POLIEDRO- MURILO MENDES

   Murilo Mendes é meu poeta brasileiro. Estou lendo sua obra em prosa. Mas a questão é: ele escreve prosa? Poliedro é verso? No livro ele descreve seres e coisas. Laranja, Bicho Preguiça. Uma Girafa. Tomate. E vai por aí.... Lembro criança. Sim, criança. Criança vê naturalmente e sem esforço o que o poeta vê aqui, em Poliedro. Eu fui criança bem criança e sei que é assim. O Limão é O Limão, único entre limões. E a gente o vê como aquilo que ele é: Coisa única e particular entre coisas que são todas únicas. A gente só coloca Tudo num lugar comum quando se cansa de ver e começa a ficar Velho. Enquanto o Olho é novo tudo é novo.
   Poliedro então voce lê vendo. Porque lendo voce olha as letras e vê nas palavras aquilo que está sendo visto por aquele que escreve. E fala. É prosa? Como pode ser prosa se a gente sente o cheiro das coisas e se cada palavra é investida de Vida? 
   Tem outros livros de Murilo aqui. Um é sobre lugares da Europa. Outro só para a Espanha. E um outro para a Itália. Ele viveu lá. E conheceu De Chirico, Arp, Moravia, Cocteau, Miró. 
   Murilo Mendes me pega porque ler Murilo é comer palavras. Elas surgem redondas e deslizam goela adentro. São ácidas, são doces, gordurosas ou refrescantes. Sempre frutas. Às vezes peixe. Nunca flores. Cozinheiro ele as prepara em caldeirão. Borbulham ao fogo da mente mineira. O aroma se espalha por montanhas e se deixa levar pelo vento. 
   Aqui no Caxingui eu as recolho. E engulo. E essas palavras-condimentos, que em outras cozinhas eram comida fria e esquecida, aqui nos Poliedros são novidades frescas das hortas e fazendas de Murilo Mendes. 
   Dizem os sábios que um dia, quando o homem era jovem ( agora somos velhos ), as palavras tinham essa força. Pouco usadas, ainda cantadas, elas eram veneradas por seu poder de trazer à mente-vida as coisas ausentes. Jogo de memória, feitiço, a palavra pedra fazia com que a pedra voltasse a sua presença anterior. Mas então a palavra desgastou-se e a pedra falada se fez apenas um som indistinto, pálida lembrança da lembrança de uma tradução do que fora um dia A Pedra. Pois Murilo faz da pedra vulgar de cada dia a Pedra original e jovem de tempos nunca perdidos. Com a voz e com a escrita ele dá vida.
   Poliedro é maternidade de sentidos.

SEXTA DA PAIXÃO, VAMOS AO SHOPPING COMPRAR UM CELULAR NOVO?

   Na TV Fátima Bernardes balança as cadeiras ao som do pagode. O mundo não pode parar, afinal, servos que somos do trabalho e do consumo, obedecemos às ordens do relógio e do calendário: Tempo de trabalhar, Tempo de Gastar. E isso é tudo. A vida resumida a dois atos que se complementam, o resto pode ser chamado de "sonho", "irrazão" ou "saudosismo".
   Antes desse tempo havia o calendário da religião. Éramos então servos da igreja e nosso tempo era por ela ditado. Hoje seria o dia do arrependimento, da dor, do silêncio. Pouco me importa se esse calendário era melhor ou pior, o fato é que não podemos mais ter um dia de recolhimento e de silêncio. É proibido. Penso outras coisas...
   Jovens "rebeldes" hoje irão gastar seu dinheiro em cerveja e no Lolla. Rebeldia né? Gastar mil reais, consumir bandas pop e posar de anti-capitalista. No dia em que era antes proibido ouvir música. Mais que "triste", o antigo mundo cristão condenava o consumo. O movimento ateu está intimamente ligado a "felicidade" de gastar. Situação insustentável de Roma: protestantes jamais tiveram problemas com o capital, católicos lidam com esse problema: como cultuar um Deus pobre e despojado e acumular bens ao mesmo tempo? 
   Houve o momento em que o centro de uma cidade era a catedral. Depois passou a ser o palácio do rei. No século XIX passa a ser o banco e a bolsa de valores. Hoje é o shopping center. Da catedral ao shopping center se fez um trajeto puramente racional. O trabalho e o consumo são os prazeres possíveis da razão. Sexta-Feira Santa não pode ser recolhimento. Tem de se gastar.
   Não creio, como Unamuno, em fé sem dúvida. Um ateu que não vacila ou um religioso que não faz exames de consciência nada valem. Estão mortos. ( E lembro da frase dita por Bob Dylan em 1965: Voces estão ocupados em morrer, eu me ocupo em nascer! ), bem, já fui um ateu radical, hoje sou um homem ocupado em tentar nascer. Não consigo crer. Não consigo descrer. É uma posição terrível. Conheço os dois mundos: O Ressentimento perante o crente, a raiva inconfessável que o ateu sente perante a certeza contente do crente, e o não querer discutir nada, o autoritarismo do carola. Me ocupo em nascer: Não me preocupo em conhecer Deus ou em saber sua não-existência. Procuro conhecer as coisas que são o que são. Tento não me fechar ao novo. E esse novo pode vir de 500 a/c ou de Toledo em 1600.  Questiono. E desprezo todo homem de certezas e de verdades.
   Um oriental não compreende como é possível um deus vir à Terra para se deixar matar. Porque ele não saiu da cruz e matou seus rivais? Eu também não sei. E pouco me importo em saber. O que me interessa é o fato de SER. Foi assim. Tendo Cristo existido ou não, foi assim. E é esse auto-sacrificio que chamamos de AMOR.  Jesus na cruz nega seu ego, sua máscara, e se dá em negação de si. Esse é um conceito oriental. Jesus nega a ilusão de seu Eu e se funde à vida morrendo. Surge na Páscoa revivido, livre de ilusão, unido ao Todo.  Até aí eu posso entender com minha razão. Daí para a frente preciso ter a humildade de confessar: Não sei, frase tão dificil de ser dita por um inteligentinho, Não sei. A razão entende o que é da razão. E o que não é de sua alçada que tenha a humildade de dizer sua incompetência.
   É Sexta-Feira Santa. Eu vou ouvir música, vou rir, vou gastar dinheiro. Mas pensem no que este dia já foi, no que poderia ser e naquilo que nos foi ROUBADO.  O recolhimento, a confissão, a negação, a fé.

ESPELHO DO MAR- JOSEPH CONRAD

   Conrad é sempre vasto. O texto é caudaloso, tempestuoso e filosófico. Ele navega entre vagalhões, desce, afunda, sobe, flui e se joga. Como pode um polonês ter tal dominio sobre o inglês? 
   Conrad foi marinheiro. Começa a escrever só aos 36 anos. Por vinte anos foi homem do mar. Saído da terra natal, fez-se súdito da marinha mercante inglesa. Conheceu o mundo: Àfrica, India, Taiti, Hawaii, EUA, Chile, Austrália. Mais que tudo, viu o mar.
   Ao fim da vida ele escreve este livro. Autobiografia que se recusa a falar de si-mesmo. Aqui ele conta o mar. Cada parte é um aspecto da vida marinheira: portos, estaleiros, velas, barcos novos, tempestades, âncoras, cordas, correntes, neblina, carga. Descreve. O livro é quase uma enciclopédia da vida ao mar. Termos técnicos, ele ensina. E pouco diz de si. 
   Na introdução ele conta: O livro é uma homenagem aos homens e aos barcos que ele conheceu no mar. Barcos a vela, nervosos, barcos que seguem o vento.
   Joseph Conrad define o que é arte: "Atividade em que não sabemos para onde vamos e se lá iremos chegar." Portanto, navegar a vela é arte, o navio a vapor não. O vapor segue horário, rota, rotina, ele é indústria e ciência exata. A vela é arte: improvisa, se arrisca, nunca sabe o que vai dar.
   Enigma Conrad. Um autor de livros de aventura que são tão complexos quanto Henry James e tão filosóficos quanto Thomas Mann. Para muitos é o maior escritor que a Inglaterra já teve. Polonês. Eslavo.
   Para quem ama o mar eis um livro obrigatório.

HOMENAGEM À ITÁLIA- PARTE DOIS

   Ingleses são comerciantes. Seu modo correto, sua voz parcimoniosa é aquela do vendedor de tecidos. Nunca pense que aquele modo reservado é timidez ou fineza. Eles são empregados de armarinhos: marinheiros mercantes, publicitários, astros pop: comerciantes. Já os franceses medem tudo. Esquadrinham o pensamento, dividem as ações. esperam colher novidades em data certa. São agricultores. A alma da França está sempre pensando nos melões, nos cogumelos e nas vagens. Alemães caçam. Farejam e armam o laço. Miram e atiram. Ficam quietos, aguardam. Pegam o javali e o transformam em linguiças. Portugueses são marinheiros-pescadores. Partem ao mar e desejam não ter ido. Sentem saudades. E nós, brasileiros, somos bandeirantes. Nosso sonho é topar com a mina de prata, nossa fortuna será a da sorte e não a do engenho. Exploramos. 
   E a Itália? 
   A Itália não é. Ela se afirma pela negação. E nesse "não sou e não quero" ela está sempre certa. Deixem a Itália ser a Itália! Ela não vende tecidos, os veste. Não planta, come. Jamais caça, pinta o bosque em telas coloridas. Não navega, canta ao mar. Não descobre minas, as inventa. Italianos....
   Doce Vida de Fellini.... cafés nas calçadas e máquinas estacionadas. Gente que flana, gente que vê. A fantasia como a maior e melhor das realidades. Vale a pena viver sem ser felliniano? Claro que não! A procura do amor e tudo terminando em ópera. 
   Não façam de Roma uma Berlin ! 
   Italianos pensam com a barriga: estômago, fígado e rins. Quem pode dizer que a vesícula é menos que a cabeça? Italianos são sempre grandes e trazem o rei na barriga.
   Uma questão: Existe a palavra simpatia na Inglaterra? Existe um alemão simpático? Para entender a Itália ou a latinidade é preciso saber o que seja "simpatia". Isso explica tudo, de Sophia Loren a Da Vinci, de Berlusconi a Monicelli e Totó. 
   Se o mundo fosse italiano e não americano teríamos a simpatia como conceito central e não a eficiência. Iríamos valorizar o prazer e não a vitória. Dolce far niente e jamais time is money.
   Há algo mais italiano que Mastroianni em Divórcio a Italiana? O homem latino apaixonado pela prima e tramando a morte da esposa. A vaidade do galo, sua comicidade hedonista. E o que falar de Gassman em Brancaleone? Os discursos pomposos que nada significam, a poesia de se crer em algo que se faz verdade. Os amigos de Eternos Desconhecidos, homens que perdem tudo por um prato de spaguetti.  ( Uma certeza: quem não ama o cinema italiano nada sabe de cinema. Pior, está morto para a vida: A Doce Vida ).
   Uvas na feira. E o pão estalando. O bambolear da morena farta que anda com seu vestido leve. Um elegante ajeita seu bigode. Roupas ao varal. Tomates e cheiro de limão. 
   Dante, Petrarca, Cavalcanti....O amor nasceu na Itália. O amor de Clara e Francisco, de Beatriz e Dante. Não qualquer amor. Não falo do amor grego que é amizade ou do amor celta que é familia. Falo de Amore. Que canta, espera, promete...
   A Itália nunca será Europa. Como a Grécia e a Irlanda, ela é uma ilha. E será sempre Roma: imperial, católica, auto-centrada, hedonista, vaidosa, contraditória, mafiosa. Lá a Mamma nunca ficará só.
   E quem pode dizer que eles não estão certos?
   Se voce sente que esquece o que seja Viver...Viva a Itália!

HANSON/ DIANE LANE/ DICKENS/ BIG WAVES/WESTERNS RUINS/ PARKER

   PARKER de Taylor Hackford com Jason Statham, Jennifer Lopez, Nick Nolte
Hackford é o tipo do profissional pra toda obra. Ele pouco se preocupa em "provar" sua inteligência ou seu talento artistico. Ele filma em função do roteiro, ele conta uma história, narra. Foi assim com Ray, com A Força do Destino ou Advogado do Diabo. Aqui, usando o carismático Statham, o que se narra é uma ótima história de malandragem. Ação, suspense e humor. Que mais voce quer? Eis o cinema ao estilo Curtiz, Hawks e Sturges. Pura eficiência. Vamos deixar de ser idiotas. Cinema também é e sobretudo é, circo. Amar o cinema é amar tudo o que ele tem de mais vital, de mais verdadeiro. A emoção, o objetivo alcançado, a alegria do fazer, a satisfação do público que ainda crê nessa arte tão mal entendida. Há quem procure num filme filosofia. Ora, deixe de ser preguiçoso e vá ler Kant ou Hegel. Há quem procure no cinema Anna Karenina ou Morte em Veneza. Deixe de ser preguiçoso e vá ler os livros de Mann e Tolstoi. Cinema é imagem em movimento, cinema é fantasia, magia que pode ser alegre, triste, perturbadora ou futil, mas que deve ser sempre movimento, cinema. Hawks, Hitchcock e Ford me ensinaram isso. Nota 8.
   O VALE DA VINGANÇA  de Richard Thorpe com Burt Lancaster e Robert Walker
Um faroeste ruim. E assim como acontece com musicais, um faroeste quando é ruim é o pior tipo de filme que há. O que é um faroeste ruim? É um filme sem ação, sem nada de mitológico, arrumadinho, limpo, higiênico. Burt está mal utilizado e o filme é um tédio. Nota 2.
   OBRIGADO A MATAR de Joseph H. Lewis com Randolph Scott
Outro mal faroeste. Nada acontece nesta pseudo-aventura sobre ex-matador agora da paz. Lewis foi um diretor B que os Cahiers adoravam. Ele não é aquilo que os franceses gostariam que fosse. Nota 1.
   HERANÇA SAGRADA de Douglas Sirk com Rock Hudson e Barbara Rush
Ross Hunter produz na Universal este western em que Hudson faz um indio pacifico. Sua luta é contra seus companheiros comanches, ainda em guerra. Sirk dirige e carrega no drama familiar, sua especialidade. A fotografia é belíssima. O filme acaba poe ser comum, indefinido entre ação e drama. Nota 4.
   O AMANTE DA RAINHA
Filme dinamarquês. Indicado ao Oscar 2012. Fala de um rei meio insano e de sua rainha inglesa, do bem. Ela se envolve com um médico moderninho. Hum... e daí? O filme é horrivelmente tolo. Nada consegue mostrar da época observada. O rei é um maluquinho de 2012, assim como a rainha parece saída de algum café de Copenhaguen. Pior é o médico: sociólogo da Vila Madalena, nada nele é de verdade. Iluministas não eram como esse bobinho, reis loucos não eram como esse tontinho e rainhas esclarecidas não se portavam como essa dondoca do Arouche. Queres conhecer de verdade a época retratada? Barry Lyndon de Kubrick ou Ligações Perigosas de Frears é vosso filme. Ah sim! Este filme poderia ser uma deleitosa fantasia como o Anna Karenina de Joe Wright, um show de técnica que nunca tenta ser retrato fiel de 1880. Mas esta tolice nada tem de deleite, muito menos de show. Zero.
   TUDO POR UM SONHO de Curtis Hanson e Michael Apted com Gerard Butler, Abigail Spencer
História real sobre um garoto dos anos 80 que se torna um surfista de big waves ( Maverick ). Na verdade o filme tem o esquema de um western: o veterano amargo que ensina o novato empolgado. Butler está bem como o rei veterano e anti-social das big waves. Ele produziu o filme com Hanson. É um filme modesto, simples e sincero. Nada de especial, mas tem cenas no mar incríveis e sem efeitos digitais. Hanson foi o grande diretor de Garotos Incríveis e de LA Confidential. Apted teve fama nos anos 80 de muito bom diretor. Porque dois diretores? Brigas? Filme ok. Nota 5.
   SOB O SOL DA TOSCANA de Audrey Wells com Diane Lane e Raoul Bova
Li o livro e gostei. O filme foge do livro, muda tudo. Coisas do cinema.... Lane, sempre adorável e bonita, ( a acompanho desde 1979!!! Ela começou em Pequeno Romance com Laurence Olivier aos 13 anos.... ) bem, aqui ela é uma mulher que leva um pé do marido e acaba na Itália, onde compra casa caindo aos pedaços. Assim como acontece com os livros de Peter Mayle, vemos uma americana em contato com uma cultura mais antiga, mais relax, muito mais sensual. O filme é lindo de se olhar e nunca ofende a inteligência. Nota 6.
   GRANDES ESPERANÇAS de Adolfo Cuáron com Ethan Hawke, Gwyneth Paltrow e Anne Bancroft
Assisti em 2000 e não gostei. Dei mais uma chance ontem...Em 1945 David Lean fez um belíssimo filme sobre este livro de Dickens. E quando Lean fazia um filme belo, bem, era um filme muito belo! Cuáron refilma o livro colocando-o no sul dos EUA nos tempos de hoje. Cuáron se humilha... coitado. O filme é muito, muito ruim. Pior ainda, ele é risivel. Quando a grande Anne Bancroft começa a dançar em sua casa de mulher louca tudo o que queremos fazer é rir e desligar o DVD. Robert de Niro também comparece como um ladrão fugitivo. Um dos maiores fiascos da história dos filmes.

   

POEMAS CLÁSSICOS CHINESES- LI BAI, DU FU, WANG WEI

   Fenômeno universal, como a música, a religião e a saga, não existe sociedade sem poesia. Fácil observar, povos vários desconhecem a prosa, todos praticam o verso. E aqui temos 3 poetas centrais da China: Li Bai, Du Fu e Wang Wei. Traduzidos do chinês, edição bilingue, preço acessível. 
   Escritos todos em torno dos anos de 700/800 de nossa era, eles apresentam imensas diferenças daquilo que se fazia/faz no ocidente. Os chineses são muito mais simples, diretos e depurados. Pouco mergulham em questões do céu ou da alma. Influenciados pelo budismo, observam seu redor e o descrevem. Na descrição da chuva, da folha que amarela ou da neve reside toda a simbologia da vida e da morte. São circulares, nada nesses poemas corre, não procuram algo de sensacional. A influencia de Confucio é ainda maior. Os poemas têm um pé plantado na sociedade. Estranho, todo poeta chinês, em oposição ao europeu que sempre procurou a glória, se afasta do mundo e como monge, vive na montanha em absoluta solidão. Pena Octavio Paz não ter analisado a poesia da China. Eles provam em definitivo a raiz comum de Deus e da musa poética. Vinte, trinta anos em absoluto isolamento, vivendo em estado de fome, de ansiedade e de súbitas iluminações. Escrevendo milhares de páginas. Acima de tudo, vendo, observando, saindo de si.
   Li Bai é o mais feliz. Du Fu é trágico e na China de hoje é conhecido como Shakespeare na Inglaterra. Wang Wei é a sintese dos dois.

   O cavalo empertigado
   Marcha
   Sobre as folhas caídas. 
   Meu relho no ar roça as nuvens.
   Bela, a menina que abre a cortina de pérolas.
   aponta ao longe, com um sorriso
   A casa vermelha
   É lá que eu moro.
                                     Li Bai.

    Não procure sentidos nesses versos. Eles nada mais simbolizam que aquilo que aparentam ser. Ao contrário da tradição da Europa, nada há escondido. Cavalo que é cavalo, menina que é menina. O que importa aqui é a sensação que sua leitura, calma e quieta, traz. Para serem lidos em voz alta, com atenção, eles existem como possibilidade de se produzir algo. Ou não. Como um peixe que pula no ar, cabe a você saber apreciar o peixe que salta, ou o ignorar.
   
   Gosto do monte Tong
    porque ele me deixa alegre.
   Fico por aqui bem uns mil anos.
   Danço ao meu gosto
   Minha manga solta roça de uma só vez
   Todos os pinheiros aqui de cima.
                                           
                                            Li Bai.

                                          

UNAMUNO, FORASTIERI E LIMOGES

   "Ninguém me convenceu racionalmente da existência de Deus, mas tampouco de sua inexistência. Os argumentos dos ateus me parecem de uma superficialidade e futilidade ainda maiores que de seus contraditores. A vida é dúvida e a fé sem a dúvida não é nada senão a morte."
   Miguel de Unamuno disse isso. O mais central dos intelectuais espanhóis do século XX ( 1864-1936 ), dono de imensa produção, reitor da universidade de Salamanca, perdeu o posto por obra do franquismo. Uma peça baseada em obra desse titã está em cartaz. São Manuel Bueno, Mártir, esse o nome do espetáculo que mistura bonecos, efeitos e magia. Para Unamuno a fé só tem valor se for constantemente posta em dúvida. Acomodar-se na fé, tê-la como indiscutível nada tem de válido. Torna-se um tipo de vicio, nunca virtude. O homem de fé vive em dúvida, sua sina é a insegurança. Essa a vida que vale a pena, a vida que é viva. O ateísmo seria uma licença para a superficialidade, um modo de levar a vida em infantilismo inconsequente. Não a liberdade, pois nada há de livre em ser dirigido pela biologia, mas sim um tipo de playground das ideias onde vale tudo pois tudo é uma brincadeira. Quando Unamuno diz que o ateísmo é futil ele fala que o ateu se ocupa daquilo que seria futil perante um valor maior: o dinheiro, a moda, a diversão, as explicações de ocasião. Negam-se as grandes questões: o que é a vida? Porque o nada criou o ser? Como se dá o infinito? O que é o movimento? 
   Mais um belo pensamento de André Forastieri no Face. Ele recorda o momento 1988/1993, toda uma geração que aprendeu a aceitar coisas que antes eram opostas. Gente que misturava Star Trek com Rimbaud, Husker Du e Poe, quadrinhos com Melville. André lamenta que hoje o compartilhamento esteja vencendo again. Desse modo, fãs de séries de TV só se ligam nesse mundo, assim como roqueiros só ouvem rock e caras que adoram quadrinhos não leiam mais Jack London ou  
Heminguay. É um fato. A diversidade durou muito pouco e foi um período maravilhoso. O povo misturava jazz com rap e cinema mudo com Ridley Scott. Isso acabou. Hoje é cada um em seu quadrado.
   Atenção: Mesmo com toda essa diversidade tem duas coisas que até a geração de André não aceitou: MPB e filmes musicais. Esses os párias da coisa. Um dia escreverei porque. 
   Mostra de Bowie no melhor museu de Londres bate recorde. David está e esteve sempre tão acima do nível intelectual dos rockers que isso não me surpreende. Seus fãs vão a museus. Os fãs dos outros vão a cafés ou baladas.
   Visita a casa de uma prima minha. Não ia a séculos. Frequentei muito quando era criança. Porcelanas de Limoges, bronzes ingleses, relógios do século XIX, móveis dos anos 20, prataria leve de Firenze. Muranos e Art Déco. Foram alguns de meus brinquedos aos 8 anos de idade. Vixe! Sou o conflito entre essa casa de luxo e calma ( quando cheguei ela ouvia ópera ) e my little rocknroll. 
   Hèllas!

DA MATTA, STROKES E VISCONTI: ARISTOCRATAS VERSUS MODERNINHOS.

   Boa coluna ontem no Estadão. Roberto da Matta fala, como eu, que Argo é "bom", apenas isso. Mas ele fala algo que sempre tenho pudor em falar. Que para quem conhece Wyler, Clair, Ford, Hitch, Wilder e Truffaut, filmes como Argo sempre parecerão "bons", apenas isso. Eu evito falar desse modo porque tenho medo de parecer muito snob. Aristocrático. É óbvio que senti vontade de dizer, ao seu tempo, que Cisne Negro só podia impressionar aquelas crianças que conheciam o cinema de 1990 pra cá. Ou que Anti-Cristo era um tipo de rebuliço de butique. Imagens bobas que nada trazem de novo. Por isso que ás vezes prefiro um bom Jason Statham ou Bruce Willis. São assumidamente pop. Não fingem ares de importância. Filmes como os citados são tipicas obras de pseudo-arte para burgueses desconfortados. Modernismo completamente inofensivo. Não cheira e não fede. 
   Como é o "novo" disco dos Strokes. Antes eles imitavam Velvet e Modern Lovers. Agora sentiram vontade de chocar seus fãs e tascaram uma novidade. Novidade??? Críticos mal informados falam em Bowie e Pet Shop Boys. Necas! É euro-disco. Giorgio Moroder. Estranho tempo o nosso! As novidades são citações de citações. Nada há de sincero no disco. Eles querem causar. E vender, claro. 
   De qualquer modo eles tentam respirar. Eu abomino bandas que passam toda a vida fazendo o mesmo. Escritores e cineastas too. Não suporto Philip Roth por isso. Sempre a mesma coisa. Ramones é um nó. E Springsteen se plagia desde 1980. Gosto dos mutantes que se mudam. Acho que é minha alma bowieana. Segundo Paz, isso é o poético. Changes. ( Ouvi o novo Bowie. Primeiro lugar nas paradas. É bom? É Bowie. Nome que é adjetivo. )
   Acabo de sair de uma aula sobre a arte atual. Um nada em meio ao vácuo. A arte que se faz agora é produto fácil até quando tenta ser ofensiva. Chuta santos e dogmas, mas nada consegue trazer de original. A saída seria não ansiar pela novidade. Tentar a excelência, a perfeição, o sublime. Romper com o compromisso da surpresa e buscar o eternamente correto. Alguns fazem isso. Mas não atingem o centro dos holofotes. A vitrine. O mercado pede o sensacional, seja grotesco, eufórico ou deprimente. O mercado nega o sublime e o refinado. Há público domesticado para quadrinhos Marvel ( eufórico ) ou para Haneke ( o deprimente ) mas não para o sublime. Nosso tempo será um buraco na história da arte.
   O que não impede que haja alguém fazendo coisa maravilhosa. Mas essa arte não está em evidência. E pior que isso, quando voce topa com ela não lhe dá o estatuto de real valor. Foi sempre assim? Não seja tolo! Se Van Gogh foi renegado, ao mesmo tempo se amava Monet, Manet e Degas. Se Caravaggio foi perseguido, Rafael e Rubens não. Se Max Ophuls se deu mal em 1955, o mundo amava Hitch, Ford e Visconti. 
   O que ficará de 2013? Com certeza não será Roth, Strokes ou Fincher. Quem viver mais 50 anos verá.

O ARCO E A LIRA- OCTÁVIO PAZ, O SIGNIFICADO DA VIDA

   Paz fala do que seria a poesia. Mas ao falar de poesia ele fala do poético. E poético é arte poética mas principalmente vida não racional. A vida é apenas razão? Se fosse apenas isso a Suécia seria o paraíso na Terra. Basta voce ver um filme suéco. Não é um paraíso. É um buraco. A Suécia exemplifica a armadilha da razão: A falta de sentido. É estranho isso! Sem a boa compreensão das forças irracionais, sem a sabedoria de se unir a razão à irrazão, o que resta na vida é o não-sentido. Psiquiatras agradecem. 
   Nosso mundo irracional tem três grandes forças: Amor, Religião e Poesia. Nada há de racional em nenhuma das três, e todas nascem da mesma fonte. A tragédia da modernidade é a de tentar eliminar ou racionalizar as três irrazões. O amor racional não pode ser amor. Se torna tédio, comodismo ou pior, sexo sem compromisso. A religião domesticada se faz politica. Pior que isso, uma farsa. A poesia racional anda em circulos. O poeta, envergonhado de sua irrazão, de sua "tolice", passa a vida analisando a poesia. Procura se justificar. Tenta fazer poesia util, verdadeira, científica. Se perde.
   Porque existem essas irrazões? A pergunta é outra: Porque existe a razão? O que ela nos dá de realmente feliz? Vida sem transformação não é vida. A vida é um tentar ser alguma coisa maior. Vivemos para tentar viver. Somos um nada a procura de Ser. Isso é o que nos define: Um ser em construção. Construção que nunca poderá terminar, se definir, ter um alvo. A razão não suporta indefinições. Ela precisa de clareza, de certezas. Uma pessoa muito racional ao se deparar com o incerto opta até mesmo pela morte. Ela não aceita o "não tem porque e não há explicação". O estado de desequilíbrio lhe e´insuportável por colocar em cheque suas crenças. A crença única no porque, na clara EXPLICAÇÃO. Causa e efeito, fora disso, a morte.
   No amor não existe causa e efeito. Como não há na religião ou na poesia. Porque? Não sei. Como? Não importa. No reino dessas verdades a única coisa que vale é a experiência transcendental, o "É". Para a razão é incompreensível. Logo, inexistente.
   A poesia luta por fazer a palavra voltar a ter sentido. Tenta, e muitas vezes consegue, fazer da palavra uma nova vida. Dar cor, sabor às palavras. Trazer o insuspeito à vida, já que vida é texto. A poesia tem o compromisso de tirar do leitor a certeza, fermentar dúvida, crise, fazê-lo caminhar. A grande poesia nos esvazia e em seguida nos prepara. Faz com que sejamos mais "eu mesmo". Um eu que logo se desvanece. Transcende. 
   Poesia contra técnica.
   Na técnica a palavra, como a vida, é humilhada. Assim como na prosa. O material vira uma coisa só. Perde sua pluralidade natural. Se torna útil. Assim, madeira é parte da árvore. Madeira será cadeira, porta ou lenha. E estará presa apenas a isso. Para sempre. No mundo poético, madeira pode ser um ser vivo. Ou uma canção. Madeira pode ser uma cor. Pode ser uma pista. Um enigma. Veja: Na vida da técnica, o homem é um bicho que pensa. Teia de células e de desejo, ele crescerá, decairá e morrerá. No universo poético o homem é um zilhão de possibilidades. De filho de deuses a vilão diabólico, de nada absoluto a louco vadio, de robot danado a estrela cadente, na poesia o homem é livre, é irrespondível e indefinido. Para sempre.
   Dante Alighieri era livre. Recebia inspiração e a traduzia em palavras. Nada fazia com que ele duvidasse dela. Aceito por todos, o poeta era um cidadão "útil", o homem que eternizava o momento, que cantava a vida. A partir da tomada de poder burguesa os valores se invertem. O burguês despreza o aristocrata. Vê neles o supra-sumo da inutilidade. Aristocratas não trabalham, não produzem riqueza, não suam e labutam no dia a dia. Pior, aristocratas vêem no burguês um tolo, um feio, um absurdo. Poetas são aristocratas. Poetas acreditam em destino, em inspiração. Poetas desprezam o tempo, o lugar, a produção contada e pesada. No mundo do valor que se vende, poetas são párias, vagabundos, inuteis. 
   Baudelaire é um maldito então. Onde Dante era um privilegiado, Shelley ou Rimbaud são bandidos. O poeta passa a brigar com sua inspiração. Tenta torná-la razão, fazer dela coisa util, coisa chã. Analisa a poesia, analisa seu ato, passa a chamar sua arte de TRABALHO. Nasce a bobagem de "90% transpiração"... Tudo para tentar ser aceito pelo burguês, pelo mundo da técnica, da venda, o mundo sem religião ( com igrejas ), e sem amor ( com sexo ). No lugar da poesia, prosa, muita prosa.
   A questão do livro é: Vale a pena viver sem o Sobrenatural? Um mundo feito apenas de razão, vale a pena? Paz nunca é ingênuo. Ele sabe que jamais voltaremos ao mundo de Dante. O Sobrenatural era um fato tão corriqueiro quanto respirar ou comer. Hoje precisamos lutar para fazê-lo existir. Se precisamos pensar e lembrar do Sobrenatural, isso mostra que ele não é mais cotidiano, foi banido e exilado. ( Tentamos lembrar dele em drogas, filmes fantásticos, aventuras arriscadas, visões do espaço mais distante ). Mas a questão é: Valeu a pena renegar o Sobrenatural?
   O que de maior e melhor pode ser obtido pela técnica e pela razão? Fácil responder: a vida eterna. Apaixonada por si-mesma, pelo EU, o único sonho da razão é não deixar de existir. Todo o desenvolvimento da técnica se reduz a isso, vencer a morte. A razão tem como único fim a sobrevivência de si-mesma. Pois a razão se volta "para dentro", conhece apenas aquilo que reflete o seu próprio ser. 
   O que existe de mais negativo para o eu-mesmo que o amor? Que a religião? Ou a poesia? 
   No amor nos damos ao outro e nos sacrificamos por ele. Na religião admitimos nada ser, nada poder e nada saber. E na poesia nos perdemos em simbolos, visões e sensações, saímos de dentro de nós e nos misturamos ao todo. Saiba ( E sei por experiência própria, sou hiper centrado ), a razão abomina se dar, ser humilde ou se deixar perder.
   Sempre desconfiei de pessoas que não toleram poesia. Este livro, magnífico, mostra porque.
   

DE ONDE NASCEM OS SONHOS

   Foi tema de uma aula, hoje. Eu a reconto:
   - O João está mal que vai morrer....
   - Vamos visitar, ver o que ele tem a dizer.
   João está à cama. Ao seu redor alguns parentes. Pela janela aberta ele pode ver o alto das casas da sua rua. Uma mosca voa pelo quarto. A dor é dura. João quer falar. Fala. Pouco se pode saber do que ele fala. Mas o fato é que ele falou. Enquanto isso, na sala, sente-se saudade do João que ainda não foi. Sua última sentença foi esta: Me fui como vim. Proteja meus filhos.
   Faz-se o caminho então. João nasceu em familia. Como todos, veio de mãe em meio a um parto. Como todos, foi criança de bairro e brincou. Fez parte de uma escola, de uma igreja, de uma vila. Cresceu e fez sentido. E morreu como nasceu, em meio a gente, tentando dizer a conclusão da vida, fechando o círculo. 
   ( Sociedades decadentes nunca sabem o que fazer com seus mortos. Pior, nunca sabem simbolizar a morte. Sociedades decadentes dizem que a morte é a morte que é a morte como a vida é apenas viver. Sociedades decadentes pegam seus moribundos e os arrancam de nossa visão. E jogam seus corpos numa vala que significa esquecimento rápido. Numa sociedade podre o esquecimento se deseja mas ele nunca vem... )
   Eu não sabia que o hai kai nasceu como poema da hora de morrer. O hai kai ( ou hai ku ) é a sentença final que um homem deixa como herança aos seus. É a sentença que simboliza aquilo que ele foi. E será. 
   Havia no Japão um pobre desgraçado. Inútil. Numa noite de neve terrível, num celeiro escondido, só, ele morreu. Foi morto pela neve que caía.  De manhã acharam seu corpo e na mão um papel. Nele se lia:
    " Há que dar graças
      Essa neve veio do Céu."
   
   Nossa arte, pobre, tem apenas um sentido: Buscar um sentido. Nossos artistas são como cegos que tateiam procurando algo que lhes dê esperança. Um escritor escreve sabendo que seu texto será sem sentido. O mesmo sente um músico ou um pintor. 

  Se passaram séculos. Mas nosso modelo mítico de felicidade continua habitando o tempo clássico. Seja Grécia, Roma ou Jerusalém.
   Voce pensa em democracia ou em Julio César. Voce pensa em Platão ou em Hércules. Se voce é crente pensa em Jesus, se é ateu pensa em Marco Aurélio. Nossos modelos são Aquiles ou Heitor, Helena ou Afrodite, Sêneca e Ovidio. Sonhando com musas, deuses, ou guerras, ou heróis ou o nascimento da ciência, da filosofia e do direito. Sonhando.
   

PINHEIROS

   Pinheiros sempre foi sujo. E todas as minhas lembranças antigas são em chuva ou garoa. O frio cortante do fim de tarde em que meu pai trazia um autorama debaixo do braço. O ônibus lotado e ele se equilibrando de pé. Eu achando que fosse ele o cara mais forte do mundo e uma ansiedade doida para chegar em casa logo e poder brincar. Cômicos ônibus de então que tinham janelas pequenas e anúncios pregados nas paredes. O cobrador passava com bilhetes nas mãos, a gente tinha de comprar e depositar esses bilhetes nas mãos do motorista ao sair.
   Chuva na Teodoro Sampaio e eu ia com a familia comprar um fogão vermelho na loja Gabriel Gonçalves. Mas lembro agora, mais antiga é a lembrança de meu primeiro surto de "jovem aristocrata". Eu insisti em ter luvas brancas e obriguei minha mãe a andar por ruas e ruas atrás das luvas brancas. Ela achou. Comprou e eu nunca as usei. Em 1973 meu pai comprou um bar na esquina da Teodoro com a Cunha Gago. Perto tinha a loja Yaohan, uma tentativa dessa rede do Japão de criar raiz por aqui. No telhado tinha um parque com escorregadores. A Big loja vendia de roupas a perfumes. Um tipo de Mappin. Lá comprei meu primeiro LP: Caribou do Elton John. A loja durou até 1980. Hoje no lugar tem uma coisa feia pacas que nem sei o que é. 
   Estudei em Pinheiros, no Objetivo. Fui da primeira turma. Era uma escola, só durante esse primeiro ano de funcionamento, mágica. Poucas classes, os alunos e funcionários tinham uma cumplicidade de "coisa pequena". Após as aulas ficávamos o resto do dia jogando volei lá dentro. Me apaixonei pela Aninha e descia do ônibus na rua Pinheiros só para ver ela sair de sua casa. A seguia de longe, incapaz de falar com ela. O Objetivo era na Ferreira de Araújo, eu a seguia por quarteirões. Por dias. Acho que nunca gostei tanto de alguém. Foi por ela que comecei um  diário. O impulso era o de guardar a lembrança daqueles dias "gloriosos". Amor puro é diferente. Eu era feliz e sabia que era. Mesmo sem falar com ela. Poder me sentir amando, era esse o grande objetivo. E eu a amava, tinha porque viver.
   Matava aula em fliperamas. O maior era na Faria Lima, no Cal Center. A Faria Lima tinha botecos ainda. E era uma avenida larga e curta. Terminava logo após a esquina com a Cidade Jardim. Sim, era isso mesmo! De súbito a avenida terminava, alguns sobrados obstruiam a avenida. Um deles era o Regine's, uma boate cor de rosa choque. Pinheiros na verdade era um tipo de vila. O Iguatemi, pequeno, recebia só gente que se conhecia. Moradores próximos. Lembro que eu via as mesmas caras nos cinemas e nas lojas. Tinha mãe que usava o shopping como quintal, os filhos pequenos passavam o dia lá.
    Minha mãe fazia ginástica todo dia na Silhouette, que ficava quase em frente ao shopping. Eu às vezes a esperava na rua. Fazia hora nas ruas que cruzam a Gabriel. Adorava ver a saída do colégio inglês, me alucinava com as meninas de saia xadrez e gravatas vermelhas. Lindas!
    Veio então uma fase chata no bairro e chata em minha vida. De comprar discos no Eric e de andar mal humorado pelas ruas. Tive uma banda ridicula que ensaiava na Fradique Coutinho. Era um caos sem graça. Fazíamos new wave em tempos de no wave. 
    Esse bairro que lembro existe. Ao contrário do Itaim Bibi, Pinheiros pouco mudou. As ruas que andei são em 2013 o que foram em 1983. Talvez mais cheias, muito mais sujas, mas as casas e as lojas estão de pé. O que mudou mais fui eu que não consigo mais amar por amar e correr atrás de Aninhas que não sabem quem eu sou. O amor tem hoje para mim sempre um objetivo de ganho, um alvo. A felicidade de ser feliz por estar amando, sem me importar com o que acontecerá depois, isso morreu em mim.
    Espero que os moleques de Pinheiros, eles que estão soltos por aí, preservem esse dom de amar à toa, de se atirar sem razão, de sentir e não pensar "pra que". Que eles saibam que é esse o paraíso e que a serpente se chama "querer ter".

SINATRA, INCONSCIENTE, LINGUA E MEUS BISAVÔS

   Felicidade é dirigir segunda-feira com Sinatra no som. Aristocrata da voz, dicção perfeita, suas frases se modulam como ritmo e como harmonia. A voz se sacode. E meu carro desliza entre carros que ouvem noticias ( que são sempre as mesmas ) e cds ( que são sempre os mesmos ). Sinatra na segunda é ser mais.
   Cientistas vasculharam todo o cérebro e alardeiam: Não encontramos o inconsciente. Tudo é mecanismo consciente. O cérebro reage a fatos "conscientemente", aquilo que não faz parte da intenção não existe. Weeellll...cientistas não entenderam que o inconsciente é uma questão de fé. Ele nunca será encontrado fisicamente, assim como jamais se achará o lugar da "alma". Humanidades, seja poesia, psicologia ou filosofia, lidam com possibilidades, com aquilo que pode ser, ou não. Não são ciências porque, como diz Henri Bergson, lidam com o movimento, com o ser e deixar de ser, com aquilo que era e não é mais. A ciência só lida com um momento congelado no tempo, com partículas, frações. Jamais acharão a alma porque ela é um movimento incessante, uma dinâmica. O trágico é quando uma humanidade deseja se fazer ciência. Ela se trai, admite sua pequenês e deixa de ver o processo. Passa a congelar seu saber, deixa de mudar, de evoluir. Nunca se faz ciência de fato, se faz coisa morta.
   Conversando com um amigo falamos da ancestralidade. Um dos modos de se reequilibrar ( se é que isso existe ), é reconciliar sua ancestralidade dentro de si. Ir em busca das raízes-vivas, forças que pulsam dentro de voce. As vozes que falam de onde voce veio. Um dos grandes erros da modernidade é essa crença na rebelião contra a origem. Quem disse que ser adulto é negar sua origem? Porque? Ora, o desinteresse por ancestralidade tem a mesma raiz do desinteresse por estética ou pela poesia. Burgueses odiavam tudo o que era aristocrático. Burgueses desconhecem sua linhagem, sua ancestralidade. Assim como eles abominam a poesia por não a compreender e ridicularizam a estética por desconfiar do próprio gosto, eles criaram o desprezo pelos antepassados por terem vergonha de suas raízes. Mas assim como sentimos o amor  poéticamente e ansiamos pelo que é belo estéticamente, vivemos a verdade daquilo que é nossa origem. Negar tudo isso, esconder sua raiz é negar sua profundidade.
   Voce aprende linguística no primeiro ano para depois saber que a sintaxe nega mais da metade daquilo que os linguistas postulam. Isso é humanidades.
   Sim, as fissuras em meu cérebro aumentam com minhas leituras. Ok. É um fato. Mas o que desejo saber é: Que processo transforma pensamento em palavra? E que via faz de uma palavra uma ranhura? Quero saber da coisa acontecendo e não das conclusões sobre o processo encerrado ( que serão desmentidas em dez anos ). 
   Minha professora quase diz que a linguagem nasce como cheiro. Sonho de todo poeta: Fazer de seu texto um perfume.
   Valeu.

A OUTRIDADE EM OCTAVIO PAZ, UM LIVRO DO CARAMBA!

   Todos os dias voce olha para a mesma rua e percebe a mesma coisa. Chega ao trabalho e faz as mesmas ações e tem pensamentos como os de sempre. Volta para casa com as mesmas sensações. E dorme tendo então os sonhos que desde sempre são seus. Mas um dia a rua lhe parece diferente. Aquela rua tão conhecida parece estranha. Assim como o carro e o trabalho. Voce percebe nas pessoas coisas antes não percebidas. Volta para casa e no espelho não reconhece mais seu rosto. Os sonhos serão outros. Voce está só diante do mundo. Absolutamente só. Eis o momento do salto mortal, da descoberta do outro, do conhecimento do vazio, do cair e ir adiante. É essa a outridade, mais que isso, é essa a condição verdadeira da vida. Nós não somos alguma coisa, não somos nem mesmo uma coisa, somos uma construção sempre sendo construída, somos o que seremos e não chegaremos a ser, somos um outro e nessa outridade somos tudo.
   Horror. A primeira sensação é o medo. Voce perde o ponto de apoio. As certezas se vão. O que era azul pode ser preto. O que era confiável torna-se enigma. Sem outra escolha voce dá o salto: Faz-se um outro e percebe que o homem é isso. Vem a felicidade inenarrável. Não somos uma cadeira, objeto que sempre será aquilo que é. Não somos um cavalo, ser que é sempre o mesmo. Somos um homem, um ser que nunca é, ele sempre será. Nesse momento de salto, nesse conhecimento do abismo e do nada, nascem três forças que guiam o ser: O amor, a religião e a poesia. Todas possuem a mesma origem, o nada e a mudança, cada uma age a seu modo. O amor reconhece o vazio e traz a mudança na forma de um encontro com um outro. Um outro que é a mudança que se faz em voce mesmo. A religião traz a elevação da vida e a anulação da individualidade na comunhão com algo maior que o ser, seja Deus seja o cosmos. A poesia traz a transformação do vazio em imagens, o nada se faz palavra, a experiência se traduz em texto, o texto será compartilhado pelo leitor que provará a experiência do autor. Em comum nas três, amor, religião e poesia, a estranheza perante o cotidiano, o horror original da não-fixidez, a transformação e o maravilhamento. O reconhecimento de que eu sou nada. Sou um outro. Que jamais será.
   O mundo da modernidade, aquele que nasce por volta de 1790, abomina tudo o que parece aristocrático. Ele ama o que é útil, o que trabalha em prol do todo. As coisas devem ter uma função, fazer parte de uma maquinária. Tudo deve ter um peso, uma realidade que possa ser avaliada e vendida. O que não se encaixar nesse maquinário será ignorado. Ou pior, será aberração. Será doença e com esse rótulo estará vendido.
   No amor, na religião e na poesia existe a inspiração. Um momento em que voce se deixa levar e faz, fala, age como nunca antes. Um outro surge em voce e o mais estranho é que esse outro "é mais voce que voce mesmo". Porque o sentido dessa outridade, dessa eterna mudança, desse salto mortal é o de fazer de voce cada vez mais voce-mesmo. Estranho: nesse salto para frente voce tem a sensação de voltar. Retorno a que? O tempo é abolido no amor, na religião e na poesia. Voce torna a ser o que foi. Mas esse passado nunca existiu. Forma-se um círculo: voce é seu amor, voce é Deus, voce é a poesia que voce faz mas que não é feita pelo eu de antes mas sim pelo novo-eu, um outro. Se a modernidade é uma reta rumo ao futuro, o amor, a religião e a poesia causam asco por serem círculos, negam a reta, se voltam para dentro, dão um salto adiante que é um retorno, vêem no futuro o passado que é presente. Sabem que a reta é uma armadilha que faz do homem um ponto da reta, um ponto que será fixo, acabado, pronto, util e esquecido.
   A modernidade irã chamar o amor de mero instinto de procriação. A religião de doença. E a poesia de sublimação. Rótulos que nada explicam. Apenas colocam um veredito e encerram o caso. Não importa o que é a poesia, o que não se explica é: como ela se faz. O que leva a mão a criar imagens, a fazer das palavras um instrumento de maravilhamento. Porque alguns "doentes" fazem poesia e outros nada fazem? Não seria o caso de se dizer que a vida "normal" é uma sublimação da poesia? Que a repulsa a religião seria a doença? Ou que o instinto sexual nega o amor?
   Houve um tempo em que a poesia era aceita como fato cotidiano. Dante recebia inspiração e naturalmente a aceitava. A questão era: como traduzir em palavras a inspiração? A partir da modernidade, pressionado pelo mundo utilitário, o poeta precisa justificar a inspiração. Ser um poeta deixa de ser um dom e passa a ser um problema a se resolver. O poeta se justifica. Toda a poesia moderna é uma justificação. O poeta tenta se explicar, se aceitar e ser aceito. Nega a inspiração, chama esse dom de "trabalho". Tenta ser um operário. Tenta transpirar. Nega a poesia.
   O mesmo se dá com o amor. Ele deixa de ser uma transformação e passa a ser uma conquista. A religião deixa de ser mistério sagrado e se faz regra de bem viver. Todas os três saltos mortais negam sua outridade, não propõe mais a transformação, passam a ser um tipo de pirotecnia do salto, um engodo.
   Neste mundo em crise, mundo tão frágil que nega a morte, a transformação e o todo, mundo que luta para ser claro, uniforme, planejado, o homem, esse ser em construção, ser que tem por condição a mudança, se vê sem amparo. Nega dentro de si o salto, a estranheza, o vazio e o nada. Com medo, foge daquilo que é na verdade a vida, a consciência do todo, de se ser um nada, um nada que luta para ser mais.
   Nascemos para nascer sempre. Nascendo morremos sempre. Somos a vida e somos a morte. Morremos todo dia, nascemos todo dia. Criamos, nos libertamos. E fazemos tudo outra vez. De outro modo, sempre. Sempre que é já. Que foi. Que será. E que passou.

OCTAVIO PAZ E O NOSSO "OUTRO"

   Entrei em minha primeira faculdade aos 20 anos. Era uma época em minha vida muito confusa. Lembro que eu amava Dostoievski, Heminguay e Philip Roth e era incapaz de ler poesia. Tinha a certeza absoluta da inexistência de Deus e exibia uma imensa arrogãncia ao dizer que o homem nada mais é que um erro da natureza. Mas em meio a todo esse narcisismo, eu me traía. Delirava em viagens psicodélicas, mergulhava na música de Mozart e tinha uma profunda comunhão com o mar. Havia uma contradição em mim. Eu vomitava frases de certeza e de não-transcendência, mas vivia em busca de transcendência e de encontrar aquilo que não tinha. Só e muito infeliz.
   Então escrevi na primeira aula de Português uma redação que deixou a professora impressionada. Ela havia posto o Bolero de Ravel para tocar e havia pedido para escrevermos sem pensar, sob o efeito da música. Escrevi algo sobre estar perdido no deserto, só, e então encontrar uma imagem que diz tudo no silêncio e se desfaz para sempre. A professora me chamou e disse que eu devia ler Octavio Paz. Agora, 30 anos depois, cito frases de O Arco e a Lira, obra-prima do grande mexicano.
  " Os estados de estranheza e reconhecimento, de repulsa e fascinação, de separação e união com o Outro, são também estados de solidão e de comunhão conosco mesmos. Aquele que realmente está a sós consigo, aquele que se basta em sua própria solidão não está só. A verdadeira solidão consiste em estar separado de seu ser, em ser dois. ......O homem anda desamparado, angustiado buscando esse outro que é ele mesmo. E nada pode fazê-lo tornar a si, exceto o salto mortal: o Amor, a Imagem, a Aparição.
   ....Os primeiros a perceber a origem comum do amor, da religião e da poesia foram os poetas. O pensamento moderno confiscou essa descoberta para seus fins. Para o niilismo contemporãneo poesia e religião são apenas formas de sexualidade: a religião é uma neurose, a poesia uma sublimação. Todas essas hipóteses denunciam o imperialismo do particular, característico das concepções do século XIX. Por que não pensar então que todas essas experiências têm por centro algo mais antigo que a sexualidade, a organização econômica ou social, ou qualquer outra "causa"?
   ....A nostalgia da vida anterior é pressentimento de vida futura. Mas uma vida anterior e uma vida futura que são aqui e agora e que se resolvem num instante relampejante.  Essa nostalgia e esse pressentimento são a substãncia de todo grande empreendimento humano, quer seja um poema, um mito religioso, uma utopia social ou um feito heróico. 
   Religião e Poesia tendem a realizar de uma vez para sempre essa possibilidade de ser que somos e que constitui nossa própria maneira de ser, ambas são tentativas de abraçar essa "outridade", que Antonio Machado chamava de essencial heterogeneidade do ser.  A experiência poética, como a religiosa, é um salto mortal: um mudar de natureza que é também um regressar a nossa natureza original. Encoberto pela vida prosaica ou profana, nosso ser de repente se recorda de sua identidade perdida, e então emerge, aparece esse outro que somos.
   A liberdade do homem se funda e se radica em não ser mais que possibilidade. Realizar essa possibilidade é ser, criar-se a si mesmo. O poeta revela o homem criando-o. ....Entre o nascer e o morrer a poesia nos abre uma possibilidade que não é a vida eterna das religiões nem a morte eterna das filosofias, mas um viver que envolve também morrer, um ser isto que é ser também aquilo.
   A poesia afirma que a vida humana não se reduz ao "preparar-se para morrer" de Montaigne, nem o homem "ser para a morte" dos existencialistas. A existência humana encerra uma possibilidade de transcender nossa condição: vida e morte, reconciliação dos opostos. Nietzsche dizia que os gregos criaram a tragédia por excesso de saúde. E assim é: somente um povo que vive a vida com total exaltação pode ser trágico, porque viver plenamente quer dizer viver também a morte. 
   A impossibilidade de achar uma resposta que explicasse realmente a criação poética, a inspiração, transforma-se, desde o século XVIII, numa condenação de ordem moral e estética. ...Inspiração passa a ser chamada de preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. DELIRIO E INSPIRAÇÃO passam a ser sinônimos de LOUCURA E ENFERMIDADE. O ato poético deve ser então trabalho e disciplina, luta contra a corrente. É a moral burguesa se assenhorando do campo estético."
   Cito esses trecho, poucos em meio a tantos. Ofereço-os a voces e espero que os entendam. O livro, imenso, é uma revolução, uma revelação. Ele ensina mais que ler bem. Mais que entender certo. Ele ajuda a viver, ele resgata, ele elucida. A cabeça de Octavio Paz deveria ter sido convertida em tesouro. Imorredoura.
   

ARGO/ BURT REYNOLDS/ JOHN STURGES/ PIERCE BROSNAN

   ARGO de Ben Affleck
Um filme que é estéticamente como um episódio de série da TV. Miserávelmente pobre em termos visuais, tosco como desenvolvimento de personagens. Argo não é melhor que 24 Horas ou Os Sopranos. A TV está mais rica e o cinema ficou indigente. Desde 1997 ele tenta captar os tvmaníacos fazendo aquilo que eles  se acostumaram a ver. Não tem dado certo. Well...Esquecendo isso tudo, este é um filme legal. Exatamente isso, legal. O final tem um suspensizinho básico. Retrato de sua pobreza: Não lembro de mais nada no filme. Sou incapaz de descrever uma cena completa. A trilha sonora é desastrosa. Os hits da época entram sempre na hora errada. Affleck passa todo o filme com a mesma expressão. Alan Arkin e Goodman deveriam aparecer mais. A história é maravilhosa, mas não foi criada por ninguém do filme, então não é mérito dessa produção da Warner. Oscar de melhor filme. Sinal dos tempos, em 1972 ou em 64 não seria indicado. Voce, como eu, vai se divertir. Se desligar o senso de estética.  Nota 6.
   GOLPE BAIXO de Robert Aldrich com Burt Reynolds
Adam Sandler assassinou este filme em 2005. Esta é a versão original. Um jogador de futebol americano decadente vai preso após surrar uma mulher. Na prisão ele é "convencido" a formar um time de prisioneiros para enfrentar e servir de sparring ao time dos guardas. É um filme pop que se tornou cult nos EUA. Grande bilheteria em 1974, ele tem o espírito da época: Parece realista, crú. Aldrich adorava temas viris, machistas. Era um diretor brilhante para ação e para o clima de vestiário masculino. Burt começou a virar star aqui. Ele e Clint Eastwood seriam os top da década. O filme é bem divertido e o jogo final consegue ser engraçado e emocionante. Boa diversão. Nota 7.
   DUELO NA CIDADE FANTASMA de John Sturges com Robert Taylor e Richard Widmark
Que maravilha!!! Comprei alguns westerns que nunca vi !!! Este, muito bom, fala de um ex bandido, agora xerife, que é raptado por ex companheiro. É levado para guiar o bando até dinheiro roubado que foi escondido. Widmark é o bandido, claro. Seu rosto foi talhado para esse tipo de papel, parece sãdico. Tem prazer em fazer o mal. O filme se desenvolve nessa viagem rumo ao dinheiro. Robert Surtees fez a fotografia. As Montanhas Rochosas brilham em cenas de bela aventura. O final tem solução plausível e todo o filme voa sem jamais parecer estático. Sturges foi um mestre da ação. Entre 1955 e 1965 não errou uma só vez. Nota 7.
   SANGUE DE PISTOLEIRO de Phil Karlson com Van Heflin, Tab Hunter e James Darren
Vejam só...este é um western barato da Universal. Fala de um pai, dono de terras, e seus dois filhos. Um é vaidoso e racista, o outro é sensível e passivo. Ambos odeiam o pai, pai que é um tipo de super-macho alfa.   O roteiro se desenvolve nos conflitos entre os três. O final é trágico  e muito amargo, me emocionou.  Surpresa, é um grande filme! Após seus primeiros minutos, que são banais, a coisa vai num crescendo e atinge contornos operísticos. Voce se envolve completamente com essa familia quebrada, doente, sem saída. Karlson, que nunca deixou de ser um cineasta classe B, fez aqui um muito belo filme. Nota 8.
   MULHERES À VISTA de JB Tanko com Zé Trindade e Carlos Imperial
Adoro Zé Trindade, o malandro baiano que vive no Rio. Aqui ele quer montar um grupo de teatro de revista. Mas não tem dinheiro. Usa a lábia para se dar bem... Filme ingênuo e sou obrigado a dizer, funciona mal. O texto é fraco e Zé Trindade nada tem a fazer. Nota 3.
   TREZE CADEIRAS de F. Eichhorn com Oscarito, Renata Fronzi e Zé Trindade
Barbeiro herda 13 cadeiras sem saber que uma delas esconde fortuna. Oscarito foi o ator mais famoso do Brasil dos anos 50. Mas é estranho vê-lo hoje, parece triste! O filme não é ruim. Também não é grande coisa. Zé Trindade faz um tipo que me agrada: um pobre coitado dominado pela esposa. São dele os melhores momentos. Nota 4.
   AMOR É TUDO O QUE VOCE PRECISA de Susanne Bier com Pierce Brosnan e Trine Byrholm
Pierce, o melhor James Bond após Sean Connery, está de volta. E ainda transpira charme. Ele é um homem rico, viúvo, que trancou o coração e nada mais quer com namoro. Trine, excelente atriz dinamarquesa, sobrevive a quimioterapia e descobre o marido com uma amante jovem. Na Itália irá se realizar um casamento. A filha dela com o filho dele. É claro que eles vão se apaixonar. E surpreendentemente o filme funciona. Apesar de algumas cenas de uma tolice inexplicável, o interesse se mantém. O casal parece verdadeiro e torcemos pelos dois. Susanne tem aquele rigor luterano de tudo o que vem da Dinamarca, parece que ela se recusa a se soltar, a se deixar ir. Mas os atores vencem, a Itália vence e o filme agrada. Nota 6.

ABORTO, COELHO, CACHORRO E MARXISMO...QUANTA CHATICE...

   Ninguém merece uma aula de romantismo em viés Hobsbawn. Grande defeito dos marxistas: Eles superestimam o capitalismo. Toda a história da burguesia do século XIX contada como se fosse coisa racional, hiper-planejada. Não foi e não é. O capitalismo improvisa todo o tempo. Dizer que o conceito de nação foi criado pelos burgueses para poder negociar (???? ) e que a igreja foi secularizada para colocar o dinheiro como novo deus...Bem...Isso até pode ter acontecido, mas ninguém planejou. Por pretender ser racional e planejado, o marxismo sempre vê em tudo um plano oculto e bem bolado. Bobeira. Segurei o riso diante de tanta besteira. Na verdade a tendência do capital é abolir nações, não o contrário como disse a mestra. O dinheiro odeia fronteiras. Na prova terei de escrever mentiras...chato.
   A discussão entre Coelho e Calligaris na Folha exemplifica e desnuda o calcanhar de aquiles de todo pseudo-pensador. Nenhum dos dois dá chance a qualquer pensamento original. Cria-se um arcabouço virtual, um tipo de armadilha contra os discordantes e se expõe uma teoria dentro desse campo bem seguro. Primeiro se pensa a solução e depois o problema NÃO É analisado. Um quer ser realista, o outro pensa ser ético. O realista esquece que viver é prática, as coisas são independentes de nossa vontade. A tortura existe. Gente tortura. Torturar é errado. Todos torturariam em dada condição. Qual a novidade nisso? Pior o Coelho que, pasmem!, se recusa a responder! Pudicamente ele não admite falar que em dadas circunstâncias, sim, ele faria tortura. Weeellll...Paulo Francis daria um fim nessa lenga-lenga mandando todos pro castigo e dizendo: Cresçam.
   Francisco é um belo nome e remete ao último grande momento do catolicismo ( já se vão mais de 700 anos ). O que espero é que ele seja um melhor homem de ação. A caridade é o valor exemplar que o catolicismo criou e deveria voltar a advogar. Em ato e não apenas em oração. Quanto a corrupção e hipocrisia, qual o organismo politico que não o tem? Quando falo catolicismo falo de indivíduos que seguem a lei de Paulo. A força politica centrada em Roma pouco me importa. São mentirosos. Mas o fato de haver crime entre os religiosos não desqualifica todo o dogma. A medicina não pode ser desacreditada por causa de um médico assassino ou um país por causa de uma casta corrupta. 
   Disse uma frase que ofendeu uma amiga londrina. Disse que é ridiculo esse povo que defende a vida de cães de rua ( que adoro ), urrarem a favor do aborto. Então um feto vale menos que um filhote de foca? Na verdade o aborto é tipico de um povo sem responsabilidade. Voce faz o filho e depois apaga esse "erro" sem dó. Coisa de gente mimada. É só minha opinião, e sei, sou homem e blá blá blá. Façam seus abortos, Legalizem. Mas saibam, aborto é matar um feto. E mesmo que um feto não seja um homem, ele é no minimo tanto quanto um bebê cachorro. 
   Cada vez mais eu tenho a certeza. Ainda se fazem alguns filmes ok, mas o cinema como arte relevante acabou. Digo isso não como saudosista que sou, mas como apaixonado. Ia ser duro se eu trabalhasse em jornal ser obrigado a dar uma força para algum filme toda semana. Não, não falo que eles se vendem, o que digo é que se um crítico falar que o cinema acabou ele perde o lugar. Com justiça. Para que um crítico de uma pseudo-arte sem importância? Aliás, ainda se escrevem textos críticos sobre filmes? Não falo bio, falo estudos. Há?
   Plauto, Hobsbawn, Durkheim, Jakobsen e que tais...Aff, sinto saudades de ter tempo para meu Shakespeare...
   
   
   

ITAIM-BIBI

   Cheirava a chocolate. O bairro era a fábrica da Kopenhagen. As seis da manhã o perfume doce e hipnotizador invadia tudo. E eu andava de mãos dadas com meu pai. Ele tinha um bar na esquina da Bandeira Paulista com a Tabapuã. Esse primeiro Itaim que conheci era assim: da João Cachoeira pra cima era comercial, para baixo residencial. Um comércio de casas pequenas e de muitos bares diurnos. No fim da tarde o movimento morria. O Joakin já existia e ele era a alma exemplo dessa parte do bairro. Todos os comerciantes se conheciam, tudo tinha um jeitão de clube.
  O cinema Lumiére era mais bonito. As calçadas não tinham buracos e nem se sonhava com um assalto. O Itaim, como o Brooklyn, era uma esquina da cidade. Não era caminho para o centro, não tinha uma grande avenida, só ia para lá quem vivia ou trabalhava ali. No fim da tarde, quando voltava de taxi com meu pai, eu via a parte residencial. Sobrados cheios de gramados e de árvores, meninos de bicicleta na rua, portas abertas. O carro rodava pelas ruas quietas. Esse primeiro Itaim que conheci era uma vila pacata.
  Quando meu pai vendeu o bar e mudou-se para Pinheiros perdi o bairro por dez anos. Quando voltei tudo era outra coisa. O Itaim deixara de ser vila e agora era bairro de classe média. Ainda com poucos prédios, o trânsito já era um caos. Surf shops, o Itaim era bairro de surfistas. Uma comunidade de pegadores de onda vivia por lá. Nas tardes de sol ainda se tinha um espírito relax nas calçadas com sucos. Foi o tempo da Joyce Ballet, da madeireira na João Cachoeira e do Mappin. Uma favela imensa existia na JK, sim, a JK era uma favela que ia da esquina com a Clodomiro Amazonas até a marginal. A JK havia sido um rio e a favela começara nos anos 70. Em 1982 ela estava no auge. Mas se andava na rua de madrugada. Na Horácio Lafer se jogava bola no asfalto. Até amanhecer. Voce andava pelas ruas de manhã e ouvia rock pelas janelas dos quartos. Também sentia um odor da Jamaica no ar...
   Isso todo foi violentamente destruído quando abriram a Nova Faria Lima. Falar sobre esse terceiro Itaim é perder tempo. A cidade absorveu o bairro e ele se fez parte do todo e não mais um ser à parte. O Itaim é agora como Moema ou Vila Nova Conceição, ou Jardim qualquer coisa. Uma confusão mal planejada de prédios, ruas, calçadas estreitas e restaurantes que lutam para não morrer. Tornou-se um bairro todo voltado para o ato de se gastar muito dinheiro. Impossível andar por suas ruas. Flanar. O bairro que conheci convidava a preguiça e a longa conversa. O de agora nos dá pressa. 
   Os donos das lojas se encontravam no bar do meu pai e ficavam a tarde toda "perdendo tempo". Olhavam as mulheres na rua, riam de piadas, pediam mais um café. Penduravam a conta. Se tratavam por apelidos. Se conheciam. Iam ficando. 
   Hoje eles andam correndo, em carros grandes, de cara fechada, pedindo para que o vizinho "se foda". Puff....Nem sei pra que escrevi sobre o Itaim. Ele não existe mais. De todos os bairros de SP, nenhum foi mais destruído, enterrado e esquecido. Foi-se.

ÁFRICABRASIL- JORGE BEN, COMPLICAM OS BOÇAIS, JORGE SIMPLIFICA

   Em 1976 Jorge resolveu eletrificar. Pegou a guitarra e chamou uma nova banda ( Dadi entre eles ). Homem-Gol. O que ele sempre anunciara se explicitou: ritmo dominando melodia. Ritmo inclusive no sentido das palavras. A letra interessa se ritmar, não rimar. O Homem -Alegria revela seu segredo: Ser feliz é ritmar, ser infeliz é perder compasso. Como diz Octavio Paz, a vida é um ritmo. Só não sabe quem sai do compasso. Surdo de alma.
   Menos misticismo aqui. Jorge deixa de lado sua fascinação por Hermes e a alquimia e mergulha mais em São Jorge Guerreiro e Zumbi-que-vai-chegar. O disco é de briga. Briga de Jorge, briga de ginga centra ginga, briga de sorrisos. Grandes artistas são vozes de uma espaço. Eles brotam do chão e do ar para dar voz àquele local. Jorge Ben é a voz do Rio. Ele só poderia ser de Madureira. Pensar em Jorge nascido em outro espaço é como pensar em Goethe não-alemão ou em Debussy não-francês. Condensação de uma alma local. Jorge é samba, futebol, mar, calor, sorriso, malandragem, Rio.
   O disco pulsa. E a guitarra manda. Ela é usada como percussão. Mais que em James Brown, a guitarra é espancada, ribombada, baqueteada, ritmada. Sapeca. A banda é do cacete! Cavaleiro do Cavalo Imaculado tem uma linha de baixo que é obra-prima de swing. E a percussão desaba. Africabrasil Zumbi, faixa final, é um escândalo. Jorge agride com a voz, se enraivece, lança raios e lavas e a gente dança enquanto isso. ( Um segredo que Jorge cedo sacou: A Dança é o caminho mais direto ao céu. Quer conhecer tua alma? Dança! ).
   Zico merece a Camisa 10 da Gávea. Não se fazem mais jogadores como Zico. Não se fazem mais músicas para jogadores como as que Jorge fez. Mas também não se cantam mais meninas como as que Jorge cantou-canta. Ele não cata as meninas. Ele chega chegando. Não ganha uma mulher. Ele se deixa levar...
   Estudante de alquimia e de filosofias herméticas, Jorge sabe que magia é transformar e que portanto a natureza é mágica por ser transformação que se transforma. Viver é transformar e quem não muda, quem não faz de noite dia ou de chuva sol está morto. Esse o segredo de Hermes, mudar pedra em ouro, lágrima em riso e dor em renascimento. Jorge fez isso na música. Do nada se fez som e do som se fez ritmo. O ritmo vira dança e o corpo que dança vira alma que se torna imagem e se desfaz. A música é som que quer ser vida e a dança é vida tornada música. Faz-se o círculo. Jorge sabe.
   Profundezas abissais? Não. O mais sábio faz simples aquilo que um boçal complicaria. Ele é simples.

O ARTISTA QUE EU QUERIA SER

   Tá bom. Eu adoro Ingmar Bergman. Assim como Henry James ou TS Eliot. Mas se eu pudesse escolher, e ter o dom de fazer o tipo de arte à minha escolha, creia, eu ia pedir para poder produzir outro tipo de coisa. Apesar de admirar Fellini eu preferia fazer vários filmes de Monicelli. No lugar de meu amado Vigo, ia fazer filmes como os de Tati. Hitchcock foi o maior, mas eu preferia produzir Michael Powells...
   Nunca ia querer soltar Scorseses para o mundo. Howard Hawks às dúzias eu ia fazer.
   Queria escrever como Robert Louis Stevenson. Como Conan Doyle, como Conrad. Tolstoi e Proust são maiores, mas eu queria escrever como Saint-Exupéry.
   Não ia ser Bach ou Beethoven, ia ser Mozart e Debussy. Nem Picasso e nem Rembrandt, ia pintar Matisse e Vermeer.
   Meus atores mais admirados são Olivier, Brando, Redgrave e Nicholson, mas eu amo Erroll Flynn, Cary Grant e John Wayne. Preferia ser Bruce Willis e nunca Daniel Day Lewis.
   Isso porque se me fosse dado talento eu iria querer dar alegria ao mundo. Ia querer semear vida, aliviar o peso, mostrar possibilidades de leveza, ser um oásis.
   Nunca iria escolher meu amado Ozu, ia preferir Buster Keaton.

ANNA KARENINA/ MARNIE/ EUGENE O'NEILL/ BLIER/ KIM KI DUK

   O RISCO DE UMA DECISÃO de Richard Brooks com Gene Hackman, James Coburn e Candice Bergen
No início do século XX, uma corrida entre cavaleiros. O filme tem uma visão sensível, os cavalos são as vítimas. Hackman, excelente, é um cowboy humanizado. Ele ama os bichos. Coburn faz seu tipo de sempre, e isso é uma benção: um putanheiro, cachaceiro, malandro. O filme, do viril Brooks, é delicioso. A ação tem porque e os diálogos são ferinos. Brooks começou como pupilo de John Huston. Seu estilo é hustoniano: direto e sem firulas. Nota 7.
   MARNIE de Alfred Hitchcock com Tippi Hedren, Sean Connery e Diane Baker
O filme mais doentio de Hitch. Fala de uma cleptomaníaca. Connery é o milionário assaltado por ela que tenta a ajudar. É um filme desagradável. Feio. Hitch vai fundo no aspecto neurótico da personagem. Ela suja as imagens, borra a música, desfaz qualquer chance de beleza. O filme resulta como um tipo de pesadelo febril. Longe de seus melhores filmes, mesmo assim é obra invulgar. Há quem o adore. Não eu. Nota 6.
   PIETÁ de Kim Ki Duk
Um filme diferente dos habituais de Duk. Aqui o visual é pobre, feio. Tudo se passa num tipo de labirinto urbano, onde um homem trabalha como torturador. Ele quebra ossos de pessoas que devem dinheiro. Sem sentimentos, sua primeira cena é uma masturbação. Surge em sua vida uma mulher que confessa ser sua mãe. Ele bate nela, a humilha... O tema é religioso, Duk é budista. Todos cumprem carmas aqui. Mas o filme é aborrecido, sem emoção, frio. Nota 2.
   A FILHA DA MINHA MULHER de Bertrand Blier com Patrick Dewaere
Blier sempre ousa. Às vezes acerta, e quando acerta faz um filme soberbo como Corações Loucos. Quando erra faz um filme irritante, como este. Dewaere é casado. A esposa morre e lhe deixa a filha de outro casamento. Ele rouba-a do pai verdadeiro e ela o seduz. Cenas de cama, nudez, tudo liberado. Sem culpas. Hoje seria pedofilia, em 1981 era apenas "bem louco". O filme é árido. Não há emoção, tudo é feito sem sentimentos e sem sentidos. No final ele fica sem sua enteada, mas já de olho numa menina de 9 anos, filha de sua nova esposa-adulta. Dewaere era ídolo do cinema francês. Aqui já mostra as marcas do vicio que o mataria em seguida. Parece um zumbi doente. Como disse, Blier é sublime ou nojento. Nota 3.
   LONGA JORNADA NOITE ADENTRO de Sidney Lumet com Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards e Dean Stockwell
Eugene O'Neill foi, entre 1930-1960, o rei da intelectualidade americana. Um tipo de ídolo-gurú de quem era sério. Segundo americano a vencer o Nobel, suas peças são poços de angústia, desespero, vazio. Esta famosa peça foi sua herança. Escrita, ela só pode ser encenada após a morte do autor. Isso porque ela é muito autobiográfica. Uma familia está reunida numa casa de praia. O pai é um vaidoso e muito sovina ex-ator. A mãe é viciada em morfina e mergulha na loucura. O filho mais velho é um alcoólatra raivoso. E o mais novo é tuberculoso e volta à casa após ser marinheiro ( esse é Eugene O'Neill em auto-retrato ). A peça exibe as brigas, culpas e o aniquilamento do grupo familiar. É um tipo de texto que marcou a arte americana. Até hoje americanos sérios acham que arte deve ser assim, uma longa jornada noite adentro. O filme é pesado, estático, teatral e interminável. Lumet nada faz para disfarçar sua origem teatral. O que vemos são os atores e seu texto. Kate não está bem. Ela exagera. Ralph dá um show. O pai é tolo, frio, auto-centrado, um pavão egoísta. Jason Robards nos aterra. Tem ira, tem medo, tem inteligência destrutiva. E bebe. Dean está ok. Frágil, titubeante. Tennessee Willians roubaria de Eugene a centralidade do teatro americano. A ênfase deixaria de ser masculina-problemática e passaria a ser feminina-sonhadora. O filme não é bom. Mas vale a pena. 
   ANNA KARENINA de Joe Wright com Keira Knightley, Jude Law, Mathew MacFayden
Um grande filme! Dias depois ainda está em nossa alma. Bonito, forte, bem dirigido e muito bem interpretado, é o melhor filme de 2012. Algumas de suas cenas são obras-primas em encenação. Joe sabe tudo de montagem, de fotografia, orquestra uma polifonia de rostos e de vozes que fazem sentido todo o tempo. O filme, arriscado, nunca se perde. Navega pela obra de Tolstoi sem nunca ficar a deriva. Não é perfeito, não poderia ser, Tolstoi não se presta a simplificações. Mas em termos de cinema é um triunfo. Joe Wright ainda não errou. Nota 9.
   UM PARTO DE VIAGEM de Todd Philips com Robert Downey Jr., Zach Galifianakis
Não tem graça. E pior, para quem conhece um pouco de cinema, dá para notar cada um dos plágios. Todd usa dúzias de ideias de outros filmes. Rouba, não cita. Mas, pasmem, o filme não é ruim! Graças a dois atores com carisma, voce consegue assistir toda aquela bobagem e melhor, é um filme curto. É sobre dois caras que são obrigados a cruzar 3 estados americanos juntos. Sim, Steve Martin e John Candy fizeram isso melhor em 1988... Nota 5.

MAR, POEMAS DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

   "O olhar procura reunir um mundo que foi destroçado pelas fúrias."
Assim começa o poema O SOL, O MURO, O MAR, talvez, o mais belo dos poemas escrito em português dos últimos 50 anos. Sophia, visitando a Grécia, descreve um muro, o branco da cal. Depois fala das sombras que o sol faz. O mar. E acaba por reconhecer o Sagrado presente naquele lugar. Como se dá esse reconhecimento? Sophia olha.
   Nossa língua tem uma tradição de poesia íntima. Poesia para nós, ao contrário do que se pensa na Inglaterra, é confissão. O poeta em português expõe-se. Sophia nesse sentido NÂO se parece conosco. Ela olha para fora e nesse olhar encontra o sentido das coisas. Como fazem os ingleses e às vezes os alemães, ela procura no mundo. Não dentro de sua alma, mas sim a alma das coisas.
  Eu disse ser O Sol o melhor dos poemas? Mas então o que falar de O MINOTAURO? Ela diz que "sem drogas e sem vinho" é possuída por Dyonisus. O tema é a iluminação. Em Creta ela tem uma epifania. Ulysses e todos os deuses de volta. A vida fazendo sentido. No mundo nada que é humano tem valor. Nada tocado pelo homem tem vida. A verdade está nas coisas. Sophia nos conta essa verdade. Na praia nessa ilha, ela vê. Sente os deuses do paganismo e percebe a beleza eterna da vida. A vida eterna na beleza.
   "...a água que fala calou-se."
   Esse é o final de O CREPÚSCULO DOS DEUSES, poema de terrificante beleza. Nele ela constata a impossibilidade da felicidade em nundo onde se foram os deuses. Sem eles, nada mais fala conosco. Sós, abandonados, vagamos sem para que. Os versos brilham como areia. Chegam a cegar. Ofuscam.
   O que mais dizer de Sophia?
   " Eu me busquei no vento e me encontrei no mar
     E nunca
     Um navio da costa se afastou
     Sem me levar"

ANNA KARENINA, FILME DE JOE WRIGHT

   Presos num teatro. Anna, Vronsky, todos vivem no palco dos costumes, das convenções com eventuais escapadas para os sujos bastidores. Menos Lievin, desajeitado personagem "fora do palco". Tom Stoppard, o roteirista, que é um dos mais importantes autores de teatro de hoje, entendeu bem onde vive o centro da coisa. Joe Wright, com absoluto dominio da técnica de cinema, teve o talento de transpor essa ideia para a tela. Em seu quarto filme, o diretor inglês prova ser o melhor dotado dos diretores em atividade. Sabe fazer cinema, fala com cortes, movimentos de câmera, cores. Tudo em sua obra tem a marca de um diretor que sabe o que quer. Nada ao acaso, nada gratuito. Em termos de know-how sua arte é uma aula. Os primeiros trinta minutos deste filme são absolutamente geniais. Ophuls ou Powell ficariam felizes em ver o que Wright faz. Depois o filme cai, não por erro de seu diretor ou de seu bom elenco, mas por ser Anna Karenina obra infilmável. Diante da cordilheira intransponível que é a obra-prima de Tolstoi, o filme até que se sai muito bem. Lindo de se ver, inteligente em suas decisões, tentando não tornar a trama superficial,( risco de toda adaptação de alta literatura para o cinema ), é este, de tudo que vi, o melhor filme de 2012. Tão melhor que provávelmente terá pouco público. É um filme que exige atenção, sensibilidade e bom gosto, tudo o que o público frequentador de cinema não tem.
   Anna morre por ser uma tola. Muita gente diz isso e tendo a concordar. O filme foge dessa conclusão. Um dos méritos da obra de cinema é a de que ela não vê Anna como eu vejo. A leitura de Stoppard é diferente da minha. E mesmo assim gostei muito do filme. Wright e Stoppard modernizam um pouco a personagem. Ela é quase uma mulher de 2012. Presa nas redes de 1880. Mas será apenas o moralismo sexual o assassino de Anna Karenina? Fosse escrito hoje, como Anna se salvaria de sua falência afetiva? Trabalhando e sendo uma "mulher livre"? Quase no fim do filme tive esse insight: Estamos tão aferrados a nossos costumes de hoje que pensamos automáticamente no trabalho como cura e liberdade. Por outro lado: O que uma mulher faria hoje para ser estigmatizada como Anna? Qual o pecado de 2012?
   A visão de Tolstoi no livro, que não sei se fica clara no filme, é a de que o amor puramente erótico leva sempre a destruição. Anna, o amante e o marido, estão presos em seus desejos. O marido em seu mundo de poder e de politica, Anna e Vronsky em seu desejo um pelo outro. Esse tipo de amor levando necessariamente ao fim, seja dele mesmo, seja da familia.
   Muito do amor que tenho pelo livro, um dos dois ou três que mais me emocionaram na vida, se deve ao personagem de Lievin, a voz de Tolstoi no livro. Perdido, rico, com sérias dúvidas sobre religião e sobre o sentido das coisas, Lievin tenta se livrar da angústia no trabalho. Mas não no puro trabalho "acumulativo", ele vive um tipo de comunismo ingênuo, usa as mãos para trabalhar, tenta ser um de seus empregados. Mas isso não o alivia. Então, em páginas que guardo como um tesouro, ele descobre que o amor só pode ser feliz se for dado a todo o universo. Lievin ama Kitty, mas o amor dos dois sobrevive porque se esparrama ao seu redor. Amando Kitty ele ama a vida, e amando a vida ele passa a trabalhar pela e para a vida. Tolstoi viveu isso e após a grande crise que sofreu em meio a redação de Anna Karenina, ele cria um tipo de cristianismo-socialista-franciscano-proto hippie que fez dele uma pessoa perseguida na Rússia e ao mesmo tempo venerada pelo mundo inteiro. Em 1900, 1905, intelectuais viajavam ao interior da Rússia para ver o mestre. Como mostra o recente filme sobre seus anos finais, sua fortuna foi dada aos camponeses.
   Lievin aqui é feito por um ator que tem o rosto e a voz de Lievin. escolheram muito bem. Mas puxa! Eu queria mais Lievin, please! A cena final, quando ele vai falar a Kitty que teve uma ideia e pega o filho no colo é belíssima. Em meio a montes de cenas belas, é talvez a mais bela. Não esquecerei daquela folha verde com a água da chuva a escorrer...
   Como não esquecerei a neve no trem, o campo sendo arado, a cena de reprovação no teatro, a corrida de cavalos....
   Termino este texto dizendo que é um prazer voltar a ver "um filme" feito em 2012. Um filme que é cinema. Feito de cortes, de cenários, de diálogos e de atores. Com ação e pensamento, com ideias e ideais. Coragem e extremo bom gosto. Nada de forçado, sem apelações. Sim, não é uma obra-prima, mas em tempo sem grandes filmes e sem grandes histórias, Anna Karenina e Joe Wright são uma grande esperança e um belo consolo.
   Que bom!

YOUTUBE, TYNAN E COLUMBIA

   Acho que foi a Veja que publicou. Uma matéria sobre o admirável mundo novo do youtube. Eles listam algumas das maravilhas que o tube botou a disposição de todos: Michael Jackson e o show dos Jacksons onde ele cria o moonwalk, Mick Jagger cantando no programa Shinding em 1964, Os Monty Python na Tv em 1968, ou seja, antes do programa deles, e por aí vai... As dicas e o texto é ok, mas isso é chover no molhado. Ou não? Bom, eu espero que voce, mocinho curioso, use o tube para ver "aquilo que voce nunca viu". As coisas que mais me impressionaram no tube: A voz de William Butler Yeats recitando um poema, imagens de Renoir em seu jardim, Jimi Page tocando violão na BBC aos 14 anos, um documentário sobre Man Ray, John Gielgud recitando Shelley, o MC5 tocando num campus em 1970, David Hamilton sendo entrevistado, um show de LSD em Londres, imagens do Kon Tiki originais, jogadas de George Best... tanta coisa mais que vi nesse canal aberto... Para quem tem alguma vontade de saber, de ver, uma mina inesgotável.
   A Folha malhou Hitchcock. O Estado deu duas páginas e gostou. Os dois botaram o show de Elton nas nuvens. Elton John foi muito malhado por punks e por wavers. A vingança tá aí. O tempo faz a verdade surgir. Um dos textos chega a fazer poesia. Diz que Rocket Man continua viva, nova, emocionante. Elton parece ainda interessado, criando e recriando, dando o que deve ser dado, a verdade. Fico feliz em ler isso.
   Festival Tarantino. Voces têm a chance de ver AS 36 CÂMARAS DE SHAO LIN e VANISHING POINT na telona. São filmes que Quentin ama. São filmes que eu amo.
   Kenneth Tynan dizia que existiam filmes bons-bons e filmes ruins-ruins. Mas que mais interessantes eram os ruins-bons e os bons-ruins. Tarantino faz filmes ruins-bons. PT Anderson fez um filme que é bom-ruim. Tarantino parte do que é considerado ruim ( western spaguetti, mentiras históricas, violência de HQ ) e faz algo de muito bom com esse lixo. PT, assim como Spielberg em Lincoln, parte de algo bom ( boas intenções, seriedade culta, verdades ) e faz algo de entediante, flácido, sem porque. Eis o bom-ruim. Duro de Matar 5, como todos da série, é um filme muito ruim que é muito bom. De uma montanha de lixo se faz uma diversão muito legal. Delicia!
   Depois de ler a história da Universal Studios estou lendo a história da Columbia. Engraçado, são as duas grandes que menos gosto. Queria ler a história da Warner e da Paramount, mas não há. O Brasil é uma pobreza em livros! Saiu um livro lá fora que conta a história dos porres e da amizade de Peter O'Toole, Richard Burton, Albert Finney e Peter Finch. Adoraria ler. Vai sair aqui? Jamais!
   A Columbia tem poucos filmes em sua história que eu adoro. Era o estúdio dos filmes mais familia. Mas tinha Frank Capra. E depois as fantasias de Ray Harryhausen. O legal é que eles tinham uma divisão na Inglaterra. Foi essa equipe que fez Lawrence da Arábia e A Ponte do Rio Kwai. Mas o livro é ok. Montes de fotos. Média de 25 filmes feitos por ano.
   O verão se vai e o inverno não virá.