A RAZÃO VIVE ONDE A MORTE IMPERA, MIGUEL DE UNAMUNO

   Tenha em mente que bichos não cometem suicídio.
  É sempre um prazer encontrar um autor que escreveu, noventa anos atrás, coisas que voce pensa desde muito mas que não conseguia as ordenar. Uma das ideias mais radicais de Unamuno é aquela que diz que a razão tende sempre à morte. Mais que isso, a razão só compreende aquilo que está morto. 
  Ela gosta e lida com partes de um todo, com objetos estáticos, com momentos congelados dentro do movimento. A razão é incapaz de estudar aquilo que não comporta tamanho, peso e limite temporal. Emoções só lhe são compreensíveis depois de vividas, quando já mortas. Tudo que a razão toca tem de ser morto. Único modo de ser dissecado e ela ama dissecar, desfazer, reduzir, diminuir, para assim fazer com que a coisa fique a dispor de seu entendimento, entendimento esse naturalmente pequeno. 
  Mais que isso, para a razão pura, viver é um ato irracional. Porque ela é incapaz de aceitar a irrazão primordial da vida, ato que não se justifica racionalmente. A razão pura, sem nada de irracional, ama a morte, estado em que tudo se define, se arruma, em que tudo tem começo e fim. A morte é arrumação. Estado que jamais fugirá a uma definição. 
  Na vida tudo foge à razão e tudo é assassinado por ela. Racionalize o amor e voce o terá morto e impotente. Racionalize a raiva e voce a terá corrompido. Racionalize a paixão politica, a arte, a própria vida e voce a destruirá. E nada pode ser mais insuportável `a razão que a ideia de vida após a morte. 
  Porque? Porque mais que o amor ou a ideia de Deus, a vida eterna seria a vitória final daquilo que não se explica sobre a razão, seria a vitória do infinito, do indestrutível, do irredutível, do irracional. Da vida.
  Falemos da vida então. Se a razão tende a, e defende a morte, o não-movimento estático, então o que é a vida? Viver seria ter fé. E ter fé significa acreditar irracionalmente. Não necessariamente religião, mas não se vive sem se ter fé irracional em algo. 
  Não entenda irracional como fantasia. Irracional tem a ver com real que foge a razão. Inexplicável. A vida. Essa fé pode se chamar amor, arte, algum tipo de ïsmo", ideologia. Todas sob a dissecação racional são "sem sentido". Todas fazem parte da vida.
  A razão chamará o amor de instinto de perpetuação, dará a arte o nome de consolo, chamará a religião de ópio, dirá que ideologias são modas e assim destruirá toda a substância da vida, vida que não se define, que é viva e portanto foge quando tentamos a capturar em uma fórmula. Só se presta a análise quando morta, estática, passada.
  Mais que texto antiracional, os escritos de Unamuno são um alerta contra a maldade que vive ao lado da razão pura.
  E não nos esqueçamos, tudo foi escrito antes da solução racional:: o nazismo.
 
 

MAIO, 29, NASCI

  Nasci a uma da manhã. Isso não fez de mim um boêmio pois eu sempre amei o sol. No entanto minha mãe conta que fazia muito frio. E que vim para casa enrolado em cobertores, numa tarde em que garoava e logo escurecia. Posso imaginar o táxi subindo a rua Progredior e me deixando na casa onde fui morar. Rua de paralelepipedos, escorregadia, o carro era um DKW, fazendo o ronco de duas marchas desses carros que se pareciam com tartarugas mal humoradas. Senti então o frio de outono pela primeira vez. Na ponta do nariz. E em meio as familiares vozes de meus pais pude perceber o som do mato que se movia no vento das cinco horas.
  Passaram algumas décadas e eu continuo achando que a vida se revela na garoa de tardes frias e que o mato dança em finais de dias escuros. Não existem mais DKWs e a maternidade de Pinheiros sumiu. A rua Progredior hoje se chama José Janarelli. Mas a casa onde vivi está de pé, igualzinha, e minha mãe permanece em minha vida. Ela conta que eu não dava trabalho nenhum, raramente chorava e dormia o dia inteiro. Talvez eu preferisse sonhar. Talvez eu já sentisse saudades antes mesmo de viver. Mamava muito e logo abriria os olhos e descobriria meu maior amor: as cores, o brilho da luz. No rádio tocava Mellow Yellow.
  É uma hora de mais um dia 29 de maio. Meu pai se foi, meu bairro mudou, meus sonhos se apagaram e minha voz desafinou. Mas ainda existe a cor e o mato dança. E mais uma vez tudo me fala e encanta.
  Vida, valeu.

MIGUEL DE UNAMUNO. RAZÃO CONTRA CORAÇÃO. EIS A TRAGÉDIA DA VIDA.

   Reitor da Universidade de Salamanca, Unamuno é o intelectual central da Espanha entre 1900/1930. Com cultura enciclopédica, ele tinha como filosofia a dúvida. Escreveu poesia, teatro, romances e livros sobre filosofia. Seu ponto de partida é: O que é o homem? E nessa busca da realidade básica, ele mira o homem comum, o homem que é carne, instinto, desejo, vontade de ser, sonho. Aponta como erro da filosofia o fato de que ela parte do estudo da própria filosofia e não mais da vida. Miríades de elocubrações racionais que dispensam a experiência vivida, que negam o sentimento e a intuição. Unamuno aponta que existem duas vidas, aquela que é experimentada como ela de fato é, e a vida que tenta ser racional, que se afasta do coração e do instinto e pensa que a razão engloba tudo o que há. 
  Ora, quem me conhece sabe que essa é a minha maior fé. A razão conhece aquilo que lhe compete, criações racionais, ciência reducionista, tudo o que cabe dentro de seu raio de visão. Mas, eu, como Unamuno ( e tantos outros ), sabemos que a maior parte da realidade escapa a razão. Racionalistas fecham os olhos e querem não perceber esse limite da razão. Unamuno quer ver o que a razão deixa escapar.
  Somos trágicos porque vivemos o embate entre razão e coração. Não há a menor possibilidade de paz e nisso Unamuno é um pessimista radical. Crer na razão é desprezar o coração, crer no coração é desprezar a razão. Somos os dois. As vezes coração, muitas vezes razão. Em posts futuros falarei mais sobre este admirável pensador. Quero destacar aqui que ele tem logo no inicio da obra duas sacadas excelentes.
  Primeiro. Todo homem vive com a certeza de eternidade. Mesmo os ateus. Não fosse assim viver seria impossível. Não há como construir algo ( familia, amor, trabalho, arte ) sem a ideia de tempo que se estende. Quando alguém diz que a morte é o fim de tudo, em seu íntimo ele sente que essa morte está sempre distante. Assinar uma obra de arte, criar uma familia, tentar preservar a memória são formas sem religião de se imaginar um modo de se permanecer eterno. 
  Porque o assunto central da vida é a preservação da vida. É inimaginável ao homem algo como o nada, o absoluto vazio. E mesmo a ideia cristã de inferno nos é preferível ao simplesmente deixar de ser. Melhor viver queimando em dor que simplesmente deixar de existir. Passar pela vida sem deixar rastro, sem jamais ser relembrado, sem pensar em algo que justifique essa passagem, isso é o verdadeiro inferno. Todas as criações da razão, ideologias, ciência, arte, arquitetura, poder, diários, memórias, são tentativas de esquecer o vazio e o nada. 
  Pois dentro de nós há o imperial desejo de acreditar no sentido das coisas. A vida tem de ter um sentido e tem de se justificar na eternidade, na história. Sem isso ela não existe. Não será mais vida, será um tipo de doença febril sem porque. 
  Crer em Deus ou na alma é crer na vida então. Pois ao crer na eternidade nasce no homem a responsabilidade perante o eterno. Cada ato passa a ter o peso da memória sem fim. Observe, Unamuno não se preocupa se Deus e a alma existem ou não, o coração sempre dirá que sim, a razão sempre afirmará que não, o que importa é que ao pensar na eternidade, ao crer na consequencia de cada ato, o homem se torna dono e servo de uma ética e de uma moral. Sem essa fé, a humanidade perde seu prumo. Nada justificará o bem e tudo será relativo.
   Outro fato interessante nessas primeiras páginas é a constatação de que todo católico pensa apenas em si. A iluminação se dá na solidão da cela ou do horto. A salvação se dá a sós. Não chega a ser um egoísmo, pois não se dá a felicidade em detrimento do outro, mas é um egotismo, a salvação de cada um para o bem de todos.
  No protestantismo a salvação só é possível em grupo. A congregação, unida, se salva ou se perde. Um depende do outro. Pois bem, é esse tipo de visão histórica que falta aos ateus. Países protestantes têm sociedades ordenadas, limpas e de certo modo limitadas em impessoalidade. Católicos são mais anárquicos, desordeiros, individualistas, mas produzem personalidades mais brilhantes, geniais, sem regras. 
  Shakespeare só foi possível numa Inglaterra ainda papista. Como em seus países, Dante, Cervantes, Leonardo e Michelangelo. Gênios contidos, como Rembrandt, Ibsen ou Dickens são tipicamente protestantes. Não vamos esquecer que a Rússia assombrou o século XIX com Dostoievski e Tolstoi por ser ortodoxa. Hiper-católica de certo modo. 
  Unamuno pensa assim. Ele constata e não responde. Deus existe? Quem sabe? A vida é eterna? Aposte. Voce tem duas apostas: sim ou não. Qual a melhor aposta?

UM ANARQUISTA E OUTROS CONTOS- JOSEPH CONRAD

   Se há algo que une a obra de Conrad é sua opção por retratar gente em limites. Momentos em que alma e corpo são postos a prova. Este livro, quatro contos deste que é um dos cinco gigantes do século, demonstra bem essa sua característica. 
   No primeiro acompanhamos um grupo terrorista em sua tentativa de encontrar um traidor. Impossível parar de ler, ele é todo feito num crescendo de medo e de suspeitas. Hitchcock leu com certeza, Conrad é muito popular em sua pátria de adoção. No segundo conto, esse uma obra-prima de melancolia, conhecemos um nobre alemão vivendo em Nápoles. Feliz, educado, bonachão, eis que tudo isso é destruído quando ele se vê vitima de um assalto. Seu mundo, ilusório, desaparece e esse velho sensível murcha. Conrad tece em poucas paginas o fim de um universo e a irrupção de um outro. Perfeito em execução, sublime em sentimento.
   O terceiro trata de um mecânico perdido numa ilha da América do Sul onde ele se torna um tipo de pária. Conrad consegue, em 1910, ser ecológico, pró-animais, anti-capitalista e devastadoramente cruel. No último conto se narra a história de um navio imenso que tem o poder de matar em todas as suas viagens. Azar, sina, maldição, tudo se conjuga neste nefasto conto.
  Joseph Conrad é dos raros escritores que consegue ser popular e erudito, fácil de ler e muito complexo, amado por críticos, modelo de escritores e mesmo assim ele nada tem de exotérico ou esnobe. Ex-marinheiro, pessimista, duro, é um autor que cresce com a idade de quem o lê. Adoro.
  Na introdução deste volume, da Hedra, se fala uma anedota que preciso compartilhar: 
  O fim do século XIX e o começo do XX assistiu o apogeu do romance e nesse auge vale destacar Joseph Conrad e Henry James. Conrad como o objetivo, o observador que pouco narra e que tudo diz. E James como o autor que mata a ação e desenvolve a psicologia interna. Então o autor diz como seria uma carta escrita por James reportando uma gripe. Ele descreveria a mesa onde escreve, o quarto, a história de quem o decorou, o que revela a escolha de um vaso com flores, os arabescos do tapete, a voz de quem passa na rua...e só então falaria da gripe. Conrad diria de cara dos sintomas, da dor e então contaria a história de um homem que morreu de gripe. 
  Amo os dois estilos. Eles definiram tudo que se escreveu desde então. Começar a conhecer Conrad por este livro é uma boa ideia. Voce vai se apaixonar.

The Doors (The Crystal Ship)



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6) The Doors - Moonlight drive (R-Evolution)



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STRANGE DAYS- THE DOORS, NUM TEMPO BUNDA UM DISCO SOBRE A MORTE.

   Desde 1987 ! Desde 1987 eu não o escutava. Sabe como é, Jim Morrison foi moda demais nos anos 80 e acabou pagando um preço por isso. The Doors se tornou um tipo de banda clássica para quem não conhece bandas clássicas. Mas após tanto tempo já consigo ouvir a banda com isenção.
   Primeira coisa: Eles são muito bons músicos e seus discos são muito bem gravados. Eram a banda de ponta da Elektra e a gravadora não economizava com eles. Robby Krieger tinha um estilo limpo de guitarra, com acentos de flamenco. John Densmore conduz a bateria num estilo jazzy, discreto e com uso cristalino dos pratos que parecem brilhar. Não falarei sobre Ray Manzareck, irei direto ao símbolo dark Morrison.
   Jim Morrison pirou nas praias de Venice com seus livros de Rimbaud. Ele quis ser Rimbaud e foi a seu modo a versão pop do maldito francês. Jim não ria. A cara sofrida parece às vezes fake. Mas não era. Ele realmente sentia tormento. E obsessão pela morte.
   Impressionante como suas letras insistem nesse tema. Os personagens estão sempre a beira da morte. Quando não, eles estão se matando ou sendo assassinos seriais. A banda, esperta, sabe dar clima de horror a suas poesias. Mais que horror, perigo. Há algo de muito perigoso em sua voz. É preciso falar da voz. Barítono único em seu tempo, tempo de tenores suaves, a clareza da pronúncia denuncia cultura. Jim logo virou ídolo da UCLA. E sex-symbol.
   Devia ser um chato esse Jim. Não conseguia relaxar e gozar. Queria ser artista de verdade e não pop. Como? Ele morreu sem perceber que sua praia nunca seria a de Dylan. Sua genialidade foi dionisíaca. Ele antecipou Iggy e Ian Curtis. Deu fatalismo ao hedonismo de Jagger.
  Este disco é uma obra-prima. Se duvida o escute agora. É um tipo de pesadelo drunk e sexy sobre a morte. E ao mesmo tempo uma trip tonta sobre a liberdade de se destruir o que se ama. Oscar Wilde então. Moonlight Drive chega a ser uma ofensa, é boa demais, faz voce dançar a beira do abismo. E When the Music is Over torna atraente o momento da agonia.
  É um muito grande disco. E  agora, em pleno século bunda, tenho a certeza de que é para SEMPRE.

AMOR ROMÂNTICO FEITO VERDADE

   Como ela pode ter adivinhado? Um mistério se faz aqui, ela não sabe, não tem como saber, mas ela sabe. Como? Talvez ela seja um sonho e nada do que aqui agora relato tenha de fato acontecido. Ou não?
   Meu desejo maior sempre esteve vivo e forte no mundo dos menestréis. Nos cantores-poetas, naqueles que compuseram as canções de amigo. Palavras ditas as musas, senhoras que viviam sempre no limite do desejo e da satisfação. Mas eu queria viver nesse mundo sabendo ser impossível o encontrar em meu tempo de gozo imediato. Somente um tipo de jogo masoquista poderia criar um simulacro pobre daquilo que em 1.200 era comum. 
  Então ela veio. Inesperadamente. Me dando o nome de amigo e mostrando seu corpo aos poucos. Excitando meu desejo e negando sua satisfação. Adiando indefinidamente o prêmio. Ela faz testes. E eu os venço. Sem alcançar, ainda, o ganho. Possuo a certeza da vitória, mas vivo na incerteza de quando ela virá. 
  Semanas que viram meses. Nos vendo sempre, flertando sempre, desejando sempre, e nunca tendo. Será esse o amor sem fim?
  Meu corpo arde e eu rolo de desejo. Quero ficar só para poder visualizar seus seios. Quero guardar comigo seu cheiro. Ela é minha, mas não é. Como se um outro ser fosse explodir dentro de mim, vivo fértil, dando vida aos lugares onde vou. Sinto potência em cada momento que respiro. Desde quando me sentia tão vivo? 
   E me consumo na expectativa. Quando a terei? Quando terminará essa espera? Deus, ajudai-me! Meus amigos dizem que estou feliz. Estarei louco? 
  E ela insiste em me chamar de amigo. Mesmo dando a mim coisas que a amigo não se dão. Fidelidade, compromisso e atenção constante. Planejamos um futuro. Sabemos que estaremos juntos. Mas não nos consumimos. E meu corpo exige sua posse. Que não vem.
  Virgindade que não temos mas que aqui fazemos. Porque?
  Terão os deuses me concedido essa graça que tanto pedi? Viver na carne o que meus ídolos viveram? E assim descobrir sua beleza? 
  Porque eu sou feliz e temo perder esta beleza. Temo perder essa tensão que nos amarra unidos em vida que se renova na esperança da graça. E ela sabe disso tudo. Como eu não sei. talvez toda mulher saiba mas poucas a executem. Ela faz de mim o cavaleiro. Até quando?
  Vivo em desejo por ela. E não me satisfaço nem mesmo a sós. O desejo dura horas, dias, meses. Insatisfeito ele me faz viver inteiro, desperto, contido, decidido, comprometido, para sempre. 
  Cheio desse desejo sinto-me invulnerável. Eis o segredo da castidade! Ela nos deixa na sensação da invulnerabilidade. Intocável e invencível. Cocaína natural. 
  Serei para sempre? Eis o amor de Eros. Cada momento se torna erótico pois cada segundo está tingido pela cor do desejo vivo. Quando irei tê-la? Quando nascerá esse dia de graça? 
  Amada. Deixe-me olhar mais uma vez seus seios que me deixam louco. Deixe-me dormir mais uma vez ao seu lado. Liberte-me prendendo-me em voce.
  Eu nunca ousei imaginar que assim fosse. Ela me disse que seus olhos brilham ao me ouvir e que sua boca vomita arco-iris. Chegará o dia em que iremos ver um unicórnio. 
  Será essa a loucura que temi por toda minha vida? 
  Vivo aquilo que nasci para ter.
  Amor, Eros, Vida, Crescei.

O PIOR DOS ANOS 70 É O MELHOR DO SÉCULO XXI ?

   Fico babando ovo dos anos 70 ( que foi a última década origonal, como atesta o livro recém lançado do Forastieri ), mas me esqueço que havia algo de enervante na época: a intolerância. Talvez as coisas tenham sido tão fascinantes exatamente por causa desse mal. Cada grupo ia ao limite em sua linguagem, sem desvios de caminho ( as exceções voce conhece ). Mas caramba, como isso me irritava!
   Se voce gostava de Led Zeppelin era inadmissível que voce ouvisse Elton John ou Rod Stewart, e pior ainda, já que voce gostava do Led voce TINHA de gostar de Foghat ou dos Allman Brothers. Brancos não ouviam música de negro e negro não podia tocar música de branco. Um saco!
   Quando um artista quebrava essa lei era uma "decepção", o cara era crucifixado. Saía das fileiras sagradas e puras do rock e passava a fazer companhia às prostitutas do pop. Era assim com David Bowie. Os roqueiros ( ô raça! ), jamais o perdoaram por Young Americans em 1975.  Os Stones se enrolaram de vez em 1973 com a baladona Angie e Rod, bem, Rod dançou feio desde 1974 com suas canções à Elton John. A coisa era tão idiota que quando Jeff Beck gravou Stevie Wonder em 1973 perdeu todo seu público. Virou um tipo de guitarrista pária, um vendido ao soul.
   Eu odiava tudo isso. Meus amigos não me entendiam. Como voce, Paulo, um cara que ama o Led, Jimi, Clapton, pode ouvir Bee Gees!!!! Como voce pode não gostar de Yes???? Eles são muito melhores que esses medíocres do Roxy Music!!!!
   O Punk radicalizou mais ainda. Para eles TUDO gravado por alguém com mais de 23 anos não tinha valor. Talvez apenas com as exceções de Iggy Pop e de Lou Reed. Talvez... Jogaram no lixo os discos de Neil Young, MC5 e Van Morrison, e depois passaram os anos 80 comprando todos de novo. 
  A década de 80 recuperou os velhos charmosos e os anos 90 os hippies raivosos. Os anos 80, com Prince, Red Hot e Beastie Boys aboliu a barrreira da cor da pele, e os anos 90 desfez o preconceito contra os cafonas dos anos 70. Kiss, Thin Lizzy e Black Sabbath começaram a ser levados a sério. Daí pra frente só faltava reabilitarem a disco music. 
  Eis onde quero chegar. Sempre odiei Balck Sabbath e agora, em 2014, ouço sua discografia com prazer. Sabbath Bloody Sabbath é genial e Sabotage é uma obra-prima. Os riffs são muito bons e o baterista toca com ritmo e vontade. Legal ! Mas....porque essa mudança? Penso que é porque apesar de achar que não, eu também era preconceituoso. Eu me pautava pela crítica ( Zeca Neves, Ana Maria Bahiana, Big Boy, Nelson Motta ) e eles NÃO gostavam do Sabbath. Como detestavam também Genesis, Rush e ELP. Em 1977, sendo eclético me fiz preconceituoso contra o não-sofisticado, o não eclético. Pode?
  Recentemente vi na TV a entrega do rock`nroll hall of fame ao Rush. Quem entregou foi Dave Grohl. Ele pulava excitado por poder homenagear seus heróis. Sim, heróis. E vi que os canadenses são encantadoramente humildes. E very funny. O Foo Fighters tocou com eles nessa noite e todo o preconceito de 1977 caiu por terra. 
  Ainda não gosto do Rush. É chato. Mas fico lembrando de Johnny Rotten, que vomitava contra os WHO, ouvindo hoje os FACES. É justo. É certo.
  Posso enfim ouvir Alice Cooper como ele merece: com amor.

DER SANDMANN-E.T.A.HOFFMANN, O NARIZ-NIKOLAI GÓGOL, O SONHO-IVAN TURGUENIEV

   Desde a infância um homem surge para um rapaz. Aterrorizante na infância, ele tem a certeza de que se trata do famoso Sandmann. Será? Talvez seja alguém pior ainda. Hoffmann desenvolve essa alucinação com febre. Ele, romântico por completo, acredita em alucinações ( porque não? ), a vida é inteira, tudo nela é verdade. Sandmann é real.
  O Nariz é um dos melhores contos da história do mundo. Gógol é tão grande quanto Tolstoi ou Tchekov. Talvez hoje seja menos famoso que os outros dois, mas isso é contingência, seu lugar é para sempre. Triste ter morrido tão cedo, de tuberculose. Seu romance Almas Mortas é surpreendentemente engraçado e muito atual, e este O Nariz é hilário e ao mesmo tempo terrível. Gógol não poupa a Rússia. Seus soldados, burgueses, artistas e nobres são esculhambados. Nesta história um homem perde seu nariz. Tenta o reencontrar. Não estrague o conto tentando ver um sentido nisso. Ele não tem sentido. É delirio de imaginação e um prazer estupendo em poder ler. Cada frase de Gógol é um orgasmo.
  Por fim falo de Turgueniev, de quem li Pais e Filhos, o lindo primeiro romance a tratar em termos modernos do conflito de gerações. Aqui ele fala de um filho mimado que descobre em sonho ser filho bastardo. Essa revelação lhe vem esfarrapada, será fato ou invenção da febre e do sono? Adentramos esse mundo onirico de forma violenta.
  Cabe dizer que nos três contos a linguagem nos joga abruptamente para o centro de um mundo que pode ser feio e grotesco ( em Hoffmann ), exagerado e sem sentido ( em Gógol ) ou violento e sombrio ( em Turgueniev ). Sempre pessimista, principalmente quando nos faz rir e quando nos faz sonhar.
  Fazem parte da coletânea de contos fantásticos selecionados por Italo Calvino, ele mesmo um belo autor fantástico. Comecem por esses três. Vão adorar.

Vladimir Nabokov: Life and Lolita - BBC Documentary



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A PESSOA EM QUESTÃO- VLADIMIR NABOKOV, BORBOLETAS, XADREZ E OLHOS ABERTOS

   Na Europa do começo do século XX era a aristocracia russa a mais refinada e privilegiada das castas. Nabokov nasceu em casa de campo que tinha 50 criados. A casa da cidade tinha apenas 35. Fascínio? Muito. É maravilhoso ler sobre as raízes das duas familias que formaram os Nabokov. A raiz alemã da Mãe e o pai, totalmente russo. Pai que foi politico e lutou a favor da Rússia democrática em 1905, 1915, mas que foi derrotado e varrido da história pela violência bolchevique. Nabokov escreve aqui ( o livro é dos anos 50 ), aquilo que hoje é ponto comum: a revolução russa foi apenas a troca de uma casta por outra. Saíram os ricos e entraram os burocratas rancorosos. Com uma diferença, a Rússia dos privilegiados produziu Tolstoi, Dostoievski e Gogol, a Rússia policial produziu alguns bons artistas, que foram logo caçados. Ele tira de Lenine também sua fama de "Puro", em sua época a violência foi imensa e desnecessária. Mas atenção! Não pense que Nabokov chora o dinheiro perdido. O que ele lamenta é não poder entrar em seu próprio país. Ele sente saudade, muita, de suas árvores, das paisagens, de estar no cenário que assistiu a parte mais bela de sua vida, a infância.
   E é na infância que ele mergulha. Nabokov aos 50 anos penetra e disseca a memória, tenta entender como ela se dá e nos presenteia com um livro belíssimo. Memoralista a altura de Proust, vivenciamos sua vida, os odores e as sensações da criança. Pelas fotos vemos que era uma bela familia e é prazeroso estar ao lado deles. Sua grande paixão são as borboletas, e ele logo caça os bichos e tem seu nome entre os conhecedores. A vida escolar, com tutores excêntricos, viagens ao campo no verão, o frio da São Petersburgo invernal. 
   Depois, a descoberta das meninas, meninas que ele conquista com facilidade. Uma adolescência ativa, no mato, nas ruas, em namoros febris. E a revolução que vem lenta, se anuncia. Fogem para a Criméia, para a Alemanha, Paris e Londres afinal. Seus dias em Cambridge, passados em tédio e decepção. É incrivel, eles necessitam trabalhar e trabalham. De 50 criados passam a ter uma empregada, e nunca se lamentam. Joga xadrez como mestre e escreve. Este livro é sobre memória, tempo que vai dos 2 aos 20 anos. Nada se diz sobre seus romances, apenas as tentativas fracas de se fazer poesia. É livro sobre os irmãos, os pais e as pessoas. Ele olha com olhos abertos, vê e pensa, sabe descrever e sabe analisar.
   Não tem religião, não fala em Deus, mas sabe que tudo foge a nossa compreensão. Descrê da civilização, mas nunca se mostra pessimista. Porque aprecia a beleza, seja a borboleta ou seja a mulher. Depois viria Lolita, viria Ada, viria Knight. Talvez o escritor depois do tempo de Proust e James que escreva melhor, mais refinado, mais profundo e sinceramente belo. Nabokov é grande e este livro atinge sua altura. Para reler. 
   Brilho entre folhas, sol nas asas de borboleta, vitória matemática em xadrez, este livro, este brilhante e inebriante e alubriante livro exerce fascinio de voz musical ( e Nabokov odeia música ). Ah doce vicio que é a leitura...

HITCHCOCK/ POWELL/ CAROL REED/ JACK CARDIFF/

   GESTAPO de Carol Reed com Margaret Lockwood, Rex Harrison e Paul Henreid
Ando revendo filmes ingleses. Carol Reed forma, ao lado de Powell, Lean e Hitchcock, o quarteto soberbo do cinema clássico da ilha. Cada um com seu estilo definido, eles são mestres consumados e sábios em sua forma de narrar e de seduzir. Reed é o mais realista. Aqui ele narra um jogo de gato e rato entre dois inimigos, um nazista e um inglês, ambos em busca de um cientista. Rex já tem aqui desenvolvida sua forma de atuação, leve, sorridente e elegante. O filme é pura diversão e demonstra magnificamente o modo como os ingleses se percebiam a si-mesmos. Nota 7.
   E UM DE NOSSOS AVIÕES NÃO REGRESSOU de Michael Powell
Revejo os filmes menos famosos de Powell. O modo como ele e Pressburger viam a guerra tem muito a nos ensinar. Ele nunca deixa de ser patriota, afinal, este filme foi feito durante a guerra, mas o modo como ele vê os alemães é não só humano como também corajoso. Eles são gente também, diferentes dos ingleses, lutam pelo lado errado, mas não são monstros, têm alma. Aqui é narrada a missão de um grupo de aviadores que ao voltar de um bombardeio em Stuttgart são alvejados e caem na Holanda. A população holandesa os ajudará a voltar a sua terra. É um belo filme e tem retrato carinhoso do homem comum, não dos heróis. Nota 7.
   PARALELO 49 de Michael Powell com Laurence Olivier, Leslie Howard e Eric Portman
Um grupo de marujos alemães é atacado nas costas do Canadá. Seu submarino afunda e eles devem em terra conseguir voltar a Alemanha. Este é o filme que deu fama a Powell. Sucesso nos EUA, é uma linda aventura filmada no Canadá. Os alemães são individualizados, sim, há um vilão, mas também há um alemão bom. Ver este filme durante a guerra deve ter sido muito estimulante. Nota 7.
   A BATALHA DO RIO DA PRATA de Michael Powell com Peter Finch e Anthony Quayle
Aqui já estamos na fase dificil da carreira de Powell. Feito nos anos 50, o filme fala de um navio alemão famoso por afundar navios mercantes aliados nas águas do Atlântico Sul. O que se narra é sua caçada e sua agonia. Powell mostra o capitão do navio alemão como um homem honrado, quase um herói trágico. O estilo de Powell está todo aqui, ele exibe com calma e cuidado a civilidade dos homens, a camaradagem e o respeito entre os iguais. O filme emociona, mas em seu inicio pode irritar, não estamos acostumados a tanta educação! Revisto, este filme cresceu muito em meu conceito e hoje é dos meus filmes de Powell mais queridos. Estranha a sina desse diretor, a de ser querido só em revisões...todos os seus filmes me decepcionaram na primeira vista ( inclusive Red Shoes ) e se tornaram gigantes na segunda olhada. Nota 9.
   FESTIM DIABÓLICO de Alfred Hitchcock com James Stewart, John Dall e Farley Granger
Que delicia!!! É o famoso filme de Hitch sem cortes. Eu o adoro, mas Hitch não gostava dele. Um casal gay mata um amigo só pelo prazer de cometer uma obra de arte. Convidam os pais da vitima para jantar, e o corpo está dentro de um baú que é usado como mesa de jantar. Dá pra ser mais macabro? O pai come carne sobre o corpo do filho. O humor de Hitch raras vezes foi tão afiado. James Stewart entra em cena como o professor dos assassinos. E nós nos alegramos ao rever esses ator-amigo. O filme é absolutamente perfeito. Nota DEZ.
   CORRESPONDENTE ESTRANGEIRO de Alfred Hitchcock com Joel McCrea, Larraine Day e George Sanders
O excesso de ação atrapalha a narrativa desta aventura de Hitch. Joel é um repórter americano que vai a Holanda cobrir a guerra. Se envolve em jogo de espionagem. Sanders é excelente, mas Joel e Day são muito peso leve, estão no filme errado. Nota 6.
   OS PÁSSAROS de Alfred Hitchcock com Rod Taylor, Tippi Hedren e Jessica Tandy
Uma mulher destrói a harmonia masculina de uma comunidade. Sim, esse é o sentido do filme. Desde a cena na loja de pássaros, até o final inesquecível, todo lugar em que ela pisa surge uma ameaça. Pássaros se juntam e passam a atacar. É um dos filmes aparentemente mais simples de Hitch e o mais absurdo ( em superficie ). Mas seus medos estão todos aqui.  O maior de todos seu pavor das mulheres. Falar de suas cenas é chover no molhado, o filme é muito conhecido. As melhores são aquela que mostra os pássaro se reunindo atrás de Tippi, e o final, eles andando em meio as pássaros que se aquietam, talvez porque ela foi vencida... Vi esta obra-prima pela primeira vez em 1973, na velha TV Tupi. Eu era criança e confesso que tremi todo o tempo. Era uma época bacana pra se assistir filmes de suspense, basta dizer que o silêncio na rua ainda existia e a iluminação lá fora era precária. Nota DEZ.
   FILHOS E AMANTES de Jack Cardiff com Dean Stockwell, Wendy Hiller e Trevor Howard
O mundo de D.H.Lawrence levado ao cinema. Numa comunidade pobre da Inglaterra, vemos uma familia de mineiros. Uma familia infeliz, onde o pai violento tem rancor pelo filho que o renega e a mãe, hiper protetora, mima esse filho que quer ser pintor. A vida desse filho é destruída pelo meio em que vive. Parece bom, mas não é. O primeiro erro é Stockwell. O outro é a falta de criatividade de Cardiff. Ele foi o grande diretor de fotografia de Red Shoes, mas como diretor nunca funcionou.  O filme é chato. Nota 3.

LISTAS DA CRITERION COLECTION

   Criterion Colection top 10`s.
   Encontro essa lista na net, e como sou fã de listas...
   Tem mais de 50 caras dando listas. A maioria nunca ouvi falar. Críticos novatos dos EUA. A lista é legal. A pior é de Diablo Cody. Aff... Destaco a lista de Wes Anderson, boa pacas! Lá vai:
1...MADAME DE...de Max Ophuls.
2...AU HASARD DE BALTHAZAR de Robert Bresson
3...PIGS de Imamura
4...A MULHER INSETO de Imamura
5...LOUIS XIV de Rosselini
6...O ESPIÃO QUE SAIU DO FRIO de Martin Ritt
7....EDDIE COYLE de Peter Yates
8....CLASSES TOUS RISQUES de Maurice Pialat
9....A INFÂNCIA NUA de Maurice Pialat
10..MISHIMA de Paul Schrader
          Digo que os dois primeiros poderiam estar em meus top 10. Dos outros, não conheço os filmes de Pialat. O filme de Ritt é espetacular.

Não dou muita bola para Christopher Nolan, mas sua lista é muito boa.
1....THE HIT de Stephen Frears
2....12 ANGRY MEN de Sidney Lumet
3....THE THIN RED LINE de Malick
4....DR MABUSE de Fritz Lang
5....BAD TIMING de Nicholas Roeg
6....MERRY XMAS de Nagisa Oshima
7....FOR ALL de Al Reinart
8....KOYANAQSTIKY de Reggio
9....MR. ARKADIN de Orson Welles
10...GREED de Stroheim
          Acho que ele não conhece cinema da Europa.

Guillermo del Toro tem uma lista de conhecedor. Ele ama Kurosawa e Bergman e coloca entre os dez, 3 filmes de Akira e dois do gênio suéco.  Seu favorito é TRONO MANCHADO DE SANGUE.

Adam Yauch bota cinco filmes de Kurosawa!!!! Um fã maior que eu !

E há Martin Scorsese:
1....PAISÁ de Rosselini
2....THE RED SHOES de Michael Powell
3....THE RIVER de Jean Renoir
4....UGETSU de Mizoguchi
5....CINZAS E DIAMANTES de Wajda
6....A AVENTURA de Antonioni
7....SALVATORE GIULIANO de Francesco Rosi
8....8 E 1/2 de Fellini
9....A VERDADE de Godard
10..O LEOPARDO de Luchino Visconti
           Lista de mestre. Falar o que?

Olhando toda a lista noto que o DVD fez com que certos nomes fossem reavaliados.
Dos diretores atuais, Wes Anderson e David Lynch são muito citados. E do passado há uma redescoberta de Schlesinger, Mizoguchi e Jules Dassin. E, que surpresa!, o documentário GIMME SHELTER é muito citado como grande filme de rock da história!
Legal né?

TUPELO HONEY- VAN MORRISON, UMA VOLTA À VIDA

   Penso em quantas pessoas que vivem por aí foram concebidas ao som de Van Morrison. O cantor irlandês ( de Belfast ) canta a trilha do amor, sempre, e este é seu disco mais feliz. Ouvir Tupelo Honey é escutar a mudança de vida, o encontro com um novo amor, a volta da crença que em realidade nunca se fora. Morrison está feliz e é um prazer ouvir isso.
  O disco abre com um de seus hits, Wild Night vendeu bem em 1972 e em 1994 até mesmo John Mellencamp o regravou. Som veloz, dançável, saltitante. E é por aí que ele corre. Cada faixa conta um aspecto desse reencontro. Morrison encontra uma mulher, com ela vem a vida nova e ele se sente abençoado. Para contar isso ele se cerca de um time afiado de vinte músicos, dentre eles o venerável Connie Kay, que dá a obra um leve sabor jazzy.
  Mas não pense que ele é jazz, o disco é filho do encontro de Morrison com The Band. Tupelo Honey soa como The Band em versão irlandesa, é folk com soul, mas um pouco mais melódico e bastante menos rock`n`roll. Onde o grupo do Canadá celebra a amizade, o irlandês festeja um casal. Robbie Robertson e seus amigos parecem sempre estar numa estrada, Morrison vive num quarto. Mesmo que aqui ele esteja acompanhado e de janelas abertas para o sol.
  É um disco feito para se ouvir à lareira. Com calma, com sobriedade e com amor.
  O que será concebido então depende de voces dois. Um filho, um poema ou uma bela recordação. Aproveitem.

OS CONTOS DE CANTERBURY- GEOFFREY CHAUCER

   Um grupo de homens e mulheres fogem da peste. No caminho, para se distrair, fazem uma aposta: cada um deles irá contar um conto. O que for eleito melhor ganhará um jantar. E lá se vão eles.
  Se voce pensou no Decameron de Boccaccio pensou errado. Apesar de Chaucer conhecer a obra do italiano, seu livro é muito diferente. Escrito em verso, Chaucer, influência enorme sobre Shakespeare, faz algo que o bardo sabia construir como poucos: escreve com a voz do personagem. Desse modo um monge narra seu conto ao estilo de um monge, um cavaleiro conta como um cavaleiro e por aí vai. 
  O elenco de personagens abrange toda a fauna medieval. E ao lermos a obra nos sentimos lá, naquela estrada rumo a Canterbury. Mais ainda, vivemos em plena idade média. E o que vemos? Que a época é bastante diversa do que nos foi dito. É um mundo de malandros. E de idealistas também. Sexo e religião se misturam. Deus é Ser inatacável, Sua existência não pode ser discutida, mas, por isso mesmo, o diabo também existe e portanto o mal é não só cotidiano como aceito. Ele, o mal, faz parte. 
  As mulheres devem ser virgens, mas os homens tentam apaixonadamente as corromper. Elas devem ser virgens, mas raramente são. Em alguns contos a linguagem é "suja". E deliciosa. Fala-se muito de pau, buceta, cu, bagos. E tudo feito em malandragem ( o que me faz pensar na realidade de meu país hoje ). Usa-se de toda artimanha possível para se ir à cama de uma mulher, seja virgem, seja puta. 
  O dinheiro existe, mas mal se encontra. O que se faz é o roubo. Monges e cônegos são mentirosos, ambiciosos, glutões e tarados. Comerciantes roubam e camponeses são idiotas. E ao mesmo tempo existem contos de fé e de pureza. Fala-se da Virgem com plena fé e em total compreensão. Chesterton desvenda bem isso: no catolicismo tudo é extremo. É uma fé que pede pelo abismo, pelo tudo ou nada. A dor ao limite e a alegria desenfreada. O grande pecado e o grande arrependimento. Nada pode ser sóbrio, a sobriedade é falsa. Desse modo, o sexo e a castidade existem juntas e são hiper-valorizadas. Chaucer exibe esse universo sem retoques. As coisas são o que São. Sem máscaras. 
  Na introdução se conta que aqueles são os ingleses originais, os saxões, o povo britânico antes de 1750, da revolução industrial que domesticou a raça. Eles são aquilo que hoje entendemos como "Povo de Asterix". Nada em comum com Thackeray ou com Jane Austen. São exaltados, apaixonados, brigões e muito diretos. Sua transformação demonstra o poder da educação. Se mudaram para melhor ou pior, fica a discussão. 
  Devo dizer que esta obra foi um dos maiores prazeres em leitura que tive em anos. Coloco-o entre meus vinte mais queridos livros. Suas 600 páginas, em verso, voaram diante de meus olhos. Seu realismo sujo e fétido e sua vitalidade objetiva e prática me encantaram. É um retrato de um tempo, mas é acima de tudo uma lembrança daquilo que somos, seremos, seres que erram, seres sujos e brutos, tolos e espertos, burlescos. Gente. 
  Chaucer foi um dos grandes humanistas de seu tempo ( por volta da metade do século XIV ), erudito, sabia a lingua de todas as classes. Tinha o principal dom do escritor: sabia escutar. Os tipos que ele criou nos seduzem. São maldosos adoráveis. E fiéis sinceros. Não por acaso sua obra vive a mais de 650 anos. 
  Fundador da literatura moderna inglesa, Chaucer é rei. Seu livro é inesquecível.

JULIE CHRISTIE NÃO NASCEU NA INGLATERRA ( MAS SIM )

   Sol de maio em Londres e times jogam sobre a grama verde escura. Recordo então de um Escócia e Inglaterra em Wembley. Era 1977 e eu amava Julie Christie. É isso mesmo. Há uma fase em nossa vida, cheia de frescor e de fé nos sentimentos, em que não os dissecamos, simplesmente os aceitamos, em que sentir amor por uma ideia de mulher, por uma imagem, se faz ato de completa dedicação. Eu amava Julie porque imaginava quem ela era. Criava a saga de sua vida e sentia que ela era feita pra mim. Idolatria. Beleza.
  Hoje vejo que uma alma abençoada fez a mistura perfeita. Colocou no Tube imagens de Julie ao som do Roxy Music. Os dois nasceram um para o outro, Gim e vermute. Julie sendo Gim, ácida e forte, linda, e o Roxy é vermute, enganosamente doce, colorido e inebriante. 
  Sol de maio em 1977. Wimbledon com Connors e Borg. A rainha era a mesma. Penso que a Inglaterra seja o país que deu certo. Desde Charles I não sabe o que seja ditadura. Conseguiu fazer do mais indisciplinado dos povos um modelo de educação. Discrição. A França cometeu o erro de criar a coisa chamada intelectual ativo, aquela falsidade que nos deu Sartre e Lacan, a Alemanha sempre sofreu de um excesso de idealismo fanático, e a Itália é um país que não se acha. A Inglaterra é uma nação que chegou lá. E um passeio pelo Hyde Park irá te mostrar isso. Conseguiram unir o conservadorismo da rainha e do costume com o deslumbre pelo novo e pelo hype. 
  Juntaram Roxy com Julie. 
  E após as brumas de invernos que nunca terminam, sabem fazer piqueniques ao sol de maio.

Julie Christie Tribute



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PÔR DO SOL DE WATERLOO NO CAXINGUI EM 2014

   Ora velho amigo, que música pode ser mais bonita que Waterloo Sunset ? I AM IN PARADISE...
 Vejo o mundo pela minha janela enquanto olho o pôr do sol em Waterloo... 
 Sabe, em um dos comentários no Tube um cara comenta que não amar os Kinks é detestar Londres. Matou a coisa cara. Nada é mais londrino que eles. E Waterloo é uma de suas jóias.
 A canção é um tipo de hino extra-oficial de Londres, é como Aquarela do Brasil pra gente. E não a toa abriu o final dos jogos de Londres em 2012. 
 Um outro comenta: O que se passava na cabeça de Ray quando compôs algo tão simples e tão tocante?
 Ora meu velho amigo, se passava aquilo que se passa em quem a escuta, Gratidão. 
 Waterloo Sunset ficou. Como ficou o LP Something Else by The Kinks. E ficou The Village Green. E também ficou Arthur. E mais alguns muitos.
 Em setembro haverá mais um show de talentos na escola. Um menino e uma menina de 13 anos me chamaram para ajudar eles em sua banda. Querem que eu faça backing vocals e toque pandeiro. Daí me disseram o que vão tocar: Vamos tocar Waterloo Sunset...voce conhece tio? 
 Juro que eu quase cai. 
 Sem mais my old champ, cha la la...

Ray Davies(Kinks) Waterloo Sunset Glastonbury 2010



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