BRASIL, NÃO DESISTE!!!! ( CARTA PARA UM AUSTRALIANO )

   A coisa tá chata cara, e não tem jeito de melhorar. 
 Voce aí na Austrália não sei se sabe, mas agora somos todos macacos. E devemos ter orgulho disso. Acredita?
 Chesterton nos alertava que um dos problemas da modernidade era a constante mudança do ideal. Porque é mais fácil mudar um ideal do que conquistar um sonho. Desse modo, se todos ficam tristes o ideal passa a ser a tristeza e não a alegria. Pois bem, somos o país mais moderno do mundo!
 Se não vencemos o analfabetismo transformamos ser analfabeto em ser feliz. Se não eliminamos as favelas, damos a favela o status de comunidade. Feliz, claro. Se nossa cultura desce a ladeira, fácil é fazer do lixo cultura. Maloqueiros viraram moda. E nosso ex-presidente fez o favor de dar aos incultos o orgulho de serem autênticos brasileiros.
 Agora, como fomos humilhados em campos espanhóis, encontram a saída, burra, de ser orgulhosamente macacos. Sinto muito mas apesar de brasileiro sou orgulhosamente Humano. E não aceito banana jogada no chão. Não a engulo como mico amestrado.
 Voce acha que um jogador da NBA engoliria essa? 
 O plano é claro: como desistiram de erguer o povo brasileiro, botam o ideal pra baixo. 
 Brasil, não desiste! 

UMA FOTO, O AMOR ( O QUE É ) E O TEMPO ( QUE NUNCA PASSA E NUNCA VAI )

   Então foi verdade...
  A foto está aí. Eu, com cinco anos, entre meus primos. Ao fundo tem o hospital, que ainda existe, e mais nada. A esquerda de quem olha a foto se percebe a avenida Paulista. Que fica dez quilômetros além. O alto do Conjunto Nacional e o relógio. No fim da tarde eu olhava as horas por ele.
  É verdade. Existia mesmo esse espaço livre de ruas de barro e terrenos sem dono. Era um mato civilizado. Mato ralo, cortado, limpo. Poucas árvores e muita mamona. Uma imensidão cruzada por córregos com peixes e bilhões de sapos. Cobras sempre possíveis e ratões gigantes. Cigarras. Gafanhotos. Borboletas e abelhas. 
  O céu era grande. E esse ambiente é minha ideia de Paraíso. Não era perfeito. Eu tinha noites terríveis de asma solitária. Vivia a frustração de ter um pai severo, frio. E minha mãe nunca foi carinhosa. E ouvia frases vagas, frases que falavam de um casal que não se dava e de dinheiro que diminuía. 
  Mas o espaço livre compensava tudo. E meus primos que eu adorava. Cantava nas ruas, dormia na relva, ficava horas namorando o céu. E tinha uma sensação de que a aventura era eminente. Eu a sentia em cada moita de capim alto e em toda esquina vazia.
  O sonho podia crescer. Eu ia junto.
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  O amor tenta unir nosso corpo, sedento de carne, com nossa alma, sedenta de sonho. E nunca tente encontrar razão no amor. Não há. E se houver não é amor, é conveniência, amizade ou desistência.
  Porque Eros nos faz loucos. 
  Ela nada tinha a ver comigo. E mesmo assim fui dirigido a ela. Dirigido, pois no amor não somos donos de nós. Somos um outro que é mais eu que todo eu antes fora. E vou à ela como quem deve ir. Quero e não sei. Ou sei e não quero.
  Confio.
  E ela se revela o que eu não pensei que fosse. Ela se encaixa em mim. Mas Eros, deus que leva os partidos a se fazerem um inteiro, sabia desde sempre. Eros sabia aquilo que minha razão não suspeitava. Que ela era a metade perdida. Completude.
  E perdemos o senso. Andamos pelas ruas de madrugada. Ruas escuras, vazias, perigosas. E dormimos na rua sem saber o que possa ser. Porque esperamos pela hora sagrada. Ficamos perdidos na rua para ver o nascimento das estrelas e o apogeu da Lua. E assitimos abraçados a obra que não se repete. ( Só aqueles que não amam pensam que todo amanhecer é igual ). 
 No caminho um sapo cruzou a rua. Na volta um gato branco passou tranquilo. Ela confunde árvores com igrejas. 
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  Eu andava tonto pelas mesmas ruas. Ontem, muito ontem. Mas esse ontem é agora hoje. E amanhã. Escrevi em tempos idos aquilo que seria o caminho. Adentrar o amor é penetrar o caminho. Tive espaço para conhecer e tempo para ver. 
  E como eu sempre soube, era verdade. Sempre a verdade.

A MORTE DO LEÃO ( HISTÓRIAS DE ARTISTAS E ESCRITORES ), HENRY JAMES

   Toda grande literatura ambiciona ser música. Ou pintura. Porque pintura é arte. O pintor tem uma presença aristocrática, em arte, seja bem dito, que a literatura não tem. O literato trabalha a palavra, e a palavra é a mais limitada das ferramentas artísticas. Por ser a mais presa a razão, por dever contas a regra da gramática e do costume. A palavra depende de se conhecer a lingua. A palavra tem código e assim dito, ser artista radical em letras é coisa muito mais estranha que em som ou imagem. Estranha por ser inabitual. Por não ser realmente livre, por estar presa a regras fixas, escrever de modo criativo é sempre sentir o limite da palavra e sofrer a dor da inveja em relação ao mais nobre pintor e o mais livre músico.
  Como posso escrever sobre Henry James ? Ele é o mais perfeito artista da prosa dos últimos cento e cinquenta anos. Talvez apenas Proust lhe seja próximo. James consegue unir forma a conteúdo fazendo assim do texto, arte. Não há uma palavra que lá não esteja como peça importante, nó que faz parte de uma tapeçaria. Ele dá forma enquanto compõe, conta enquanto arquiteta. Parágrafo ou capítulo, tudo tem uma função específica, a de transmitir mensagem estética. Ler Henry James é uma viagem estética que nos faz um outro. Ele aumenta nosso patamar. Faz nosso gosto melhor e nosso padrão mais exigente. Ele diferencia o leitor banal do leitor concentrado. A recompensa flui na própria leitura.
  Em tradução sublime de Paulo Henriques Brito, este livro da Companhia das Letras apresenta cinco contos escritos entre 1888 e 1896.
  A Lição do Mestre conta a história de um jovem que em sua admiração por um escritor mais velho é usado por esse escritor. Cheio da mais fina ironia, uma ironia que congela e nunca é grosseira ( como se a verdadeira ironia pudesse ser grossa ), o conto, perfeito em forma e em invenção, nos arrepia. A forma como o jovem é feito de tolo nos revolta. É uma obra-prima.
  A Coisa Autêntica é pura melancolia. Um casal de nobres falidos vai a um pintor pedir emprego. Querem ser modelos. Mas o que acontece é que eles não conseguem posar como nada mais que Eles Mesmos. Um italiano pobre consegue posar como um nobre herói, os nobres verdadeiros não. O conto, tristíssimo, fala sobre a imagem, a falsidade do que vemos e a mudança de parâmetro do mundo. James não lamenta o fim da aristocracia, ele exibe seu ridiculo, mas também teme a ascensão do comum e do banal.
  Greviile Fane é o conto menos ótimo. É sobre uma velha autora de best-sellers que é explorada por filhos snobs. O filho tem vergonha da literatura pobre da mãe, que os fez ricos, pensa ele ser um grande autor, mas na verdade nada escreve e vive de explorar a velha senhora.
  A Morte do Leão é o melhor dos contos. Um autor é descoberto pela fama aos 50 anos. Envolvido por damas ricas, jornalistas e festas sem fim, ele cessa sua carreira e acaba sem chance de se desenvolver como artista. O conto, cheio de humor feroz, é uma obra de arte perfeita. Humilha aquele que tenta escrever bem.
  O Desenho do Tapete conta a saga de um jovem que tenta desvendar o sentido da obra de um grande escritor. Dizem que James sentia a frustração de não ser bem lido. Ele temia nunca ser entendido. O conto, música abstrata, exemplifica isso. O final, ácido, é um tapa em nosso rosto.
  Lidos os cinco contos fica uma vontade de ler mais. Henry James vicia.

ABANDONE-SE HOJE

   Eu já lera isso ( em Nietzsche, em Agee ) e volto a ler a mesma ideia em Chesterton. A ideia de que o homem tem se tornado cada vez mais frio, contido, reprimido, inumano. Já tenho algumas décadas de memória para contar e devo dizer que o mundo que vi em 1975 ou em 1985 é bastante mais quente que aquele que agora vejo.
 Cada pensador dá sua opinião sobre o porque dessa transformação gradual, mudança que tem feito das pessoas ilhas de indiferença. Para Chesterton o problema é da própria mudança. Uma época que ama a mudança em si-mesma não consegue lutar ou dar valor a nada. Mudar se torna rotina e mudam-se os objetivos, os ideais. Mudar a meta é mais fácil que a alcançar. Derrubam-se totens, a vontade se desfaz e o homem se torna indiferente. Mudar todo o tempo vira rotina. Tudo muda todo o tempo para que nada se construa. 
 Inclusive relações ou arte. Como tudo vai mudar, e assim sabemos que tudo será destruído, para que construir algo de realmente bom, eterno, perdurável ? Se sabemos que o amor não é eterno, para que amar ? Para Chesterton, o primeiro passo para a felicidade do homem ( e ela é possível, aliás, mais que possível, ela existe aqui ), é retomar o conceito de eternidade. E com ela reavivar a moral. Existem coisas que são eternas SIM. E com essa eternidade vive uma moral que é imutável. 
 Um erro repercute para sempre. Um crime será punido com completa reciprocidade. A bondade mora na verdade e a verdade é real e eterna. O amor dá acesso a vida sem fim onde tudo é maior e melhor. A violência é um mal sem nada que o redima. E o principal: Somos todos nós um campo infinito onde se dá a luta sem fim entre o bem e o mal. E, como seres donos de liberdade e de missão escolhida, devemos lutar essa luta. Honrar a vida. 
 Se todo esse modo de pensar parece medieval é porque tudo de mais profundo e imutável que possuímos é medieval. Amamos como homens da idade do romance, cremos como homens de fé, lutamos por um pouco de honra e justiça e sentimos os pavores dos pastores e lavradores de então. Ou, se todo esse mundo agoniza ( é o que observo ) temos a missão, sublime, de defender seus últimos, e derrotados, testemunhos. 
 O coração perdeu. A razão dogmática nos faz crer que o coração é o menos confiável dos orgãos por ser simplesmente o menos controlado. E o que menos aceita dogmas que o reduzem a nada mais que músculo e sangue. Bilis secou.
 Não mais a ira divina, não mais a vingança maligna. Nunca mais iremos morrer por uma ideia. A paixão que move a vida ou a dor que faz com que a vida se revigore. Não mais o mistério. E se voce é cego ao mistério, creia-me, o tédio irá lhe matar. Gota a gota.
 Se um amigo é apenas um contato, se a arte é apenas um evento e se a criatividade nada mais pode ser que uma distração futil, a vida terá o valor da futilidade. Será nada mais que o tic tac de um relógio.
 Vá além. Enlouqueça. E cometa os piores vexames. Seja infantil como todos são e temem parecer. Exiba sua originalidade. Mesmo que ela seja burra. Ame e fale que esse amor é pra sempre. Mas acima de tudo, jogue seu cinismo no lixo e com ele seu egozinho. Confunda-se com a vida. Rasteje. Rasgue. Sangre. E beije. Perca a vaidade de nunca se ajoelhar. Ajoelhe-se. Admita que alguém sabe o que voce nunca irá saber. Apequene-se. E se abandone. E então encontre. 
 É isso.

UM ESCRITOR DA SABEDORIA E DO BOM HUMOR: GILBERT KEITH CHESTERTON

   Sou eu o homem que com maior ousadia descobriu aquilo que a muito já havia sido descoberto.
   Esse o mote do livro, brilhante, de G.K.Chesterton. Não conheço pensamento mais claro. Ele pega aquilo que temos PREGUIÇA de pensar, que temos dado como certo, e com simples bom-senso, mostra seu erro. Dessa forma Chesterton provoca um nó em sua cabeça e mesmo que voce seja um escravo do pensamento escuro e aprisionador, algo em voce balança ao término de sua exultante leitura.
   Chesterton foi uma raridade no século XX. Um escritor que foi um homem feliz. Seu método é racional. Ele pega o que é comumente dito e o leva ao pé da letra. Então compara esse pensamento com aquilo que as pessoas têm como excêntrico e demonstra assim que o que é dado como certo pode ser muito errado. E o excêntrico pode ser o muito claro. Seu estilo é aquele do bonachão professor de Oxford. Não, ele nunca lecionou. Foi jornalista e em seguida escritor de sucesso. Seus debates com amigos ilustres ( Bernard Shaw, H G Wells ) eram transmitidos ao vivo pela BBC. Grande sucesso também fez o debate com Bertrand Russel. Chesterton venceu todos. Sua bússola, ele logo o diz, é o conto de fadas. Sim, contra a ciência e o materialismo ele usa a moral do conto de fadas. O racionalismo de Branca de Neve ou do Gato de Botas ( e ele demonstra onde mora a razão pura e prática desses contos ), contra Darwin e Schopenhauer. O modo como ele demole Darwin é fabuloso.
   Livros como Zorba, poemas de Yeats, o encontro com o pensamento de Montaigne, o teatro de Shakespeare, a leitura de Bergson, todos esses momentos decisivos ( e posso incluir ainda Eliot, Keats, Whitman, Huxley ), foram passos rumo ao encontro com uma consciência maior em minha vida de leitor. Sair da vida pequena e caminhar a uma vida grande. Chesterton é a coroação desse caminho, é a cura de descaminhos. Em um mundo melhor todos leriam Chesterton. Como teriam lido Emerson. Leriam mais Stendhal.
   Melhor pegar frases do livro aleatoriamente. ( Coloco-as em negrito ).
   As pessoas não conhecem o mundo em que vivem e por isso acreditam em meia dúzia de máximas sem pensar nelas.
   Dizem que um homem bem sucedido é aquele que crê em si-mesmo. Pois eu digo que os homens que creem em si-mesmo estão todos no hospicio. Os que lá não estão, e sei que são muitos, podem ser encontrados em bares suspeitos e ruas mal frequentadas, É o poeta "genial"que agora se acha um perseguido, a estrela do cinema que nunca foi descoberta, o filósofo revolucionário que nunca foi entendido. A auto-confiança é a característica de todo fracassado.
   Os contos de fada duram para sempre porque eles têm um herói que é um ser humano normal vivendo aventuras incríveis. Os romances modernos têm um herói anormal vivendo um história banal. 
   Todos os gênios foram pessoas absolutamente normais com ideias originais. Pessoas originais com ideias normais são os charlatães. 
   Dizem que o hospício está cheio de misticos, de poetas. Mentira. A loucura é feita de um excesso de ordem, de zelo, de razão. No hospicio moram banqueiros, administradores e advogados. O poeta convive muito bem com a riqueza, com a complexidade do mundo. Ele é são. A poesia e o misticismo podem curar a loucura, a matemática e o xadrez nunca.
   O mundo do doido é sempre pequeno e nesse pequeno mundo tudo tem sua lógica. O mundo do poeta e do mistico está sempre em expansão. Ele cresce sem cessar e nesse crescimento não se procura lógica embora exista razão. 
   Materialistas fecham caminhos. Para eles vários pensamentos são tabú. Não posso pensar nisso, não posso pensar naquilo. Isto não é racional, isto não é moderno.
   O pensamento mistico abre portas. Posso pensar em tudo. Nada pode ser estranho e nada é impossível. 
   Homens que acreditam em si-mesmo, autores que acreditam no super-homem de Nietzsche, escritores que escrevem sobre seu Eu, todos vivem em vácuo imenso. Nada criam porque nada olham. Seu olhar está sempre para dentro. O mundo lhes é indiferente.
  O mundo moderno não é mau. Na verdade ele é excessivamente bonzinho.
  O mundo moderno tem a seguinte e absurda teoria: a de que é mais fácil perdoar os pecados se crermos que não existem pecados para perdoar. É um erro duplo. Absolve o mau achando-o normal e tira de nós a chance de provar a virtude do perdão.
   Se o homem quiser tornar o mundo grande deve tornar a si mesmo pequeno. Essa a virtude da humildade. 
   Na busca do prazer e no gozo absoluto perdemos o principal fator do prazer e do gozar, a surpresa.
   Os humildes criam os mais altos sonhos. Os egocêntricos os destroem.
   O homem antes duvidava de si, mas nunca da verdade. Agora ele duvida da verdade e jamais de si.
   É inutil falar na rivalidade entre fé e razão. Pois a razão, como tudo o mais, é uma questão de fé.
   O cristianismo é a única religião voltada para fora. Ela olha o exterior e trabalha sobre a matéria. É a religião dos olhos. 
   A teoria da evolução nos dá a licença para sermos tigres ou leões. 
   Não me impressiona o quanto um macaco se parece com um humano, o que me deixa abismado é a imensa e inenarrável diferença que há entre nós e eles.
   Pregar o egoísmo é praticar o altruísmo, eis a contradição de Nietzsche, um homem fraco que amava o que ele pensava ser um forte. O verdadeiro egoísta não sai a rua para pregar, ele despreza a rua.
   Cientistas modernos dizem que somos guiados por genes.  Deus nos deu o livre arbítrio. Podemos escolher o bem ou o mal. Onde a liberdade?
   A vida é em si um milagre. O pensamento é uma magia e a vontade é um mistério. O que importa não é o porque de o espaço ser infinito ou não, mas o porquê do homem desejar saber. Esse querer saber, essa vontade de ser sempre mais e melhor, essa ânsia por ir além, esse é o milagre.
  Isso tudo é uma fração minúscula do que esse livro contém. E Chesterton não escreve aforismos. Cada uma dessas frases é fruto de um raciocínio, de uma razão que é exposta. Ele nos convence. Faz filosofia.
  Lê-lo é como beber, como sonhar, como comer. Um prazer, uma coisa da vida, natural. Se algum escritor pode merecer o título de sábio, esse é o grande Gilbert Keith Chesterton.
   
 
   

PIETRO GERMI/ HARRY POTTER/ PROUST/ NARUSE/ GREGORY PECK/ MAGGIE SMITH

   O SOM DA MONTANHA de Mikio Naruse com Setsuko Hara
Se baseia em livro do grande Kawabata. Mas não espere no filme nada da sensualidade hipnótica do grande romancista. O roteiro opta pelos aspectos externos das perosnagens, não complica e se sai bem. Naruse foi, com Ozu, Mizoguchi e Kurosawa, parte dos quatro grandes do cinema japonês. A trama fala de um pai, seu filho que é infiel a esposa e dessa esposa, que é apegada a familia e ao pai de seu marido. Fosse um filme de Ozu seria leve como uma brisa e belo como uma estação nova, mas Naruse é mais pesado. Sentimos pensa da esposa e raiva do marido. Em Ozu vemos os erros mas os perdoamos. Nota 6.
   O TEMPO REDESCOBERTO de Raoul Ruiz com John Malkovich, Emmanuelle Béart, Vincent Pérez
A dura tarefa de levar Proust as telas é vencida por Ruiz. Ele faz o oposto do que Naruse fez ao adaptar Kawabata, joga no lixo a trama e se concentra no visual. O filme, lindo de se olhar, flutua entre personagens, ambientes, frases, roupas e muito luxo. Para quem leu Proust é uma delicia. É como ver uma coleção de lembranças de uma viagem. Para quem não o leu, que pena! Verá apenas um filme enigmático e sem sentido. Aconselho que o vejam mesmo assim, tentando o usufruir como coleção de clips superiores. Nota 8.
   O CONSELHEIRO DO CRIME de Ridley Scott com Michael Fassbender, Penelope Cruz, Javier Bardem, Cameron Diaz e Brad Pitt.
Belo elenco. Um filme de lixo. Maneirismo sobre maneirismo, fala de um cara tentando entrar no mundo do tráfico entre México e EUA. Loooooongos diálogos sem qualquer importância, loooooongas tomadas tipicas do pior cinema dos anos 80 e a sensação constante de : Vamos! Qual É ????? ZERO!!!!
   HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL de Chris Columbus com Maggie Smith, Alan Rickman, Richard Harris, John Cleese...
Os primeiros trinta minutos são excelentes. Mas logo surge uma certa monotonia. Rowlings aprendeu bem as lições de Lewis, mas Harry Potter é apenas para crianças. Eu adoro desenhos, livros, contos, infantis, mas aqueles que conseguem ser livres da prisão da ïnfantilidade esperta. Aqui, em cada cena, voce percebe o desejo de agradar quem tem 12 anos. E isso exclui todo o resto. Bom ver Alan Rickman em pappel tão bom! Nota 4.
   SONHOS DE UM SEDUTOR ( PLAY IT AGAIN SAM! ) de Herbert Ross com Woody Allen, Diane Keaton, Tony Roberts, Viva.
Feito em 1972, baseado numa peça de sucesso de Woody, o filme é um tipo de ensaio para Annie Hall. Woody é um critico de cinema com mania de Humphrey Bogart. Ele se apaixona pela esposa de seu melhor amigo. Ela é Diane Keaton, que faz aqui Annie Hall. O filme é bom? Quando o vi a primeira vez, em 1987, imerso numa fase Woody Allen, achei ele consolador. E muito pra cima. Agora me decepcionei. Não que seja ruim, é comum. Ross fez boa carreira no cinema. Ah sim, o personagem de Woody vê Bogart, que surge lhe dando conselhos. É a melhor coisa do filme. Nota 5.
   ALMAS EM CHAMAS de Henry King com Gregory Peck
Começa muito bem. Um homem em Londres visita um velho campo de pouso e se lembra da segunda guerra. Depois o filme ameaça ser chato. Não tem ação nenhuma. O que temos é um bando de aviadores com medo de lutar. Mas logo vamos nos interessando pelos caras. É um muito bom filme. Peck é o novo comandante. Duro, frio e nada simpático. Henry King, mestre que fez mais de 200 filmes ( !!!!! ), conduz tudo com sua mão de ferro. É o estilo americano, ele conta a história e que se dane o resto ( que resto?? ). As cenas de ação só acontecem no final. Nota 8.
   THE PRIME OF MISS JEAN BRODIE ( A PRIMAVERA DE UMA SOLTEIRONA ) de Ronald Neame com Maggie Smith, Pamela Franklyn e Robert Stephens
Surpreendente. Na Inglaterra de 1936, acompanhamos uma professora "liberal". Ela consegue fazer de suas alunas meninas ärtísticas" É uma mulher alegre, futil, criativa, agitada...feita por uma Maggie Smith que levou o Oscar em 1969. Mas logo vemos que o que parecia tão bonito não é tão perfeito. Ela tem admiração por Mussolini, revela-se uma egocêntrica sem noção de delicadeza e acaba por se perder em seu mundo ideal. O filme é um bom exemplo do grande cinema inglês da época. Um prazer. Nota 8.
   SEDUZIDA E ABANDONADA de Pietro Germi com Stefania Sandrelli e Saro Urzi
Às vezes faz rir, mas é uma impiedosa exibição do patriarcado e do machismo latino. Na Sicilia, uma menina é seduzida. O sedutor não assume o ato. Chega a cupá-la por o tentar. O pai da menina tenta, em ações mirabolantes, salvar a honra de seu nome. Tudo caminha para o erro completo, um erro faz nascer um erro... Germi fez o genial Divórcio a Italiana. Ele foi um observador dos vicios da Itália que se modernizava. Mas aqui ele erra em sua metragem. O filme seria excelente com hora e meia. Dura duas horas e dez, e a gente tem a impressão que ele passa do ponto. Stefania é uma rainha do erotismo. Nota 6.

JUVENTUDE



leia e escreva já!
  De Zorba para Yeats para Montaigne e agora para Chesterton.
  Foi um longo caminho.

JUVENTUDE JUVENTUDE E JUVENTUDE

   Após todos esses posts sobre erotismo, dá agora pra entender porque votei em JUVENTUDE como o filme mais erótico que já vi ?
   Tenho um grande pudor em falar de minha vida pessoal aqui. Mas devo dizer que nada vem por acaso. Faz já um mês que vivo uma intensa relação erótica. Como ela se dá ? Saio com uma menina todo fim de semana. Bebemos, rimos, falamos tudo o que há pra falar. Nos sentimos completamente à vontade um com o outro. Confiamos. 
   Sinto um desejo por ela como nunca senti antes. Não sei se é amor. Tenho pudor em usar essa palavra porque ela não se adapta ao que eu idealizo como musa. Ela é diferente demais de mim. E eu sei que ela também sente desejo por mim. Mas, mesmo bêbados jamais nos beijamos, o que dizer do sexo ? Porque ? Ela está ainda enrolada com seu ex-marido e em sua cabeça não cabe dois homens ao mesmo tempo, mesmo que com um deles não aconteça mais sexo. Mas acontece ainda um fim de relação. E ainda há um filho.
   Não discuto se ela está certa. Já lhe disse que ela é rara. Mas o que nunca disse é que agradeço o que ela tem me dado. Um estado constante de excitação que nunca passa. Tenho vivido este mês em tensão pré-coito ( se voce quiser usar uma linguagem estúpida típica deste tempo brutal ). Na verdade o que vivo é o estado de pleno erotismo. Tudo em mim vive. Minha pele parece mais sensível, vejo as coisas melhor e as pessoas me dizem que pareço mais jovem. Esse o estado erótico. A carne que tende a alma.
   Creio que esta é uma situação rara hoje. Uma pena. 
   Saibam que nada do que aqui escrevo não foi vivido antes. Se falo um elogio a Yeats, aos anjos ou a anarquia é porque vivi isso na vida cotidiana. Não creio em guerreiros que temem se ferir ( Nietzsche ) ou em pessoas bondosas que são egoístas ( Sartre ). Cada vez mais creio no que é simples, bom e principalmente óbvio. E sei que é assim que se pode ser feliz. 

AMOR E AMIZADE- ALLAN BLOOM

   O livro saiu no Brasil em 1996, então não sei se será fácil de achar. Mas procure, é muito bom. Allan Bloom é muito melhor que Harold Bloom ( sem parentesco ). Ele amplia o tema, abrange filosofia, história, arte e sexo. Professor de politica em Yale, morreu em 1993 ainda jovem. O livro fala de erotismo, da sua presença na obra de 4 grandes romancistas ( Flaubert, Tolstoi, Jane Austen e Stendhal ), na filosofia de Rousseau, no teatro de Shakespeare e na vida de Montaigne, Sócrates e Platão. Em posts abaixo falo sobre alguns de seus capítulos. Mas nada pode se comparar aos capítulos finais, textos sobre Sócrates, Montaigne e a belíssima conclusão final do próprio autor.`Dificil citar algum trecho, seu pensamento é construído de forma tão engenhosa que fica impossível destacar algum trecho sem destruir a clareza do que é transmitido.
   Para Bloom, a amizade é alma falando com alma. O amor é a carne se transformando em alma. Amizade é voz e ouvido, amor é olho. Impossível amar sem a participação da beleza física, a amizade esquece a aparência. Quanto maior a participação da alma maior o erotismo no amor e nele existe o amado e o amante, na amizade só há amigo e amigo. 
   A alma... Bloom arma uma surpresa no final do livro. Ele passa toda a obra comentando os autores e sem dar nenhuma pista sobre o seu pensamento. No fim, a forma como ele defende o amor é simplesmente desarmante. E também é desarmante a maneira como ele lê Nietzsche. O filósofo alemão paira em toda a obra assim como Kant e Heiddeger.
  Bloom analisa cinco peças de Shakespeare, e sem o deslumbre do outro Bloom, ele fala que o bardo era acima de tudo um observador. Mais que isso, Shakespeare e Nietzsche têm muito mais a dizer sobre o homem que qualquer gênio da psicologia moderna. Porque o objetivo do artista verdadeiro é dar ao homem seu potencial máximo, único, eles percebem cada homem como um universo, já Freud, burguês sempre, tinha como norte a transformação da diversidade em tábula rasa, dar ao complexo a simplicidade clara de uma equação. Isso é empobrecedor. Um bom burguês mira-se no pior para tirar daí a lei geral, porque não se mirar no melhor?
   Se cada um de nós é, como se fez moda dizer, um personagem de Kafka, de Beckett ou um neurótico de Freud, porque não dizer também que cada um de nós é um pouco Shakespeare, Nietzsche ou Montaigne? O impulso burguês é sempre reducionista. Transformar o mundo em seu espelho medíocre. Reduzir Shakespeare a seu tamanho diminuto e nunca tentar se erguer as alturas de Shakespeare. 
  A igreja, por erros terríveis cometidos, foi justamente atacada pelo iluminismo. Derrubou-se sua autoridade e com ela tudo aquilo que ela detinha. Ora, assuntos da alma humana eram de exclusividade religiosa. Sovina, a igreja retinha textos e o privilégio de ter a última palavra sobre espírito, alma e transcendência. Ao ser colocada de lado, colocou-se os assuntos da alma também de lado. Em um erro absurdo, porém compreensível, tudo o que se referisse a alma passou a ter odor de igreja, de repressão e de conformismo. Para o século XIX, falar em espirito era falar em passado, o passado cristão. A igreja do burguês é uma igreja onde não existe alma. É uma igreja prática, onde se firmam contratos e se apagam as faltas.
   O que tudo isso tem a ver com o erotismo? Sem alma não existe erotismo. Sem a presença do espirito, o sexo fica reduzido a biologia. Queremos porque precisamos procriar. Apenas isso. Amamos aquela mulher porque nossos genes assim o querem. Ou seja, deixamos de obedecer a Deus para obedecer aos genes. Reducionismo maior é impossível. Do Sem Limite e Sem Tamanho, caímos no diminuto. A lógica dirá, óbvio, que os dois extremos se excluem.
   A alma ansia por falar. Por se expressar. Amamos na esperança de poder unir o impossível: alma e carne. Esse o prazer erótico. A expectativa da perfeição. O belo sublime poder ser encontrado aqui e agora. Fora disso o que temos é pornografia, violência e incivilidade. Bloom diz que a existência de Deus é discutível. Mas a Alma existe. Basta conhecer um pouco de música, de poesia para saber disso. Nada há de biológico na arte. Negar isso é chafurdar na lama, que é o que temos feito.
  O mais lindo momento do livro fala de amizade. A amizade de Montaigne com La Boétie. Para Bloom, a amizade verdadeira é mais rara que o amor. Apesar do amor ser muito mais forte. Certas frases de Montaigne, a inevitabilidade da amizade, o prazer sem fim de conversas livres, tudo isso exala beleza. E o belo acaba sendo o problema central do erotismo. 
   Ele existe? Ou o belo é uma convenção social? Pessoas tendem a dizer que o belo é variável. Que o que hoje é feio pode ter sido belo um dia. Welll...
   Assim como Alma sempre houve em toda cultura ( não se conhece uma só cultura atéia ), coragem, justiça, bondade e equilíbrio sempre foram características da beleza. Há um certo prazer frouxo em se relativizar tudo. Temos a tola sensação de que relativizar é ser mais complexo e mais inteligente. Uma grande asneira. Relativizar abole os parâmetros de julgamento e na verdade paralisa o pensamento e o debate. Sabemos o que é belo. Sentimos e intuimos isso com a alma. Sabemos que Mozart é belo e que um matadouro não é. Sempre soubemos que a beleza decantada da guerra pode existir se pensarmos apenas em coragem e honra. Mas sabemos que corpos dilacerados nada podem ter de belo. Podem ser uma crítica, um testemunho, mas não beleza. 
   Porque beleza é erotismo. Beleza é aquilo que nos falta e miséria temos muitas. Beleza é a vitória sobre a dor, o tempo, a morte e o medo. Ela nos recorda nossa alma e nos leva fora da carne. Beleza nunca se engana. Eros é esperteza.
   Admirável livro.
  

SEXTA-FEIRA SANTA. PARA VOCÊ.

   Ninguém trabalhava na sexta-feira. Aliás, até padaria fechava. Nada de consumo, as pessoas conseguiam ficar um dia inteiro sem gastar um tostão. Lembro de ter ido a igreja nesse dia. E de ficar apavorado com aquelas mulheres de véu preto chorando sem parar. As carpideiras. No centro da igreja lotada ficava o corpo morto de Cristo. E eu, criança, morria de medo. Pensava que era um defunto verdadeiro. O calor e o cheiro de velas e de flores me prepararam para meu primeiro velório: o de meu pai, quarenta anos mais tarde.
   Hoje os pedreiros trabalham o dia inteiro na casa aqui em frente. Pessoas fazem compras alegremente. Alguns evitam comer carne, mas eles nem sabem direito o porque. O mundo não pode parar e um Homem que morreu a dois mil anos não pode fazer mais milagres. Na igreja católica o clima é sempre de algo que morreu e não quer aceitar o fato. Católicos hoje se parecem com comunistas, com idealistas e hippies. Morreram e insistem em assombrar. O padre não sabe ser Pop, e não tem mais o maravilhoso ar de erudição da velha igreja. Tenho dúvidas se ele leu Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Platão. Minha religião fala latim.
  No local onde trabalho as crianças não sabiam que sexta seria feriado. Quando respondo que sexta é Sexta-Feira Santa elas me olham com cara de "E ? ".  A união de homens de negócios, ateus bem intencionados e ciência eufórica matou a igreja no século XIX. Hoje ela é apenas mais um dos muitos bazares que nos distraem do tédio infindável. Moral e código de conduta foram abolidos, ótimo, mas o que se colocou no lugar? Derrubou-se Pai, Mestre e Herói, para que mesmo? Para sermos felizes? Ou para podermos trabalhar em paz? E fazer compras por todo o ano?
   Tente pensar por um minuto naquele que se deu por voce. Seja seu pai, seu avô ou O Homem que se Disse Deus. Tente não ser mais um a passar pelos ritos da Vida com um sorriso bobo de máquina de consumir e de se consumir. 
   É isso.
 

TOLSTOI E JANE AUSTEN, O ENCANTO DO REAL E A SEDUÇÃO DO EXAGERO

   O romantismo vai a falência porque ele se torna fraqueza e não mais sinal de força. A natural tendência humana a facilidade transforma o que era coragem em acomodação e o desafio vira preguiça. O pensamento burguês vence. O homem é uma fera, egoísta e individualista, no mundo é cada um por si. O artista diante desse fato ( ele não tem mais ânimo para ir contra o senso comum, que no capitalismo se torna a fé no individualismo e na disputa ), abre mão do desejo pela beleza via erotismo. O que ele faz? Aceita esse mundo material e entra numa triste competição. A arte do século XX passa a ser uma corrida pelo feio. Quanto mais feia e terrível a obra for mais verdadeira ela é. A vida, vista como mera mercadoria, portanto futil e sem grande valor, passa a ser um pesadelo. O sexo é mero gozo sem transcendência e a literatura um coro de ressentidos. A arte é um retrato de uma vida que vale quase nada. A criatividade só é válida se criar pesadelos.
   Allan Bloom tece esse retrato após analisar Tolstoi e Austen a luz de Eros. Ele demonstra o lado mais problemático de Tolstoi. Começa dizendo que sua geração viu Tolstoi como o guia para a vida. ( Bloom nasceu em 1930 ). Mas relendo Anna Karenina, 35 anos depois, ele percebe que o livro mais que um romance é uma pregação sem fim. Tolstoi prega Rousseau. Tenta unir a familia oa erotismo, critica a Rússia européia modernizada à força e elogia a Rússia camponesa, eslava, simples, pura, natural. É o mesmo discurso de Putin. Tolstoi não morreu. 
   Anna morre porque ela representa a Rússia que acreditou na Europa e Lievin sobrevive por ser o bom russo, o homem rico que descobre a sabedoria do povo. Lievin é Tolstoi. A grandeza do romance reside no fato de que Tolstoi se trai, se apaixona por Anna e acaba fazendo dela uma força irresistível. Ela engole o livro. Anna Karenina é uma enciclopédia sobre todo o mundo, sobre toda a vida e sobre a falência do romantismo. Ao contrário de Stendhal, que em nada acreditava, Tolstoi crê no Deus da natureza, o Deus da reprodução. Todo o livro é construído para enaltecer Lievin, mas acaba sendo de Anna. 
   Jane Austen nada tem dos exageros de Tolstoi e nem da ambição de Stendhal. Ela aceita a vida como ela é. E por isso, apesar de ser a mais antiga dos quatro gigantes ( Stendhal, Flaubert e Tolstoi ), ela é a mais próxima da nossa vida de hoje. Irônica, ela acena sempre com a sabedoria de quem enxerga todo o ridiculo da vida, mas ela compreende que instituições são necessárias para a vida. Ela sabe que Eros é indomável, mas que ele deve ter um canal por onde fluir e esse canal se chama compromisso. Os casais se analisam, testam, pesam, pensam e aceitam ou não. Familia e dinheiro é o que os move. Austen evita tocar em politica e em igreja, eles são fatos estabelecidos. Inglesa ao extremo, ela é prática. Seu mundo é aquele em que ninguém é herói e ninguém é muito mal. As pessoas têm limites claros. Eros acaba sendo a força que lhes salva do tédio e do vicio. 
   Burguesa? Não porque Austen se coloca fora desse mundo. Suas heroínas são sempre inconformistas, mas lidam com a vida como ela é e não como querem que ela seja. Não sonham, se viram. Esse o segredo do encanto de Austen.

MADAME BOVARY DE FLAUBERT, O BURGUÊS E O ROMANCE

   A façanha do nobre só tem valor se for um risco absoluto. Se o risco envolver a perda da vida ou da fortuna. A façanha do burguês é o aumento de sua segurança. Ele detesta o nobre por sua irresponsabilidade. E tem inveja de sua segurança irresponsável. Uma contradição.
   O século XIX criou o burguês. O século XX fez dele opção principal. No século XXI ele é modelo único. Todo valor burguês tem por objetivo a segurança. Por isso seu principal interesse é a medicina. Ele ama a higiene, os remédios, o spa, as receitas de boa saúde mental. Idolatra o regime, a ginástica, o bom clima. Condena tudo o que fala de risco: a promiscuidade, a sujeira, a guerra, a exaltação, a falta de controle. Sua igreja é aquela do bom tom. Nada dos exageros da fé medieval. É uma religião sem milagres e sem punições. Assim como sua politica é a do possível. A poesia burguesa fala do amor como coisa fisica. Palpitações, febre e excitação. Será um amor de pombinhos e depois, hoje, um amor de motel. Sempre físico. Uma ginástica da boa disposição. O burguês ama acima de tudo o progresso. Porque ele promete dinheiro, saúde e vida longa. Tudo nele se mede em números. Muitos anos de vida significam vida boa. Muito dinheiro significa sucesso. Várias amantes quer dizer satisfação. O que se mede e se conta merece apreço. O resto é romantismo.
   Flaubert odiava esse mundo. Ele odiava seu mundo. Seu tempo foi o tempo do hiper-burguês, o burguês em sua máxima confiança. Eles tinham a certeza de estar construindo o paraíso na Terra. Amavam tudo o que era científico, desprezavam o passado e tinham o prazer de zombar de igreja, monarquia e poetas. Falubert os odiava. E pior, sabia que os românticos, seus adversários, também estavam perdidos. Bovary é essa romântica. Ela ansia por amor erótico. O orgasmo não lhe interessa. O que ela quer é Eros, ritual, beleza, transcendência. Cega, ela se deixa envolver por cada conquistador que encontra em sua vida vazia de mulher casada. Tenta ver neles o mundo por que ansia. Flaubert nunca foge do mal. Bovary cai no vazio absoluto. A vida vai perdendo lentamente seu encanto. Eros partiu e tudo agora é feio, reles, sem sentido, burguês. Ela se suicida. Lentamente de forma dolorosa. O livro, o mais terrível que já li, é desagradável. Crú.
  Flaubert disse que Madame Bovary é ele. Sim. Só que ela não sabe de seu mal. Flaubert sentia a vida como Bovary a sente. Mas sabia o porque desse mal. E criou uma obra-prima. Ele descreveu a mediocridade de politicos cheios de si, de cientistas balofos, de padres sem fé e de homens que viviam pelo sexo. Bovary, tola criança que ainda acreditava em Eros, morre seca e envenenada nesse mundo sem ar. 
  Flaubert, o mais amado escritor pelos escritores,  era terrível.

O VERMELHO E O NEGRO DE STENDHAL, NADA MAIS A DIZER SOBRE O AMOR.

   Pascal sempre foi o enigma, o nó do pensamento francês e um de seus postulados é aquele que diz que sem Deus o tédio se torna absoluto. Stendhal é ateu, e sabe que existe uma ânsia dentro do homem que nada de físico pode preencher. O burguês foge dessa ansiedade satisfazendo todos seus desejos. O homem superior sente essa vontade e corre o perigo de perder todo o interesse pelo mundo. A melancolia e o tédio se fazem seus companheiros. Porém existe um modo não religioso de resolver esse vazio, o amor entre homem e mulher. O erotismo.
   ( Faço aqui um adendo:: Rousseau disse que a alegria plena pode ser vivida ao se conseguir transformar o dever, que nos é dado pela sociedade, em desejo individual. O dever de procriar e ter uma familia se torna um jogo erótico de desejo. Dever que se faz desejo assumido individualmente pelo homem. Hoje não acontece exatamente o oposto? O desejo não se transformou em dever? )
   Para Stendhal o amor erótico é um modo de se substituir o impulso da religião, de se alcançar o sublime. Mas, para se poder alcançar essa altura é preciso uma grande dose de amor-próprio, aquela estima a si-mesmo que faz com que o egoísmo natural a todos nós se transforme em vontade de ser reconhecido. Esse desejo de ser reconhecido, reconhecido como ser único, se direciona a pessoa amada. Ela, por ser única, deverá reconhecer o amor de quem a ela se dedica.
  Allan Bloom ama Stendhal. Como eu também penso, nenhum autor jamais soube com tanta arte falar sobre o amor para aqueles que amam. Ele jamais é meloso, seu texto é incrivelmente veloz, objetivo. As coisas acontecem com rapidez e em poucas páginas já conhecemos os personagens e por eles estamos seduzidos. Julien Sorel, em O Vermelho e o Negro ama Napoleão. Vindo de meio medíocre, ele em ódio por burgueses, que vivem acomodados na busca do prazer simples, e pela aristocracia, que não o aceita. Por vingança ele seduz a esposa de seu patrão. A conquista como Napoleão, por amor a si-mesmo. Se surpreende ao perceber que ela realmente o ama e ele se derrete no sexo cheio de erotismo dos dois. É descoberto e foge. Seduz a filha nobre de seu próximo empregador. Ela, intelectual revoltada, arma com ele um jogo de poder. Na verdade os dois disputam a liderança, quem é o escravo e quem é o senhor. Um acidente ocorre ao fim, e não irei contar o final. O que posso dizer é que Julien morrerá jovem e Stendhal tirará desse fato toda sua filosofia. O que vale é viver. O burguês vive para viver longamente, o homem superior vive intensamente, sem se preocupar com duração e sim com qualidade. Julien morre feliz, no cadafalso. porque morre conhecendo o amor, pleno de gozo e de certeza de ter vivido.
   Não conheço livro mais alegre, nobre, cômico, erótico e romantico.

O ACORDO ENTRE O DESEJO E O DEVER

   Na luta interna entre o desejo e o dever ( o dever é a sociedade e o desejo é o natural estado do homem, o homem da natureza ), o homem encontra uma saída do conflito, a Imaginação. Ele passa a criar saídas do conflito, a principal delas sendo o Amor. 
  O amor é portanto uma invenção. Imaginamos que o ser amado seja especial, único e imaginamos que esse amor nos faz também melhores. Acontece então o Erotismo, passamos a amar o amor. Se a castidade nos foi imposta pela igreja e se o casamento é instrumento de manutenção do estado, "Passamos a Dever Amar a castidade e o casamento". Amamos o Dever, e essa é a grande altura sublime do Amor Erótico. O dever se torna uma escolha. O dever passa a aumentar nosso AMOR-PRÓPRIO. Nos estimamos por conseguirmos cumprir o maior dos deveres, Amar.
  Essa a grande sacada de Rousseau, O Amor erótico, entre homem e mulher, como o grande prazer do indivíduo e ao mesmo tempo como forma de se reconciliar dever e desejo. Se hoje isso nos parece óbvio é porque todo o século XIX foi tomado por essa certeza. No século XX, a partir da moda freudiana, toda imaginação passa a ser vista como mentira e o amor ao dever como neurose. Se reduz o erótico ao simplório e o amante do amor é agora uma besta. O caminho fica aberto para a volta do sexo como mecanismo animal, um tipo de necessidade puramente física e a pornografia como a tal Verdade. 
  Mas de 1800 até mais ou menos 1910, Rousseau foi a verdade. E não por acaso é a época de ouro do romance. As pessoas liam romances como hoje se lê auto-ajuda. ( Observe a diferença de qualidade !!! ). Eles ensinavam as artes do erótico. O grande tema da vida NÃO era ganhar dinheiro, era a relação homem-mulher. Nessa relação se via o sentido da vida. 
  Tudo devido a Rousseau. 
  Interessante observar que a prova da intuição certeira de Rousseau é que, como bem lembra Allan Bloom, é que continuamos, em 2014, querendo falar e aprender as coisas do erotismo. Mas, após tantas doses de pornografia, materialismo e desencanto, estamos fadados a um ambiente que NEGA todo o tempo o erótico. Eros morreu com Deus. O que restou foi uma difusa nostalgia do amor. Ouvimos então canções que tentam falar de alguma coisa tão distante como um dinossauro, o tal amor. O homem é o mesmo. Debaixo de tanta teoria continuamos tentando harmonizar o desejo com o dever. E imaginamos que o amor romantico seja essa saída. Observe bem, Imaginamos pois. Estamos proibidos, hoje, de crer que imaginar é a verdade do amor. Amor que não se imagina, amor real é pornografia e pornografia é o retorno do bicho.
  O que nos faz humanos é a imaginação. Sim, pode chamar de ilusão. Nós a criamos, ela é nossa, humana.
  Admirável Mundo Antigo, quando irás voltar? Nunca mais, essa a nossa maior dor.

Thelma Schoonmaker, A Matter Of Life And Death (+playlist)



leia e escreva já!

O EROS DA VIDA

   Vivemos então essa divisão. De um lado o selvagem, um homem que deseja e vai atrás daquilo que quer, e de outro aquele que para poder viver dentro da sociedade aprendeu a controlar seu impulso. Rousseau sabe e fala: Não temos como saber o que seria esse desejo primordial. O homem original está tão distante de nós que é impossível sequer imaginá-lo. O que podemos saber é que a religião, a politica e todo dogma é um modo de civilizar esse homem. Mas há um exagero nisso. Ao transformarmos religião em igreja matamos todo impulso puro e criativo do ser, ao transformarmos politica em fanatismo fazemos o mesmo e assim também acontece com todo dogma, seja científico, filosófico ou educacional.
   A criança é puro egoísmo. Ele quer e quer agora. Ela quer proteção e comida e provávelmente esses são nossos impulsos mais fortes. Corpo. Na puberdade irrompe o sexo e a cabeça passa a pensar TODO O TEMPO em sexo. É nesse momento que a educação se mostra mais desastrosa. No momento em que tudo no jovem se volta para os mistérios do amor e do sexo, tudo o que se lhe oferece é conhecimento frio e anti-sexual. ( Um adendo à Rousseau é dizer que no século XXI o que se oferece é pornografia, violência e educação sexual dada por frios mestres assexuados ). Voltando a Rousseau, toda educação nessa idade deveria vir acompanhada do conhecimento da sedução. Mestres DEVEM ser sedutores. Carismáticos, envolventes, o aluno precisa compreender o mecanismo do agrado, do prazer, do que seja conviver civilizadamente com o desejo. Isso é o erotismo.
   O erótico é o meio de se tentar harmonizar o homem primitivo ( um estuprador ) com o homem civilizado ( um pensador ). No ritual do deus Eros, em todo discurso erótico ( e não existe erotismo sem o dominio do discurso de Eros ), o que se vê é o prazer de um acordo, o acordo de paz entre o muito básico e o muito complexo, o simples e o confuso, aquilo que é pura carne e aquilo que é espírito. É na puberdade que o jovem tem a chance de criar seu espírito, voltar-se para as coisas da alma e SUBLIMAR seu desejo ( não no ralo sentido de Freud, mas no sentido do SUBLIME, ou seja, transformar o banal em algo individual ). Pois Eros cobra que cada um crie e dê vida a sua individualidade e nada é mais contrário a uniformização do tempo moderno.
   Pois o homem erótico não se conforma a ser soldado, a ser um membro da igreja, a ser um simples caso da ciência. Ele se cria, se faz e se dá ao amor. Do seu modo. Dentro do possível. A pobreza do discurso cria homens sem erotismo, presos dentro da banalidade do ordinário. 
   Allan Bloom usa 130 páginas para falar dessas teorias de Jean-Jacques Rousseau. E deixa claro que não concorda necessariamente com todas. Mas fica muito claro que Bloom concorda com aquilo que aqui transcrevo. O livro se chama AMOR E AMIZADE e precisa ser lido. Ainda não o terminei, leio-o com vagar numa relação erótica com o texto e o papel.
  Sublime, não?

EROTISMO, ALLAN BLOOM, ROUSSEAU

   Voce pode fazer uma pesquisa e divulgar os dados de quantas trepadas a população dá em média por mês. Voce pode até mesmo tabular quem teve orgasmo. Quem é hetero, gay e bi. Mas voce não tem como perguntar ou responder NADA sobre o erotismo. Sexo se aplica a pesquisa científica, erotismo nunca. Porque sexo pode ser reduzido ao ato sexual. Erotismo é o que?
  No mundo da ditadura cientifica, o sexo, como tudo o mais, é reduzido. A ciência trabalha com quantidades e com medidas, o sexo pode ser simplificado ao máximo e reduzido ao que se pode medir e contar matematicamente. O erotismo não. Na verdade, no mundo da ciência, Eros nem sequer existe.
  O relatório Kinsey começou o trabalho de morte do erotismo. O sexo foi colocado a luz e tudo se reduziu ao comum. Todos passaram a pensar em ser como todos. Se vinte por cento são assim, eu também posso ser assim. Mais, o homem jogou o erotismo no lixo e passou a seguir a massa: saudável é ter cinco orgasmos? Eu os terei !
  Freud nos brochou antes. Pensou que criatividade fosse sublimação, quando na verdade criatividade é ser humano. Sublimação é palavra criada por Rousseau e seu sentido vem de sublime. Sublime é o ato, apenas e tão somente humano, de se tomar um ato físico ou uma coisa e torná-la sublime, mais do que aquilo que ela é na natureza. É quando o homem se apropria de algo natural e o torna humano. Seja dando contornos de deus ao mar, sendo fazendo de mármore uma obra de arte ou transformando uma necessidade física, como o sexo, em algo sublime, o erotismo.
  Nosso tempo vive o capítulo final deserotização do homem. Mulheres esqueléticas ou bombadas, homens meninos ou frágeis demais. Pornografia. Aulas de sexo seguro. O orgasmo discutido com a mãe no café da manhã. Esquecemos que o sexo nivela os homens aos bichos, e que o erotismo nos define.
   O bicho trepa. Com qualquer fêmea. O homem imagina. Pensa ser aquela mulher a única. A única que poderá lhe dar prazer verdadeiro. E para ela, ele cria música, poema e luta para ser mais sedutor. Ao contrário dos bichos, o gozo passa a ser secundário, toda a história é um grande prazer. Ele imagina e a imaginação é o homem. 
   Rousseau antecipa o amor burguês. O amor viria a ser um contrato. Muito mais próximo de um advogado que de um poeta. Ele sabia que Eros era questão de amor-próprio. Que o homem vivia pelos olhos dos outros, que o amor-próprio dependia do que ele pensa que os outros pensam de si. E que no erotismo o homem joga com aquilo que ele imagina que ela seja e aquilo que ele imagina que ela sente por ele. Politica enfim. Rousseau sabia que quando a politica morresse o erotismo iria junto. ( Hoje politica é pornografia. Há quanto tempo não se ouve um discurso que signifique alguma coisa? ). 
   Sedução é dar espaço a que o outro imagine algo sobre nós.
   ( Há quanto voce não vê um belo beijo em um filme? ).
   Animais vivem no amor -por-si. Amor por sobreviver e sem levar em conta a opinião dos outros sobre ele. Um cachorro não pensa no que a cadela acha ou sente sobre ele. Nós sim. Até quando? 
   Nossos mestres em amor são cantores de funk. Ou intelectuais que nada sabem sobre Eros. Sabem apenas teorias reducionistas que mecanizam tudo. Como faz a pornografia. 
   O amor deve ser ensinado por aquele que ama. Simples assim. Pelos seres eróticos, pelos grandes amantes, pelos sedutores. 
   PS- Não à toa o melhor livro sobre erotismo que já li foi escrito por Frank Sinatra.

O MESMO HOMEM. NO AMOR E NA GUERRA. EVELYN WAUGH E GEORGE ORWELL, BIO ESCRITA POR DAVID LEBEDOFF.

   George Orwell era um solitário. Um socialista que odiava o comunismo. Para os comunistas era então um direitista e para os conservadores era um comuna. Ateu, era excluído do hall dos crentes, mas defendia a igreja e assim era ridicularizado pelos ateus. De origem classe média, culto, sotaque e modos de cavalheiro, era um estranho entre os pobres e um plebeu entre os ricos. Viveu uma infância muito feliz, segundo ele conheceu o paraíso, e a partir da adolescência conheceu a crueldade do sistema de classes inglês. Foi estudar em Eton, a mais exclusiva e elitista das escolas inglesas. E lá foi tratado como subalterno. Entenda, o pai era bem de vida, mas não tinha origem aristocrata. Orwell, que na verdade se chama Eric Blair, passou a lutar toda a vida contra esse sistema. 
  Não quis Oxford e foi servir na Birmânia. Em solidão, no meio da selva, cinco anos. Pegou tuberculose. Voltou e vagabundeou pela Europa. Lavava copos e restaurantes de luxo. Escolheu ser pobre. Foi voluntário na revolução espanhola. Ao contrário de Heminguay, lutou de verdade. Se feriu. E percebeu que os comunistas eram tão ruins quanto Franco. Foi perseguido pelos comunas espanhóis por ser socialista. Conseguiu fugir com a esposa. Milagrosamente. 
  Ainda conseguia tempo para ler uma média de quatro livros por semana. Entre seus favoritos estava Waugh. Começou a escrever. Não conseguia vender. Artigos que estão entre os melhores de sempre. Se isolou em casa de campo. Lança A Revolução dos Bichos. Enorme sucesso. Perde a esposa para a doença. Logo depois de terem adotado um filho. Com esse filho, que ele adora, vai para uma ilha da Escócia. Uma ilha fria, agreste, deserta. Sua tuberculose, claro, piora. Lá escreve 1984. 
  O filho brinca livremente. É feliz. Volta após 4 anos para Londres. O novo livro vende aos milhões. Morre de tuberculose aos 46 anos. Seu filho se torna fazendeiro. Se forma em agricultura. É feliz. E tem orgulho de seu pai. Orwell escolheu a vida que teve e por isso foi realizado. Jamais se arrependeu de nada. Quis viver na "realidade social", foi 24 horas por dia um "homem politico", e escreveu, segundo Lebedoff, um livro muito melhor que Admirável Mundo Novo, de Huxley ( que foi seu professor em Eton ). Orwell antecipou o que seria o mundo dominado pela esquerda. Huxley antecipou o mundo da direita. Nosso mundo atual é uma mistura dos dois. 
  Orwell, como Waugh, amava o passado, detestava o presente e temia o futuro. Mesmo sendo ateu, Orwell pensava que toda a civilização ocidental fora edificada pelo cristianismo. Se a igreja cristã fosse retirada do mundo, se os homens parassem de se guiar pela esperança em outra vida e pela transcendência, se eles passassem a ver a vida como apenas um eterno tempo presente, sem futuro além e sem passado relevante, a moral se tornaria relativa e tudo seria reduzido a satisfação de desejos corporais imediatos. Viver se tornaria satisfazer o corpo. A vida seria estar vivo e nada mais que isso. Cada ato se faria um ato gratuito. Um instante sem história e sem repercussão. A queda de Deus e do espírito faria da sociedade um bazar. Onde tudo vale em nome do prazer. 
  Orwell nunca deixa de apontar os crimes da igreja, mas diz que sem ela esses crimes, como mostrou o nazismo, seriam ainda piores. Sem a ideia de vida maior, de pós e antes da vida, o homem se vê vazio, entediado e sem porque. Orwell, que não tinha fé, se via assim? Não, porque ele abraçava a moral racional da igreja. A justiça, o bem e a bondade, sem relativismo algum. 
  Vale dizer que mesmo muito doente Orwell fez de tudo para lutar na segunda-guerra. E como Waugh, ele percebeu que apesar de derrotados, o mundo do pós-guerra seria o mundo do totalitarismo. Falarei mais dessa verdade após falar de Waugh, alguém tão diferente de Orwell e que Lebedoff vê como um igual.
  Evelyn Waugh ( Evelyn na Inglaterra é nome masculino ), nasceu também em familia classe média. Mas não foi para Eton. Foi para um colégio pouca coisa pior. Seus modos não eram tão bons quanto os de Orwell e sempre foi um aluno ruim. Sarcástico, ele era o baixinho enfezado. Lider de gangue. Entrou em Oxford e lá ele se deslumbrou. Decidiu ser o "homem mais alta classe da Inglaterra". Fez amizades com as familias mais exclusivas, se vestia como um dandy, sabia tudo sobre vinhos, cavalos e tradição. Festas e bebidas. A imagem que se tem de Oxford se deve a Waugh. E Oxford só foi Oxford nos tempos de Waugh. Jovens de sangue azul, cheios de dinheiro, dando festas e fazendo de tudo para não se entediar.
  Festa de Mozart, festa dos travestis, um dia na Idade média, festa de mendigos... Arruaças de rua, brigas, festas que duravam quatro dias inteiros. Waugh achou que era um deles. Mas um dia um professor, irritado, disse a verdade. Que ele não passava de um "homem de negócios", um vulgar inferior. No mundo de Oxford de 1920, nada era pior que gente que lidava com dinheiro. Waugh ficou tão bravo que passou a perseguir esse professor. Acabou com a sanidade dele. Sério! Esse professor acabou no hospicio.
  Devo dizer que antes de tudo isso Waugh tentou lutar na primeira guerra. Mas tinha apenas 14 anos!
  Ao contrário de Orwell, Evelyn Waugh se tornou famoso muito jovem e logo em seu primeiro livro. Para Lebedoff ( para mim também ), ele é o melhor escritor inglês do século XX. Em seus livros ele satiriza o mundo. Usando o humor ( menos em Brideshead, seu livro sério ), ele desmascara o novo mundo, mundo onde o dinheiro e a vaidade imperam. Ou seja, são os mesmos alvos de Orwell mas usando outra arma. Todos os livros de Waugh vendem muito bem e sua fama atinge o mundo inteiro. Mas eu disse que ele queria ser o mais alta-classe dos ingleses. Conseguiu?
  Sim. Ele desejou e conseguiu se casar com a herdeira do brasão mais exclusivo do país, uma autêntica Herbert. Com ela teve seis filhos e foi um pai ausente porém amado. Muito rico, se tornou a imagem do inglês dono de terras, gordo, de tweed, cachimbo e sorriso. E em Brideshead adivinhou, como Orwell, que o mundo que conhecera fora vencido pelo totalitarismo. 
  O mundo que eles conheceram era injusto, eles lutaram contra a divisão de classes. Mas esse mundo tinha uma vantagem, ele tinha alvos claros e se podia lutar contra eles por serem claramente injustos. No novo mundo os alvos seriam camuflados e o conformismo iria imperar. Pão e circo. Seria um mundo em que o objetivo único seria satisfazer o corpo e distrair  a mente. Acalmados, indolentes, as pessoas passariam a confundir felicidade com prazer. 
  E quais seriam os lideres? Aí vem o pior, Seriam os rancorosos. Os invejosos, os revanchistas. A classe, terrível para Orwell e para Waugh, dos especialistas. Gente "competente"que saberia tudo de administração, de economia, de sociologia, e nada sobre a vida. Se um aristocrata usufruia a injusta segurança de nascer em berço de ouro, ele ao menos tinha a vantagem da honra, de não poder sujar o nome da familia e de sentir um certo dever a sua tradição. No novo mundo a tradição e o dever são abolidos. Mata-se o passado e o dever é apenas aquele de produzir mais prazer. Sem passado não se tem lealdade a nada e a ninguém. O especialista deve contas apenas a sua ciência, nunca a gente real. É o mundo totalitário, onde tudo é feito pelo 'BEM"de todos, onde o AMOR impera. Como lutar contra burocratas sem rosto? Como ir contra quem só fala em bem e amor? Como inflamar uma população que não pode abrir mão de seus brinquedos? Eis o mundo que Orwell, Waugh e Huxley intuiram. 
  Devo ainda dizer que ao contrário de Orwell, Waugh se converteu ao catolicismo, o que na Inglaterra é um ato bastante incomum. Ele acreditava em Deus, e como Orwell, pensava que o começo do fim se dera com a morte da igreja. Sem os deveres para com Deus e sem a certeza de uma outra vida, a humanidade se tornaria nada mais que máquina de repetição. Atos do dia a dia sem consequência e sem história nenhuma. Nada de sofrimento real, nenhuma possibilidade de crescimento e de felicidade. 
  David Lebedoff, professor americano, lutador contra o politicamente correto, escreve simples, escreve bem e comenta sem medo. O livro me deu um prazer do qual já sinto falta. Filho que sou de minha época, não tenho a coragem de ser como Orwell e nem a fé para ser como Waugh. Indolente, entediado e covarde, passo pelos dias, todos o mesmo, sem um só instante de dor ou de felicidade. Mais ou menos forever.
  Mas ainda penso. 

DEZ FRASES IRRITANTES ( E NÃO VERDADEIRAS? )

   Eu tive um amigo que uma vez "mandou"eu parar de falar em politica. Segundo ele, eu não tinha esse direito por não ser de esquerda. Segundo ele, só quem é de esquerda pode falar de politica. Porque só quem é de esquerda sabe a verdade.
   Respondi que ele falava como os fanáticos religiosos que ele tanto esculhamba. Tipo, "só os escolhidos irão pro céu". Ele riu com desprezo ( esquerdistas são mestres em desprezar tudo aquilo que não conhecem ). Creio que hoje, anos depois, ele deve continuar relendo as mesmas cartilhas e repetindo tudo aquilo em que ele foi catequizado. Ele evita pensar. Dá trabalho. E trabalho duro nunca foi coisa de gente da esquerda. Eles pensam. Pensam que pensam. 
   Listo agora dez coisas que irritavam esse meu amigo. Nunca direi que são dez verdades, porque ao contrário dele, eu admito que não sou dono de verdade nenhuma. 
  
   1-  Sem os EUA estaríamos sob uma ditadura nazi, comuna ou islâmica. 
   2-  No mundo nazi, comuna ou islamita, voce nunca poderia defender o casamento gay, a droga ou a informação livre.
   3-  Todo ser humano quer se destacar da massa, seja tentando ser o mais bonito, mais inteligente ou liderando os fracos.
   4-  Todo revolucionário é totalmente surdo.
   5-  Socialismo é uma forma de capitalismo envergonhado. O que existe é capitalismo e comunismo. O resto é perfume.
   6-  Violência é violência, não importa o objetivo. E toda violência gera mais violência.
   7-  Cuba pode até ser pobre por causa do bloqueio americano, mas os EUA nunca pediram para Fidel fuzilar gays, dissidentes e pessoas que tentam sair da ilha.
   8-  Comunismo é a divisão da mediocridade entre os ressentidos.
   9-  Me mostre um artista de esquerda que eu te mostrarei um invejoso.
   10- Instinto versus domesticação. O capitalismo educa o instinto e faz dele uma força de trabalho, o comunismo tenta matar o instinto e fazer dele castração dócil. Educar não é domesticar, educar é despertar o pensamento.
   11-  ( Sou ruim de contas ), Todo reacionário é mais feliz.
 

BERLIN, LOU REED, A SEDUÇÃO DO QUE TE DÁ MEDO.

Berlin não termina nunca...Porque ele diz as coisas mais horríveis da forma mais bela possível. Suicídio, genocidio, infanticidio, Lou fala horrores com sua voz fria, sem nenhuma emoção. Lou recorda suas sessões de eletrochoque, tardes de pesadelo ordenadas por seu pai. Lou consegue fazer do pesadelo, arte e dessa arte beleza.
Alguma coisa pode ser mais bela que The Kids? Alguma coisa pode ser pior? How Do You Think It Feels? O disco é um pesadelo sedutor. É escuro é úmido e é gelado.
Luxuriante. Caroline se mata e agora não mais sentirá amor por quem a surrava. Oh Lou...Oh Jim...
O disco começa em dissonancias jazzistas e termina em orquestrações de amor nas nuvens. Bob Ezrin produziu daquele modo apocalíptico no qual ele era mestre. Jack Bruce, Steve Hunter, Dick Wagner estão aqui. E Lou canta o refrão de Frankenstein: Sad Song...
Após o sucesso de Transformer ele quis assassinar sua carreira e fez Berlin. E conseguiu. Os criticos de então o arrasaram. Os mesmos que destruíram Led II e discos de Eno. Os críticos dos anos 80 botaram tudo em seu devido lugar, para sempre. Berlin é uma obra-prima da mais pura arte moderna. E é um lixo.
Berlin nunca termina. Lou era um vampiro que está por aí sugando sangue de meninos.
Como se pode criar tanta vida falando de morte? Berlin nunca termina...O reencontro agora, trinta anos depois da última vez em que o escutara. Tinha medo dele. E o medo sai e sinto o que eu não pensava querer sentir. A sedução. Berlin.
Merda. Porque tudo que é melhor custa tanto?

BERKELEY E A REALIDADE

   George Berkeley fez um estrago enorme na minha cabeça quando o li pela primeira vez. Ele bateu na grande dúvida que sempre tive: Afinal, existe a realidade? Grosso modo o que Berkeley diz é que essa coisa que chamamos de realidade é criada em nossa mente e que nossa mente pode ser manipulada. Vemos aquilo que nosso tempo nos permite ver. Isso até a época de Berkeley, após o totalitarismo ( invenção do século XX ) vemos o que desejam que vejamos.
  Se levarmos essa teoria ao extremo podemos dizer que houve um tempo em que podíamos ver anjos e fantasmas e que agora essas entidades não mais fazem parte de nós. Foram tiradas da realidade. Não estou defendendo a ideia de que anjos ou fantasmas são reais, estou dizendo que eles foram um dia tão reais quanto hoje é real o Taleban ou o Buraco Negro. Nunca vi nenhum dos dois, mas fazem parte de nossa realidade.
  Se Sócrates, Shakespeare ou mesmo Nietzsche caíssem neste nosso mundo, agora, quantas coisas que nos são absolutamente reais não seriam irreais para eles? E quantas coisas eles perceberiam que não mais conseguimos notar? Essa teoria de Berkeley é basicamente anti-democrática também. Pois ela postula que no fundo a minha realidade sempre será diferente da sua. O que vejo, percebo e tomo como certo é diferente de tudo o que voce percebe. O gosto de uma maçã para mim será sempre o gosto da maçã para mim. Eu jamais saberei qual a sua experiência da maçã. E se formos mais longe direi que o modo como amo, detesto ou sofro jamais poderá ser dividido com alguém. A realidade em que vivo é minha, e ELA É TÃO FALSA COMO É A SUA E A DE TODOS.
  Um nó.
  Tudo isso me foi recordado num excelente livro que estou lendo que entrelaça a biografia dos dois mais interessantes autores ingleses do século XX, Evelyn Waugh e George Orwell. Ambos, apesar de aparentemente tão opostos, tinham essa visão de que a realidade não pode ser conhecida. Ambos detestavam o futuro e espezinhavam o presente. Um deles usava o humor mais cruel possível, o outro o pesadelo mais asfixiante. Os dois liam Berkeley.
  Conto mais um dia desses.

RAUL SEIXAS NO COLEGIO OBJETIVO 1983 COMPLETO PARTE 2/4



leia e escreva já!

CONTOS DE RAYMOND CARVER

   Muitos filmes foram feitos em cima de textos de Carver. E pelo menos um deles é uma obra-prima. Dizem que grandes livros não dão grandes filmes porque para filmar voce tem de cortar tanto que o estilo e a complexidade vão pro lixo. Carver, assim como Elmore Leonard, serve bem ao cinema porque na adaptação nada há pra se cortar. O texto é tão enxuto que na verdade o roteirista precisa acrescentar coisas.
  Eu leio Elmore com prazer. Como leio Chandler e Hammett, que também ficam bem em filmes. Patricia Highsmith too. Mas Carver é um pé no saco! Seus contos são tão esqueléticos que cansam por excesso de facilidade. Os personagens são tipos, nunca gente, e as situações são vistas como se as pessoas fossem medíocres atores cool. Para Carver as pessoas são manequins animados.
  A impressão é a de que seja muito fácil escrever como Carver. Basta descrever, sem detalhes, aquilo que voce vê num bar, na rua ou na escola. Daí voce imagina o que esse cara do bar, da rua ou da escola faz em casa. Nada de especial, tudo bem óbvio. Bota uns diálogos banais e chama isso de minimalismo. Tá pronto pra imprimir. Sam Shepard faz igual. Dentre dezenas de milhares de outros.
  Eu poderia fazer livros como os de Carver. O problema é que eu me entediaria. Seria como ter de viver numa mina de carvão. Trabalho escravo que iria contra tudo que eu acredito. Nada pode ser mais anti-Henry James que Carver. Porque mesmo que ele seja um crítico do vazio, mesmo que ele esteja tirando uma da mediocridade da vida, ele faz isso usando meios vazios e medíocres. Quem quer saber do regime de uma garçonete ou da conversa entre pai e filho que nada têm a dizer?
  Certos livros são de calar!

C.S.LEWIS, DO ATEÍSMO ÀS TERRAS DE NÁRNIA, BY ALISTER MCGRATH

    Leio com surpreendente prazer a bio deste escritor, professor e famoso apologista inglês. Hoje, com certeza, mais famoso por sua série de livros infantis sobre Nárnia, Lewis foi durante os anos 40 e 50 uma celebridade na Inglaterra e nos EUA. 
   Nasceu em lar de razoável conforto e logo cedo perdeu a mãe. Mesmo assim viveu uma bela infância, livre, gasta em brincadeiras com o irmão. O pai lhe deu o amor aos livros, mas os dois nunca se deram bem. Lewis enfrenta as trincheiras na Primeira Guerra e é ferido. Estuda em Oxford e depois se torna professor de literatura inglesa na mesma escola. Sua predileção é pela idade média e renascença. Faz amizade com Tolkien, que também leciona em Oxford. Ateu exaltado, racionalista, lentamente se converte ao cristianismo. Como? 
  Na verdade nada acontece de espetacular. Lewis se torna cristão por questões literárias. Ele vê Deus como um tipo de sol. Com a presença de Deus a realidade se ilumina, as coisas ficam mais claras e as obras de arte são melhor entendidas. Lewis diz que a absoluta falta de fé leva a arte ao vazio. Obras sem vida, frias e mal executadas, personagens ralos, textos que falam apenas do autor que os escreve, textos mortos. 
  Na Segunda Guerra ele faz uma série de programas para a BBC. No rádio se torna famoso. Fala sobre Deus às pessoas, aos soldados. Lança livros sobre religião, sua fé e a do cristianismo "puro e simples", independente de igrejas. Sua fé e sua fama fazem dele um solitário em Oxford. Perde a amizade de Tolkien, que se sente roubado quando ele lança a saga sobre Nárnia, que estoura em vendas nos anos 50. Sai de Oxford e é chamado por Cambridge. Morre em 1963, no mesmo dia em que Kennedy é assassinado. Crítico feroz dos tempos modernos, é logo esquecido nos anos 60, visto como um velho inglês conservador e ultrapassado. Renasce nos anos 90. Volta a moda no século XXI.
  Alister McGrath escreve de modo leve, mas nunca tolo. Também professor, em Oxford, tem flagrante carinho por Lewis, mas não deixa de demonstrar as falhas em seu pensamento. Lewis tenta demonstrar que a razão foi um dia irmã da criatividade. As duas se separaram logo depois da renascença e com o correr do tempo se fizeram inimigas. Essa a grande tragédia da modernidade. A razão deve ser aliada da imaginação e saber que criar é saber. A verdade está naquilo que imaginamos. Mitos, lendas, sagas, sinais de verdades, pistas de sabedoria, modos de tornar claro aquilo que vai além da miopia da razão.
  Devemos conhecer aquilo que não conhecemos. Ler o que não lemos, ir onde não fomos, tomar contato com formas alternativas de pensar e de sentir. AUMENTAR NOSSA VISÃO. IR ALÉM DA NOSSA JANELA.
  Cabe a imaginação reorganizar a realidade, colocar o real em novo arranjo e assim torná-lo inteligivel. Só fala em Mundo sem Sentido aquele que não consegue ou não quer ver a realidade iluminada da vida. 
  O mundo faz sentido para Lewis. Deus o fez ver o sentido. Iluminou a vida e lhe deu a liberdade de criar. Lewis fez mapas que nos ajudam a perceber onde estamos e de onde viemos. Se ele estava certo ou errado jamais o preocupou. Porque ele criou e nessa criação achou a vida real.
  O que mais uma filosofia pode nos dar?

O TEMPO REDESCOBERTO, PROUST EM FILME DE RAOUL RUIZ

   Proust cura. As palavras em vertigens e as páginas que se embaralham fazem com que percebamos, sem perceber não é ? , que tudo permanece em lugar sempre vivo chamado memória. Cada dia e toda pessoas está para sempre aqui e em lugar nenhum, portanto em todo lugar. O que se vive é decisivo. Como filmar isso? 
  Schlondorff filmou em 1988 e fez um dos piores filmes de sempre. Confundiu Proust com esnobismo mórbido e destruiu o que era um monumento. Visconti acalentou a ideia de o filmar, mas morreu sem achar o momento certo dentro de seu tempo. Renoir, Ophuls, Resnais, todos poderiam ter levado o gênio de Marcel para as telas. E então assisto as seis da manhã de um sábado a versão de Raoul Ruiz, o diretor chileno que tanto insistiu que virou francês. É Proust ? Não, não é Proust, e essa é a vitória de Ruiz. Não é mas poderia ter sido se Marcel fosse menor. O rastro da tinta e da ansiedade de Proust está no filme, ( que é de uma beleza plástica tão extremada que poderia enjoar. Não enjoa. ), Ruiz optou por misturar as cartas e joga-las todas de uma vez sobre a mesa que é nossa mente. Não tente seguir a história, se deixe ir nas sensações impressionistas que flutuam frente nossos olhos como se fossem sonhos nossos.
  Quem disse que grandes filmes são como sonhos? Que lembramos deles como se tivéssemos sonhado aquele filme? Eis um filme que é todo sonho. As festas e as roupas, as casas e as taças, não podem ser reais. Mais que presentes elas vivem dentro de nós. Como Proust sabia, aquilo que vive dentro nunca perece pois não obedece a ordem do que mora fora.
  John Malkovich beira o milagre. Charlus como Charlus foi imaginado. Mas todo o elenco faz milagres. A fotografia de Ricardo Aronovich também. 
  Claro, o filme explicita a politica que Proust sugere e nunca escancara. E encolhe as delicadezas da infância sagrada. Cadê Swann que não o encontro?
  Eu reli Proust a cerca de quatro anos e ele é um dos livros que me consolou pela perda de um pai. O tempo mora onde? No fluxo infinito de rostos e de frases a gente se perde e percebe que tudo está. E tudo pode ser. Indo. A hipnose se opera para quem se deixa ir e fico rodopiando entre as linhas negras e a corrente desse rio que fala. E canta.
  O filme termina em mar.
  Pra sempre.
  Se voce é poeta sabe.

WILKER

   José Wilker foi louco. Veja bem, não o tipo de louco que temos hoje. Ele não era o cara que briga em bar ou que se vicia em pó. Ele tinha atitude. E ator com atitude é cada vez mais raro.
   Sempre remou contra a maré. No teatro ele arrasou, e no cinema encontrou seu meio. Conseguia dar uma dose de cinismo esperto até a tola novela em que estivesse. Misturava elegância com doideira e charme com perigo. Foi um grande. Em país carente de estrelas, foi nosso Jack Nicholson e nosso Warren Beaty. 
  Fará imensa falta e sinto pena das gerações que não o conhecerão. É mais um que me educou. Me ensinou a vestir, falar e a não ser besta.
  O palco agora é noutro lugar.

IMAGINAÇÃO

   O amor que sinto por minha mãe é inquestionável. E ela as vezes, triste ou doente, poderia ser ajudada por certas coisas que eu poderia fazer ou falar. Mas ela pensa que me conhece, e na imagem formada que ela tem de mim, um homem frio, distante, indiferente, se fecha a minha palavra. Não posso a ajudar porque ela não me escuta. Quando tento falar ela não me entende, não me ouve, não me quer por perto. 
  E espero então, só posso esperar que um dia ela olhe e me veja e entenda aquilo que posso lhe dar: Ajuda.
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  Ando lendo a bio de  Lewis. E ele fala de como entende o amor de Deus. 
  Acho que o entendo.
  Jamais terei a certeza.

  A vida pode ser o desejo de poder. A vida pode ser o instinto sexual. Mas eu penso que não. A vida é ansiedade. A ânsia por algo que conhecemos e não conseguimos ver. 
  Não somos como bichos. Mas podemos amar os bichos. Eles nunca nos ajudarão. E se podemos os ajudar, temos o dever de os ajudar.
  O homem pode ser cruel. A vida pode ser um inferno. Mas se conseguimos imaginar a bondade, se pudermos sentir saudades da paz, então temos o dever moral de crer na paz e na bondade. Se um dia criamos a moral, temos a missão de a afirmar.
  A vida não é feita de relativismos. Existe o mal, existe o bem. E fora do futil jogo de palavras sabemos o que seja bom e o que seja mal. Como sabemos o que é a paz, a beleza e a felicidade. Mesmo que estejamos exilados.
  
  Tenho me tornado um babaca religioso. Porque eu não sei. Mas ser babaca é hoje a maior das coragens. Não é cool ser babaca. E nem é fácil.
  
  Enquanto houver violência no mundo não haverá sono. 
  
  Aquilo que se imagina foi, é agora ou será um dia.
  Viver é imaginar a vida que se vive.
  O resto é morte.

A COLEÇÃO DE DVDS

   Foram anos incríveis. Desde 2004 até 2010 vivi aquilo que a geração de Godard viveu nos anos pós-guerra, uma avalanche de filmes que me educaram para o resto da vida. Foram os anos em que formei minha coleção de 3000 dvds, os anos em que realmente entendi o que o cinema poderia ser.
  Lewis diz que pelo fato de nos ser impossível conhecer o futuro, o único parâmetro que temos para avaliar o presente em que vivemos é conhecendo o passado. Se eu falo que tal filme é ótimo, falo isso em relação a algum outro filme, mas se esse outro filme tem como aquele outro a vantagem do frescor, de estar cercado de uma propaganda e de um bando de fãs, sua avaliação se torna quase impossível. Uma obra só pode ser avaliada com frieza se for comparada a ALGUMA OBRA JÁ ESTABELECIDA, QUE JÁ PASSOU PELO CRIVO DO TEMPO. Hoje minha cinefilia esfriou. Vejo menos filmes, fico menos comovido. Talvez eu já tenha visto todos os grandes filmes e só reste para mim a sorte, cada vez mais sovina, de encontrar em um ano um filme como A GRANDE BELEZA ou BRANCA DE NEVE.
  Nesses anos eu conheci tanta coisa! Primeiro foi todo o cinema americano dos anos 30. As comédias, os policiais. Depois os filmes noir dos anos 40. Então mergulhei em Bergman e pirei. Veio a coleção de Kurosawa e o neo-realismo italiano.
  Topei com os franceses: Clair, Carné e Cocteau. Depois Ophuls e Bresson. E Clouzot!!!  E Vigo !!!!  A Noite solene em que conheci e caí de amor por Powell. Foi tanta coisa mais! Foram anos de caça, de usufruir o melhor, de luxo e de calma. Mas agora sinto que a estrada foi percorrida. Sim, ainda tenho algum Powell, algum Bresson, algum Losey que não vi. Mas a tempestade, a chuva de uma obra-prima por noite passou. A doce febre baixou. Ficou uma saudade. 
  O cinema foi grande. O cinema ocasionalmente pode ser grande. Em frente...

UMA PÁGINA DE MEU DIÁRIO ( COMEÇO DE ABRIL DE 2014 )

O soco explodiu na minha mandíbula. Socos sempre aparecem como cometas, explodem e a gente não sabe de onde veio. Mas não caí, eu nunca desabo. Avancei sobre o cara e rindo disse que seu soco parecia um soco de menina. Ele ficou ainda mais louco e me deu um pontapé. Como disse, eu não caio. Disparei um desafio e me voltei de costas. Andei, devagar, para a sala da direção. Aturdidos, todos olhavam boquiabertos.
Depois que a policia chegou percebi um homem sentado ao canto. Sabia que o conhecia, de onde? Me aproximei a falei com ele. Era pai de um aluno. Viera ver a escola em fevereiro, e por acaso passara por lá essa noite. 
Uma professora me diz o que eu não sabia ( depois que esse homem se vai ), ela diz que o cara, um cara de 25 anos, quando eu me voltara de costas, pegar um skate e fora para cima de mim, transtornado. Ele ia me acertar a nuca com a quina do skate. Mas o pai do aluno, que surgira dentro da escola ninguém sabe de onde, agarrara o cara e salvara minha cabeça. Talvez ele tenha salvo minha vida.
Se eu fosse um niilista eu diria: Merda.
Se eu fosse um existencialista: Destino que pedi.
Se eu fosse um freudiano: Desejo de punição.
Se eu fosse um jungiano: Arquétipo de cowboy.
Se eu fosse um poeta: Jogo de dados com a sorte.
Se eu fosse crente: Poder de Deus.
Mas eu sou eu: Foi um anjo que soprou os ouvidos daquele homem...

A LITERATURA E A MORTE DE DEUS

   Tenho lido a biografia de C.S.Lewis. Tenho um profundo amor por essa turma, esses ingleses que viveram entre 1890/1940, essa época de Eduardo, de George. Lewis tinha uma vida dupla, era um dos mais destacados professores de Oxford, um dos melhores críticos literários e talvez o melhor leitor de seu tempo. E ao mesmo tempo escrevia livros populares, é ele o autor da saga de Nárnia. Não por acaso, um de seus melhores amigos era outro grande professor de Oxford, J.R.R.Tolkien. O que seus contemporâneos não conseguiram entender é algo que nosso tempo, felizmente, consegue compreender um pouquinho melhor ( mas ainda com muita ignorância ), Lewis tentava unir a razão a criatividade, um casamento que foi um dia a regra entre artistas, mas que no mundo moderno havia sido cada vez mais raro. Ele e Tolkien procuravam salvar a literatura da asfixia onde ela se encontrava. Que asfixia era essa?
 Há que se dizer que nos seus primeiros trinta anos de vida foi Lewis um racionalista. Em seu diário ele diz que conseguia deixar cada coisa numa gaveta separada de seu cérebro. E mesmo a experiência na Primeira Guerra, ele esteve nas trincheiras, foi colocada em lugar seguro, longe da parte central de sua vida. 
 Ateu convicto, Lewis começou a perceber, em seus estudos literários, ele logo seria um dos melhores professores de literatura inglesa, que os autores ateus, céticos, os que colocavam todo campo espiritual de lado, tinham sempre uma prosa limitada. Esses escritores não conseguiam criar vida. Seus livros são como teatro de bonecos, os personagens jamais parecem reais, o que esses relatos transmitem é sempre a voz do autor, em total isolamento, lutando para criar vida, e sendo sempre derrotado. Porque isso acontece? Porque a criatividade desses escritores é sempre castrada, truncada, tristemente árida? E porque escritores como Sterne, Dickens, Dostoievski, Tolstoi, Balzac, Stendhal, conseguem criar tanta vida, tantos personagens que falam, agem, vivem como se fossem gente de carne e de osso? Mais que isso, porque esses escritores parecem ter tanto interesse na REALIDADE? Descrevem árvores, cidades, guerras, rostos, bichos e mares como se os conhecessem em profundidade. O que eles, assim como Huxley, Lawrence, Waugh, têm que Wolff ou Dreiser não têm?
 Lewis percebeu então que o que unia os autores criativos era a não negação do mundo espiritual. Para eles a ruptura entre razão e criatividade nunca se deu COMPLETAMENTE. Eles não dissecavam a criatividade, não extirpavam o maravilhoso da razão, em suma, e para seu espanto de ateu, eles jamais mataram Deus. Podiam blasfemar, duvidar, amaldiçoar, mas não ignoravam Deus. Lewis ficou aterrado ao se deparar com isso. Tendo Deus dentro de seu mundo, autores como Dante e Cervantes conseguiam criar como jorro, eram completamente férteis. Criar para eles não era um problema, era um dom divino, uma herança bendita. Com a morte de Deus a criação começa a ser tomada por algo de herança maldita. Ser criativo se torna uma ilusão, uma doença, um problema e deve assim ser analisado, domesticado ou negado. Como a religião, o homem da razão deve ENTENDER a criatividade a luz da razão e nunca com a colaboração da razão. Criação e razão se divorciam. Dois antagonistas. Toda criação deve ter um porque, um motivo, um símbolo. Nessa aridez a criatividade morre, daí a secura mórbida de tantos autores modernos. Fez-se com o ato criativo aquilo que se fez com o Criador. 
  O resto, que tem surpreendentes semelhanças com meu processo espiritual incompleto, deixo para futuro post.