aos trinta minutos desse concerto. Do primeiro acorde, grave, baixo, soturno, ao último, alto, alegre, vivo, tudo é um milagre de beleza.
Mozart é inexplicável? Mais que isso, inesgotável.

O GATO FILÓSOFO, KWONG KUEN SHAN

Saiu agora este pequeno livro de uma jovem de Hong Kong. É feito por desenhos, lindos, de gatos, intercalados por ditos de filósofos da tradição chinesa.
Um belo presente.

EU

Depois do romantismo, já mais de duzentos anos, não conseguimos mais ver o mundo com isenção. Temos de marcar nosso eu em tudo. É até difícil tentar entender que até os românticos falar do eu era sinal de falta de imaginação. A sinceridade em arte era deselegante e falta de espírito. Ninguém queria ser sincero ou original. A ambição era fazer melhor aquilo que todos faziam. Seguir uma tradição, e dentro dela ser o mais perfeito.
Era assim que pensava Shakespeare, Cervantes, Racine ou Voltaire. Bach, Mozart e Haydn. Fazer o melhor. Refazer com genialidade. Copiar e aperfeiçoar.
Com Beethoven, Byron, Poe, Hugo, surge o desejo de ser Único. Sinceridade e originalidade, expressar um Eu Único. Ser diferente de todos.
Desde então passou a ser elogio dizer que um artista fala a verdade, ou que ele faz algo que ninguém mais faz.
Mas vive ao lado desse impulso o espirito clássico. O fazer bem feito, o não confessional, a habilidade, a preferência pela forma.
Li no site musical uma critica antiga sobre Paul. Lá se diz que Lennon pode errar, mas ele é sincero. Paul mente, inventa, é apenas um fazedor de canções.
Essa é a mais romântica das criticas. A sinceridade como valor artístico confunde moral com estética. E o dom do belo perde valor se não for vivido e portanto, sincero.
Neste século as coisas mudaram. Sinto que o valor do bem feito, do técnico, do aparente perfeito, aumentou. Mas seremos sempre românticos. Assinaremos nosso nome em tudo. O eu estará como marca principal. Deus se foi, o Eu veio tomar seu posto. E é para ele que trabalhamos. Eu.

O VENTRE DA BALEIA, JAVIER CERCAS.

Que Balela! Que baleia! Papo furado!
O perigo do livro umbigo: who Cares? Quem se importa com os problemas amorosos de um cara tão banal?
Um saco!
E a Espanha de hoje é só isso? Cerveja, ciesta e fiesta?