O SAPO NA RUA E A COBRA QUE NUNCA FOI COBRA NA QUADRA ( ELA É UM ANFIBIO )

   A rua tem trãnsito e tem asfalto e casas e prédios. E quando são cinco horas, seis, os carros passam e a molecada corre e grita de vida. E eu fico vendo.
   Mas eu juro, e tenho seis testemunhas, que ontem, 2012, um gordo sapo marrom cruzou a rua em meio aos carros e foi se colocar ao lado de uma árvore. Sem poder pensar, a gente foi até o sapo e pegou ele. Botamos o sapo no jardim em meio ao mato. E isso me fez pensar.
   A quadra da escola é uma quadra como é toda quadra da escola. E no canto tem o jardim do sapo. Então os alunos começam a gritar e eu e a professora vamos ver o que tem pra se gritar tanto. No meio da quadra tem um bicho cor de gente sem melanina. Uma cobra curta que não é cobra e que todo mundo chama de cobra-cega. Ela se fica sobre o cimento. Pegamos ela e a deixamos no jardim. A cobra que nunca foi cobra faz o que ela adora fazer. Mergulha na terra e desaparece. E isso me faz pensar.
   Este bairro, que é o bairro onde nasci, era um vazio cheio de coisas. E elas vinham todas da terra. Era cobra, cega ou de verdade e cupim. Era sapo e rã e nascentes e mamona. pàssaros. Penso que essa terra morou em minha cabeça e pede às vezes pra que eu lembre de voltar a deixar morar. Como fala Manoel de Barros, um menino me inventou. E pra mim um lugar me construiu.
   Nossa cabeça tem um espaço e se a gente lota esse espaço de razão e de coisas pra fazer não sobra espaço pra mais nada. De vez em sempre é bom jogar coisas fora e ver o sapo surgir sobre o asfalto e a cobra na quadra de cimento. Isso tudo eu chamo de milagre, de beleza e de poesia.
   Se eu cavo brota minha alma. Que não é minha, eu sou invenção dela.
   Saudade do sapo.

CINCO SEMANAS EM BALÃO- JULIO VERNE

   Verne foi o mais lido escritor do mundo. Isso até quase agora. Quando eu era criança todos liam Verne na escola. Eu li A Volta ao Mundo em 80 Dias e Viagem ao Centro da Terra. Aliás, o cinema amava Verne. Tudo dele virou filme. Viagem ao Centro da Terra com James Mason é duca!!! Mas Verne não vai mais voltar a moda. A não ser que cortem as partes politicamente incorretas de seus livros. Ele escreve como um europeu normal de seu tempo. Quando ele topa com um negro, um chinês ou um indiano, ele vê sempre um ser muito superior ( o europeu ) diante de um homem ingênuo e primitivo ( o outro ). Mesmo para um cara anti-politicamente correto como eu, isso incomoda..Neste livro por exemplo, negros são mortos alegremente. Quando não, são confundidos com macacos. Fora o fato de que um dos heróis mata elefantes como se mata uma barata. Todo animal é uma besta terrível. E portanto deve ser morto.
   Três ingleses partem num balão para cruzar a África. Eles pretendem mapear o centro africano, a região onde nasce o Nilo, que em 1862 era desconhecida. Verne tem o dom da aventura. Apesar de se passar inteiro dentro de um balão e de ter só três personagens ele jamais entedia. Percebe-se também a diferença entre a literatura francesa e a corrente inglesa. Verne explica o funcionamento de tudo. Ele ansia pelo possível, cria uma fantasia que deve ser explicável, racional. Nunca se joga na fantasia pura.
   O melhor do livro são os relatos dos exploradores que morreram no continente. Verne consegue criar o clima de "buraco negro" que era a África de então. Cada quilômetro percorrido é um passo dentro do perigo, do jamais visto, da aventura. Desertos, montanhas, tribos, bichos, falta de água, tempestades. Um prato cheio.
   Julio Verne foi um dos fixadores do que se conhece como "escritor profissional". Produziu dezenas e dezenas de livros, todos com temas que uniam aventura e viagens exóticas. Todos em linguagem simples, direta. Vale lê-lo ainda hoje? Vale como retrato de um mundo ainda virgem, do auge do poderio europeu, e da fórmula ainda usada da viagem exterior, do ir onde ninguém foi. Se voce conseguir ignorar o massacre aos diferentes, voce vai se divertir.

FRANK SINATRA/ BRANDO/ MEL GIBSON/ MONICELLI/ JEAN COCTEAU/ DORIS DAY/ GILLO PONTECORVO

   OS COMPANHEIROS de Mario Monicelli com Marcello Mastroianni, Renato Salvatori, François Perrier e Bernard Blier
Norte da Itália, fins do século XIX. Estamos numa fábrica, entre seus operários. Eles vivem em condições miseráveis, trabalham 14 horas por dia. O filme acompanha sua tentativa de obter melhores condições de vida. Uma greve acontece. Mastroianni é um professor pobre que aparece do nada , e que procura organizar os operários. O filme adota um tom quase documental. Não é o Monicelli humorista, é um filme de esquerda, como tantos em seu tempo. Ele consegue nos deixar revoltados e comovidos ao exibir o contraste entre as crianças operárias e os donos da fábrica. Mas hoje sabemos onde o esquerdismo iria dar...Teremos nos tornado mais cínicos? Admitimos a vitória do capital ? Porque nos é tão dificil tomar pura e simplesmente o partido dos explorados? Bem...é um filme forte. Nota 7.
   SANTO ANTONIO de David Butler com Erroll Flynn e Alexis Smith
Não é um dos bons faroestes de Flynn. Falta um melhor vilão, falta um personagem melhor definido para seus talentos de estrela. Ele já estava aqui no inicio de seu fim, as marcas dos excessos e dos escândalos já se podem notar. Mas é ainda uma produção de bom nivel da Warner. Alexis faz uma cantora de saloon e Flynn é um forasteiro que tenta livrar a cidade de seus bandidos. Apenas isso. Nota 5.
   QUEIMADA! de Gillo Pontecorvo com Marlon Brando
Em seu livro Brando diz ser este seu melhor papel. Não é. Posso citar cinco atuações melhores de Brando ( Um Bonde, O Chefão, Tango, Os Pecados de Todos, A Face Oculta ). Mas é um grande filme e uma grande atuação! Ele conta no mesmo livro ter discutido muito com o diretor. Pontecorvo insistia em fazer um filme completamente de acordo com a cartilha marxista, Brando queria mais sutileza. E lhe revoltava ver que um marxista como Pontecorvo explorava os figurantes de um modo tão óbvio. Mas ao mesmo tempo ele elogia o diretor e o filme. Com uma trilha sonora mágica de Ennio Morricone, o filme mostra a história de William Walker, um enviado da Inglaterra que "ajuda" os escravos negros a se livrar de seus senhores. A coisa se complica quando esses mesmos negros se voltam contra Walker, que afinal era apenas um novo explorador. Brando consegue refinar Walker. Ele é apenas um funcionário da Inglaterra, sem opiniões e sem nenhuma paixão. Faz um jogo impecável, obtém o poder para os ingleses, mas não vê nada de glorioso ou de errado nisso. Marlon Brando foi um gênio. O filme é muito bom, uma soberba aventura marxista. Um tipo de western de colonizados. Nota 8.
   O PIRATA de Vincente Minelli com Judy Garland, Gene Kelly e Walter Slezak
Numa ilha do Caribe, moça sonha em conhecer o famoso pirata Mococo. Mal ela sabe que seu ridiculo noivo é Macoco. Kelly faz o papel de um ator de circo, que para a conquistar finge ser o pirata Mococo. Músicas de Cole Porter em filme que não é um dos geniais musicais da época, mas que está longe de ser vulgar. Hiper colorido, alegre, cheio de vida e com belas canções, seu ponto fraco são as coreografias. Minelli e Kelly fariam bem melhor em outros filmes. Nota 6.
   ORFEU de Jean Cocteau com Jean Marais, Maria Casares, Marie Dea
Ou voce ama ou odeia. Cocteau traz o mito de Orfeu para a França de 1950. Para gostar voce deve se despir de linearidades e razões. O filme é só poesia. As coisas acontecem como em sonho e Cocteau tinha o dom para isso. Vê-lo é de certa forma como sonhar. Em dado momento voce perde a certeza de estar vendo um filme. Porém, se voce procura uma história emocionante ou um espetáculo, fuja. Os filmes de Cocteau, em que pese sua poesia, sempre resultam frios, distanciados. A fotografia é belíssima e surpreende a elegãncia francesa de então. São belas roupas e belos décors. Nota 7.
   PLANO DE FUGA de Adrian Grunberg com Mel Gibson
Mel Gibson era um excelente ator de ação. Como Bruce Willis, ele conseguia fazer tudo o que Stallone ou Arnold faziam, mas com muito mais humor e uma dose refrescante de hironia e inteligência. Mas após os Oscars de Braveheart Mel pirou. Aqui ele volta a ação pura e consegue ser outra vez o ator irônico que eu e minha geração adoramos. Mas o filme não é digno dos talentos do ator. É um desses filmes que tem prazer em mostrar dor, sujeira, destruição e vísceras. Ele é um americano em prisão mexicana. Lá ele tenta se dar bem. E é só. Eis a estética do cinema deste século: o prazer em se ver coisas sendo destruídas e sangue espirrando.  Moral: O mundo é uma merda. O filme também é.
   YOUNG AT HEART ( JOVEM NO CORAÇÃO ) de Gordon Douglas com Doris Day, Frank Sinatra, Gig Young, Dorothy Malone e Ethel Barrymore
Uma surpresa. O filme mostra aquilo que se conheceu como a tipica familia americana feliz. Uma familia de musicos felizes com três irmãs. Duas namoram, Doris não. Chega a vizinhança um alegre, confiante e rico compositor. Não, não é Sinatra, é Gig Young. Doris se enamora dele. Mas ele tem um amigo, e só no meio do filme surge Sinatra. E que impressão ele causa! Mal humorado, pobre, pessimista, Sinatra faz uma imitação de seu amigo Humphrey Bogart que magnetiza o filme inteiro. E quando ele canta, com sua voz no auge da forma, tudo fica muito mais real. Doris foge com ele e juntos passam momentos ruins. O filme, que surpresa, é muito bom. Tem a doçura saudosista da América em seu apogeu, e também anuncia a amargura daquilo que estava reprimido. Doris é encantadora. Nota 8.

Man Ray Part 6



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ROGER SCRUTON E A VERDADE DO QUE É BELO

   André Assi Barreto escreve na revista Filosofia sobre Roger Scruton. Eu nunca tinha ouvido falar de Scruton, pensador inglês nascido em 1944. E já aviso: sou partidário dele. Outra coisa, ele é considerado um "lutador por causa perdida". Ótimo. Eu também sou. Vamos ao que André fala sobre Roger.
   Marcel Duchamp colocou um mictório como obra de arte. E a partir de então, tudo pode ser arte. Em 1960 chegou-se ao ponto de lata cheia de bosta de um artista ser exposta como arte. Arte passou a se confundir com "chamar a atenção da midia", criar algo de sensacional, e convenhamos, é muito mais fácil criar sensação mostrando merda ou vísceras podres de um boi, que criando beleza original. Esse é o ponto central de Roger Scruton. O mundo só poderá ser salvo se o conceito de belo for salvo.
   Artistas modernos se defendem dizendo que o público que os renega não tem a linguagem e a sensibilidade para os entender. Desculpa tola. Picasso era moderno e belo, assim como Pollock e Kandinsky. Não se trata de negar toda a arte do século XX, mas sim separar os espertalhões dos artistas.
   Scruton foi tema de programa na BBC. Sua tese central é a de que a beleza é tão verdadeira e eterna no homem como é a bondade e a verdade. O homem aspira a beleza como aspira ao bem e a verdade. Em 15000 anos de cultura esse valor sempre esteve presente e não são meros cem anos que podem destruir esse fato. O homem tanto aspira ao belo que assim que pode,  procura praias, montanhas ou recantos "belos". Há em Londres um fenômeno interessante, lojas que estão instaladas em imóveis vitorianos são muito mais valorizadas que aquelas em locais modernos-feios.
   Mas desde ao menos 1910 se faz essa confusão entre o sensacional e a beleza. Artistas incapazes de produzir qualquer coisa verdadeiramente artística passaram a desvalorizar e a zombar do que fosse "apenas" bonito. O feio passou a significar coragem e verdade, a beleza seria mentirososa e passadista. Ora, por mais de dois mil anos a arte serviu como consolo, elevação espiritual, meio de refinar o gosto. Pois a arte hoje aumenta a dor, promove o rebaixamento e esteriliza a sensibilidade. É como se ela tivesse a função de nos acostumar ao pior, ao mínimo, a conformidade da vida das fábricas, da violência e da dor. Seria isso por acaso?
   Se antes a arte dava sentido a vida, hoje ela quer apenas causar impacto. Profanar o sacro, cultuar o feio, promovendo assim a confusão, o vale tudo, o tudo pode ser arte. Isso nos lembra algo? Não é essa exatamente a tese do mercado? Tudo pode ser um produto, desde que bem divulgado. Sendo agressiva, sensacional, contra alguma coisa, a arter se torna "útil". Como dizia Oscar Wilde, o primeiro mandamento do belo e da arte é ser "completamente inutil". O que há de útil em uma música bonita, uma pintura bela ou um filme lindo? Mas "os artistas" fazem músicas sujas, pinturas terríveis, filmes duros e violentos, seriam obras úteis, ou são assim vendidas. Teriam a função de abrir olhos. Olhos para ver o que? Mais coisas feias.
   Construir e vender um prédio feio como moderno e social é muito mais fácil que tentar construir um prédio belo e apenas isso, Belo. Não se esqueçam disso.
   Fruir o belo é uma atividade inutil. Desinteressada. Como o amor ou a amizade, não há um objetivo aqui. A utilidade prática fica em segundíssimo plano. Na arte clássica esse era o objetivo: a arte como bálsamo e elevação de consciência. A criação era valorizada. Belo era o criativo, o vitalista, o potente. Agora se valoriza o banal, a quebra de tabús, a exaltação de sentidos. Tudo isso parece útil e criativo, Scruton mostra que o banal é realmente banal e a quebra de tabús é apenas histeria impotente. Não se cria, se odeia aquilo que outro criou.
   Roger Scruton só poderia ter nascido na Inglaterra. Dou um exemplo do que isso significa. Tenho um professor que em aula de literatura exaltou Balzac e Stendhal ( que adoro ), às custas da Inglaterra. Para ele, a literatura inglesa do século XIX é um nada absoluto, enquanto a francesa é o máximo. Sua explicação é a de que "enquanto a França fala de temas modernos, a Inglaterra ficou presa ao passado e a livros infantis!". Pois eu disse, isso é um ponto de vista. Posso dizer que a literatura francesa se resume ao tédio de esposas traindo maridos e caipiras querendo viver em Paris. Enquanto que a Inglaterra se preocupava muito mais com a criatividade, com o absurdo, o excêntrico e o humor. A resposta de meu mestre? Conforme-se então com seu David Copperfield.........
   Falei isso para voltar a Roger Scruton e dizer que ele culpa Foucault, Deleuze e que tais pela filosofia que prega o "tudo é válido, nada tem hierarquia, cada voz deve ser ouvida". Scruton vai ao cerne: Se tudo é válido então ouvir um Nobel falar sobre a escrita tem o mesmo valor que um semi-analfabeto?
   Estamos proibidos de falar que uma cultura é superior a outra. Não podemos condenar a escravidão feminina em certas nações, "pois é a cultura deles". Tudo se tornou relativo, e nesse universo não se pode dizer que o belo é melhor que o feio. A resposta do fã de Foucault sempre será: "O que é o belo? .."..E após essa pergunta ( na verdade sem sentido ), o relativismo se impõe e o belo se perde. Todos sabem o que é belo como sabemos o que seja bom ou verdadeiro. Relativizar é fugir da verdade.
   Dizer, como dizem os franceses, que só existe Gosto e não o Bom Gosto é falso. É como falar que não existe o bom e o mal, o feliz e o triste, o certo e o errado.  Esse relativismo é um totalitarismo. Brutal.
   Com a palavra Scruton: " A beleza pode ser consoladora, perturbadora, sagrada, profana, hilariante, atraente, inspiradora. Afeta-nos em variadas maneiras. Mas nunca é vista com indiferença. Fala a nós como um amigo íntimo. Se existem pessoas indiferentes à ela, é porque perderam o poder de olhar."
   Roger Scruton é filósofo por Cambridge. Segue Platão e Kant. Acredita na aristocracia pré-Segunda guerra. Reacinonário assumido, rejeita toda militãncia politica. Como todo reacionário, Scruton é "santo padroeiro das causas perdidas". Tem livros sobre música, o pessimismo, e a supremacia da cultura Ocidental.  Altamente rejeitado pela inteligência acadêmica oficial, principalmente por suas críticas ferozes a Foucault, Derrida e o multi-culturalismo.
  Seu jogo já está perdido. Mas quem ganhou, ganhou o que???

A PRAIA SELVAGEM e O ÍDOLO CAÍDO-ROBERT LOUIS STEVENSON

   Me surpreende sempre observar como Stevenson tem boa acolhida neste blog. Sempre que falo desse autor escocês logo vêem respostas. O motivo é claro, Robert Louis Stevenson toca em sentimento muito vivo hoje. Ele é um desenraizado.
   Faz parte daquele grupo de europeus do fim do ´seculo XIX, que cansados dos excessos da época ( racionalismo, moralismo, militarismo ), procuravam ares mais livres em lugares como o norte da África ou os mares do sul. Stevenson foi pra Polinésia, e não pense que lá achou o paraíso. O que encontrou foi um misto de vicio sedutor e inferno pacífico. Eis o livro.
   Ele tem dois contos. O primeiro é A Praia Selvagem. O que temos aqui é o medo. Um negociante inglês chega a ilha de mares tropiciais. Tem dificuldade em se estabelecer e ainda enfrenta um comerciante que invoca feitiçaria para o subjugar. O clima é opressivo. O tom é de aventura.
   O segundo conto se passa na Inglaterra. É sobre o amor de dois jovens. Um amor que dá errado por causa de um pai rígido e de um outro bêbado. Há um final feliz bastante artificial. Mas é estranho, esse falso final feliz deixa o conto ainda mais triste...
   Stevenson faz parte do time dos escritores que escrevem "enredos". Eles não são formalistas, não são fissurados por estilo e modos de escrever. O que procuram é contar uma boa história, cheia de eventos, de fatos e de gente. Nesse sentido Stevenson é soberbo.
   Um bom livro para se ler num bom sofá sob a luz de um abat-jour de canto. Acho que voce me entende, não?

Anouar Brahem : Le pas du chat noir



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LE PAS DU CHAT NOIR- ANOUAR BRAHEM

   Indo para a USP. Trãnsito parado. Anouar Brahem em cd. Muda tudo. A música tem esse poder. O ritmo artificial do trãnsito parado e dos motores cessa. A música traz a paisagem o ritmo da própria paisagem. Olho o canteiro sujo, as casas velhas e o mato na calçada. Olho as pessoas que caminham, o sol no céu e um sabiá que levanta vôo. A fumaça que o carro da frente expele, a moto que corre. O ritmo é outro.
   A vida tem uma velocidade, o gato que anda tem sua música. A água evapora em tempo todo seu, a planta cresce em dança que não capturamos. Mas agora eu a capturo. A música é esse mundo da planta crescendo.
  Anouar Brahem mistura música árabe com Debussy. Etéreo. Ele é todo sutileza e relaxamento sensual. Seda. A música nasce e não acontece. Ela dá a impressão de não existir. São fiapos de melodia e imensas harmonias. Piano que divaga, acordeon que não nasce e o oud, instrumento de corda que seduz sussurrando.  A música é uma constelação de interrogações. Se Wagner, o rock e as big bands são afirmações triplas, aqui o sinal é o da interrogação. Onde irá a melodia? O que é esta sinuosidade? Porque é assim?
  As sombras das árvores passam sobre meu carro e eu quase saio de mim.
  Quem precisa de drogas?

The Who - The Seeker EU ADORARIA QUE MINHA VIDA FOSSE MÚSICA DE COLE PORTER CANTADA POR FRED ASTAIRE....MAS ELA É ESTA CANÇÃO!!!!!!



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O ROMANCE DE TRISTÃO E ISOLDA- JOSEPH BÉDIER

   Denis de Rougemont, em seu livro sobre o nascimento da paixão, revolução mental ocorrida por volta de 1.100/1.200, cita por várias páginas Tristão e Isolda como o símbolo máximo do que seja a paixão como o Ocidente a entende. Pois bem, finalmente leio sua lenda, em versão do final do século XIX, mas que conserva todo seu medievalismo. O que posso falar? É das coisas mais fortes que já li.
  Tristão desde sempre cresce como um ser marcado. Ele não tem uma familia e é adotado por um rei. Primeiro fato: Nossas recorrentes fantasias de termos sido adotados, de termos um pai "de verdade" em algum lugar. Pois bem, Tristão é triste ( vem daí seu nome ), e vai à Irlanda para trazer ao rei sua noiva, a bela Isolda. Mas os dois, em mero acidente do destino, bebem de uma poção que faz deles apaixonados. Ou seja, eles não são donos de sua paixão, ela é uma armadilha que independe de vontade. Nada pode ser mais modernista que essa ideia. Daí para a frente o que os dois vivem é um eterno sofrimento, "mesmo quando estão juntos". A ideia que Isolda repete sempre, e que é o mote de toda a arte sobre a paixão desde então, é: "Impossível viver sem ele, impossível viver com ele".
  Não pense que temos aqui um simples livro sobre amor proibido ou infidelidade. Não! O rei compreende o amor dos dois, ele ama a Tristão, compartilha de sua dor. O que nos deixa surpresos é que a felicidade dos dois seria simples de alcançar, fácil, sem nada de tortuosa. Mas eles não percebem isso. Ou melhor, não desejam a felicidade. Eles optam sempre pela dor.
  É impressionante como os dois fazem de tudo para serem infelizes. Estão sempre partindo, se separando, tentando vencer a paixão, terminar a relação...e todo o tempo voltam derrotados, se reencontram e são felizes por apenas um ou dois dias, para logo retornar o medo, a dor, o compromisso com o rei e com a sociedade. Tristão irá até mesmo se casar com outra, em vão, e Isolda tentará ser a boa esposa do rei, é derrotada. O destino brinca com os dois e desde o começo eles sabem que somente a morte poderá os unir definitivamente.
  O livro nos coloca no mundo medieval. É um mundo de violência. Se mata muito, cabeças decepadas são exibidas como troféu e dadas como presente. Mas o amor dos dois, apesar de conter sexo, é estranhamente casto. Há algo de etéreo nesse amor, nessa paixão, eles se abraçam e não mais se soltam, dormem nos braços um do outro, vivem em realidade de devaneio, não percebem nada do que fazem um com o outro. Sofrem, e jamais querem terminar com esse sofrimento. Suas separações nunca são separações, são ingredientes que temperam a relação violenta dos dois.
  Acontecem momentos em que a paixão parece morrer. O modo como Tristão sente Isolda quando ela "termina", para quem já passou por isso, é perfeito. Tristão vê e sente Isolda matando o sentimento, nesse momento o livro alcança alturas absurdas. Como é absurdo, e tão verdadeiro, o modo como ele enlouquece e a forma como Isolda não o reconhece. Ele se faz outro, o amor se vai, e ela o vê como um estranho. Mas a paixão volta mais tarde e os subjuga pela última vez.
  Quem já se apaixonou sabe: a paixão é uma forma de morrer. Morte em vida, morremos para tudo o que existe, menos para a própria paixão. Flertamos com a loucura, com a destruição e estamos sempre suspirando de dor e de tristeza. Porém, estranhamente, vivemos. Cada segundo é um segundo sem igual. Cada dia é um "torneio", uma "justa", um acerto de contas. As noites parecem explodir, os dias nunca se repetem, tudo dói e tudo vive.
  Tristão e Isolda viverão enquanto a paixão existir. Enlaçados e com uma espada entre seus corpos, transformados em espinhos, floridos nas manhãs, suspirando.

An Evening with Fred Astaire Part 5/6....ME PEDIRAM UMA DEFINIÇÃO DE SOFISTICAÇÃO...EIS A RESPOSTA



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UMA QUESTÃO DE CIVILIDADE

   Se a civilidade é um valor a ser desejado, e eu creio que é, nosso dever é lutar para que ela seja sempre predominante.
   Civilização é o oposto da violência. Sim, eu li Pondé e concordo que eu e voce somos violentos. Isso é biológico e histórico. A civilização é a tentativa de se domar esse impulso. Bela criação, a luta, inglória, para se deter um impulso natural. Portanto o civilizado é sempre artificial, criado pelo homem em negação ao puramente animal.
   A civilização então é anti-violenta e sendo assim, anti-natural. Ela vai contra a violência física, mas também a violência das paixões, e nelas podemos incluir o ódio, a vingança e as dores em geral. O homem civilizado não sente ódio, ele usa o humor contra seu inimigo. Ele não se apaixona, ele desfruta do amor. Não sofre inutilmente, ele canta ou sai para espairecer. Aqui fica claro: o civilizado não existe no mundo real. Ele é um ideal a ser perseguido e jamais obtido. Um homem ou uma sociedade civilizada é aquela que não desistiu da busca.
   Creio também que a civilidade se manifesta no modo como as mulheres são tratadas. Ela nasce com o fim do estupro, o controle do instinto e se desenvolve no modo como o homem se aproxima da mulher. Mulheres civilizam o homem, o modo como ele reage a isso demonstra sua civilidade.
  Por isso que Fred Astaire é o ponto extremo da civilidade em música. Ele é o oposto mais radical a funk ou coisas afim.
  Astaire canta sempre com calma, lentamente. Não há pressa em sua dicção, cada palavra é dita com precisão, de um modo delicado e sem jamais perder a firmeza da virilidade. As letras existem para serem entendidas e elas falam de mulheres como seres com valor. Elas são seduzidas, nunca "pegadas". Ouvir Astaire é um ato politico porque é uma tomada de posição. Contra a violência, contra a pressa e o ruído. Tudo é feito com cálculo, o senso da beleza está sempre presente. É um mundo ideal, onde os automóveis estão sempre limpos, a bebida sempre gelada e as ruas são pistas de dança. Um mundo que não existe, mas com o qual pessoas civilizadas têm compromisso.
  O cd que a Abril lançou ontem tem uma amostra dessa civilização. É o grau mais alto em elegãncia a que chegamos. Combina bem com P.G.Wodehouse, George Cukor e Mondrian. Desfrute.

FAMA E ANONIMATO- GAY TALESE

   Um amigo me empresta este livro. Entre baforadas de um cigarro esquisito ele me diz: "É do caralho!" Bem, eu o leio em dois dias. Do meu modo, entre doses de suco de laranja e rosquinhas de passas eu falo: "Deveras!"
 Gay Talese foi um dos pioneiros do Novo Jornalismo, e este livro tem de ser lido por todos aqueles que um dia quiseram trabalhar em jornal. Assim como Kane desperta desejos de fazer filmes e o Velvet Underground o desejo de montar uma banda, Talese deu a um monte de moleque a vontade de fazer reportagens. Mas, triste saber, o próprio Talese diz que esse estilo de reportagem acabou. Hoje os caras fazem toda a matéria sem sair da redação, via internet. Caraca! Chegam a cobrir uma tragédia urbana sem ir ao local do fato! Conclusão: Noticias frias, anônimas, de pouco detalhe ou vida. Impessoal.
 O Novo Jornalismo era jornalismo por se ater ao fato, a verdade, ao ocorrido, o Novo era o estilo, escreviam como romancistas. A reportagem se parecia com literatura, mas não, óbvio, a literatura empolada, era um tipo de Heminguay. Este volume contém um monte dessas matérias de Talese. É diversão, é informação e é arte. Sim, arte. Em três matérias ele atinge a altura do melhor da prosa do século XX.
 Basta ler o texto que abre o livro. Talese anda pela New York dos 50's e observa os tipos que encontra. Em frases simples e curtas ele fala dos estranhos retalhos de humanos que vivem e trabalham na cidade, dá os números de lojas originais, profissões bizarras e estatísticas insuspeitas. Aqui ele nada deve ao melhor de Cheever, Mailer ou Capote. O texto faísca em humor, em urgência e em criação. E nunca perde seu aspecto de jornalismo: informação e verdade factual.
 Gay Talese escreve então o melhor texto sobre Sinatra sem entrevistar Sinatra. Ele apenas o segue, pega informações e descreve a preparação de um especial de TV com o cantor. O que vemos é um Sinatra fragilizado, inseguro, e ao mesmo tempo forte, agressivo, protegido. Das páginas irrompe um homem-mito completo, o enigma permanece, mas muito dele é revelado. Obra-prima.
 Mas a coisa fica melhor ainda. O Perdedor é um soberbo texto sobre Floyd Patterson, ex-campeão dos pesados que vive recluso e disfarçado após perder duas vezes. Talese entra no cotidiano de Floyd, ouve e vê sua vida, está lá. Patterson se revela. Tem medo, tem raiva, tem arrependimento. Há uma cena na saída da escola da filha do pugilista que é antológica. Penso, e o texto confirma, que o grande campeão se mostra grande na derrota. Floyd é grande como homem e como motivo de matéria. Talese sabia tudo de escrita rápida.
  Há ainda matérias boas com o diretor de teatro e cinema Joshua Logan e com o grande Peter O'Toole. Peter voltando a Irlanda e demonstrando seu ódio ao país e as freiras que arruinaram sua vida. No auge da fama, Peter bebe e joga nos cavalos, paquera e é muito assediado, e enfim conta sua paixão pelo teatro. Um tipo esfuziante, um cara original, um dos meus atores mais amados.
  George Plimpton foi um ricaço que aos 26 anos em 1952 foi pra Paris fazer uma nova revista. A revista foi a Paris Review que publicou Philip Roth, Irwin Shaw, William Styron e James Baldwin. A redação era uma festa, o apartamento de George era uma festa. Corriam de touros em Pamplona, lutavam boxe, bebiam, ouviam jazz, viviam em roda viva. E eram donos da melhor revista. Em 1956 mudaram de rota, foram pra New York e lá fizeram tudo igual. Gente exótica no apartamento de George, redação anárquica, festas e festas e festas. O que eles queriam afinal? Ser Heminguay. Não sabiam que nem Heminguay foi Heminguay.
  Um texto sobre a Vogue. Hilariantemente delicioso.
  Joe Louis. Apesar de Ali e de Sugar Ray, não estranhe se alguém falar que Joe foi o melhor. Talese acompanha Joe Louis aos 48 anos, em sua rotina diária. Um cara que lutou pela causa negra nos tempos mais duros ( anos 30 ), um simpático exemplo para os negros. Um texto solar.
  Deixo o melhor pro fim. No texto sobre Joe DiMaggio, o astro do beisebol que foi marido de Marilyn Monroe e talvez o grande amor dela, Gay Talese atinge o sublime. O que vemos é um herói completo. Triste, lutador, cheio de segredos, ético, teimoso, vitorioso, desiludido. Pungente, emocionante, que me comam se este não é um dos melhores textos do século.
  Valeu amigo. Concordo com voce, livro do caralho!

CASCAS DE LARANJA, PETER SINGER, CLASSE C, FALSIDADES

   A nova classe média brasileira é uma mentira. Como diz Tales Ab'Sáber, são pobres que vivem em pobreza absoluta. Não têm acesso a educação e a saúde. Vivem na sujeira, na violência e em mundo de trabalho árduo. O que essa nova classe faz é consumir. Se antes o pobre não existia para a TV e os marketeiros, hoje são alvo. Consomem pobreza, compram produtos classe C. Continuam na miséria, mas vivem na ilusão de poder consumir. Comprar lixo. Isso faz parte da grande pacificação do Brasil ( e do mundo? ). Voce continua na merda, mas não reclame, afinal voce pode jogar, comprar e ter acesso a uma praça de alimentação.
   O caráter da pobreza foi apagado. O pobre antes tinha sua cultura da miséria. Sofria muito, tinha necessidades que não eram atendidas, mas era deixado livre para não consumir, não desejar o que nunca poderia ter, criar seus desafogos. Agora ele é acossado por apelos, cobranças e sonha com o que jamais terá. Cai na ilusão de um plano de saúde que é mentira, uma faculdade que nada vale, e aparelhos bonitinhos que são obsoletos já no ato da compra.
   Isso se reflete na arte. Para poder filmar, gravar ou escrever, é preciso entrar nesse jogo. Empobrecer a obra para poder ser mais um da nova classe média. Não mirar a elite ( que mentalmente também se faz classe média C ), e jamais pensar na pobreza real ( a nova classe C nega sua miséria ). Fica  então uma arte pobrezinha com brilharecos de pseudo-requinte. Uma sub Hollywood. Ou uma MPB classe C, pobreza disfarçada de ouro falso. Era muito melhor o pobre assumido, o samba crú do morro, o caipira tosco, o cinema popular vulgar, o cinema de arte marginal. Melhor por ser real.
   Peter Singer é um dos mais importantes pensadores de agora. Sua filosofia é a do Utilitarismo. Sua ideia é simples: tudo o que fazemos deve beneficiar o máximo de seres vivos. O que prejudica deve ser descartado. Tudo o que pode ser feito sem sofrimento deve ser feito sem sofrimento. Simples, óbvio e pouco usado. A coisa deve ser absoluta. Singer não tolera o sofrimento animal. A dor que damos ( sem motivo ) aos outros seres vivos traz consequencias a nós mesmos. Cada ato de violência contra um animal aumenta a presença de atos violentos no mundo. Nos acostumamos a crueldade e a ignoramos. Fingimos cegueira. Mas sabemoso o que é feito para que possamos comer um bife. A transformação da vida em máquina. É o mesmo processo que permitimos ser executado em nossa vida. Se o boi pode ser confinado e tratado como máquina de proteína, então aceitamos também sermos confinados e tratados como máquina que deseja e nunca obtém.
   Seguindo em meus pensamentos.... Ortega y Gasset: " A multidão se tornou protagonista. Não existem mais solistas ou personagens principais. Só o coro restou."
   Todas a crenças são rigorosamente falsas, incluindo-se a crença na descrença.
   Todas as crenças são verdadeiras. Incluindo a crença na descrença.
   Todo sistema totalizador ou autotélico é um sistema metafísico, por mais que se queira secular e posterior a morte de Deus.
    Os inventores de origens, no fundo, sempre acabam acreditando nas mentiras que um dia contaram para si.
    Michael Foley é o cara. Ou não. O que ele fala:
    A venda de laranjas diminui muito no mundo como um todo. Ninguém mais quer se dar ao trabalho de as descascar. No futuro alguém irá morrer de fome com uma laranja na mão. Não saberá o que ela é.
    Isso é a extrema infantilidade de nosso tempo. Como bebês, esperamos que a mamãe nos dê o suco pronto.
    O mundo atual nega a responsabilidade individual. Tudo o que fazemos pode ser creditado a genética, a evolução ou a neurologia. Nos fazemos escravos de um tipo de determinismo que em nada difere do pior das tiranias. Voce é o que é e nunca é responsável por seus atos. Não escolhe.
   Dito tudo isto, vou agora descascar minha laranja.

CECILIA MEIRELES

    Cecilia Meireles é uma daquelas autoras que deveriam ser hoje muito lidas. Para nosso tempo é ela um antídoto. Não porque seja ela "antiga", mas sim porque ela se debate com nossos problemas e dá a eles escapes poéticos. Cecilia era um anjo, era linda e tinha uma vocação poética gigantesca. Ela olha as coisas com olhos de eternidade. Seu mundo, que é o meu, não é feito de homens e de História, é antes mundo de pedras, formigas, ventos e de solidão, uma solidão que não é sózinha pois habitada pelo amor às coisas. Sagrado.
   Este minúsculo livreto contém crônicas de Cecilia. Mas serão crônicas ou poemas? São peças de sentimentos de poesia, diário sem data de vida em olhares claros. E como ela sabe olhar! Vê a vidinha boa de um cão amigo num tempo em que o amor aos cães ainda era esquisito. Aliás ela antecipa todo o tempo a onda verde, ela chora matas perdidas e paisagens corrompidas.
   E ela olha albuns de fotografias, vê o valor nos trabalhadores braçais, se indaga sobre a vida dos peões, imagina a existência dos bichos. Fala dos brinquedos e dos Natais mudados. Cecilia nos anos 50 já lamenta o comercialismo do Natal e pede o resgate do simbolismo original. E fala ainda da morte dos lutos, do fogo na floresta, chora um gato morto por moleques e se espanta com a dor de ter visto um cachorro doente e abandonado na rua. O sentimento dela vem dessas coisas, pois ela mesma sabe, ela é o cachorro velho e abandonado, ela é o gato judiado, ela é a floresta que queima. E é também a criança do Natal, a alegria dos brinquedos, as fitas que enfeitam os vestidos.
   É doce ler Cecilia, é doce é triste. É lindo.

Kinks - Waterloo Sunset [Excellent quality]



leia e escreva já!

ENCERRAMENTO: OLIMPÍADAS 2012, A FESTA

   Prefiro ignorar o fato de que George Michael parece hoje um cover de si-mesmo. Ou da assustadoramente ruim coisa pomposa chamada Muse. A forçada de barra com cantores pseudo-novos e com uma cantora ( quem? ) deixando Brian May constrangido com sua interpretação fake e vergonhosa de We Will Rock You. Os novos ingleses têm cara de almofadas.
   Prefiro dizer que o cara que escolheu os artistas acertou na mosca ao abrir com Ray Davies. O inventor do mais inglês dos estilos de rock abre a festa com Waterloo Sunset. Velho e desafinado. Mas andando pelo palco e sendo lembrado por bilhão de pessoas. Ah que justiça! Viva! The Kinks.
   E tudo termina com a mais amada e heróica das bandas inglesas: The Who. faz-se a ponte. De Kinks a Who, passando por Oasis, Queen, Lennon e Fatboy Slim. A entrada de Pete Townshend e Roger Daltrey com Baba O"Riley é sempre um êxtase. Assisti a festa com casal de amigos. Vibraram como eu. Ficamos horas falando do Who. É o teste do rock: Gostar deles é gostar de rock.
   O Brasil entrou simplesinho, simpatiquinho. Tom Jobim dizia que o Brasil tinha de se fazer digno da Bossa Nova. Se tivesse entrado com harmonias de Jobim seria lindo. Mas ficou uma coisa meio de samba e indio pra turista. O Brasil quer ser moderno e não toca em Jobim e Carmem Miranda. Tasca samba e indio. Estranho.
   Me falaram que teria Bowie. Ele foi homenageado. Mas não veio. Onde está Bowie?
   A cerimônia pedia o Queen e clamava por Bowie. Que pena....Mas vieram as Spice e os Pet Shop...triste consolo....
   O melhor? Ver Eric Idle. Aplaudido e com todo o povo cantando a canção da Vida de Brian. Caramba! Eles amam os Monty Python !!!! Só isso valeu  o show.
   Repito tudo o que disse antes. A festa deixa a sensação de que a Inglaterra virou um mero estado dos USA. Mas pelo menos souberam escolher. Ray Davies e Who.
  
  

MASTROIANNI/ SEAN PENN/ MARILYN/ GERMI/ RENOIR/ JACQUES TATI

   QUINTETO IRREVERENTE de Mario Monicelli com Ugo Tognazzi, Philippe Noiret, Gastone Moschin
Delicioso! É a continuação de Amici Mei, sucesso feito sete anos antes. Os velhos amigos continuam aprontando suas pegadinhas de adolescentes eternos. Monicelli tinha o segredo da comédia. O filme é feliz. Se voce tem amigos antigos irá se identificar com algumas situações. Maravilhoso tempo de comédias adultas. Comédias que falam de coisas sérias sem jamais parecerem forçadas. Tognazzi dá um de seus shows habituais. É um filme que mostra a alma masculina de forma bem verdadeira. Nota 7.
   A VALSA DOS TOUREIROS de John Guillermin com Peter Sellers
Um dos vários desastres que Sellers estrelou. Tudo dá errado inclusive ele. Zero. PS Eu adoro Sellers.
   O SACI de Rodolfo Nanni
Uma raridade ( que com o dvd deixou de o ser ). É o primeiro filme infantil feito no Brasil. Conta o episódio do Saci no Sitio do Pica Pau Amarelo. Simples, bem feito, tem um gosto de nostalgia, de pé no chão. Ele captura maravilhosamente a infância como ela é. Ou era? Nanni virou professor de cinema na FAAP. Há uma boa entrevista com ele feita em 2006. Nota 6.
   O PRÍNCIPE ENCANTADO de Laurence Olivier com Marilyn Monroe e Laurence Olivier
Este é o filme cujos bastidores foram dramatizados em 2011 no filme que deu indicação ao Oscar para Michelle Williams. Aqui vemos Monroe como uma corista que é convidada por duque do leste europeu para jantar na embaixada. Os dois não combinam, se agridem, e quase se apaixonam ao final. Esse fim não é doce demais, chega a ser azedo. Olivier tem seu filme roubado por Marilyn que está muito inspirada. Ela entra em cena e o filme é só ela. Olivier se exercita em um de seus prazeres: inventar sotaques. Peça de Rattigan que aqui se deixa ver com prazer. Para quem gosta de Marilyn ou de coisas very british é obrigatório. Nota 6.
   DOIS VIGARISTAS EM NOVA YORK de Mark Rydell com James Caan, Diane Keaton, Elliot Gould e Michael Caine.
Poderia ser ótimo, mas tudo falha. Porque? Os personagens são mal escritos. Caan e Gould, no auge da fama, são dois malandros atrapalhados que tentam dar um golpe em Caine, o maior malandro da América. Keaton faz seu tipo habitual, uma feminista histérica. Caine está bem, faz um super star do roubo. Quando o excelente Golpe de Mestre ganhou um monte de Oscars e dinheiro em 1973, uma fila de produtores se formou. Todos queriam fazer o seu Golpe de Mestre. Este é um deles. Nota 1.
   DIVÓRCIO À ITALIANA de Pietro Germi com Marcello Mastroianni, Daniela Rocca e Stefania Sandrelli
Como é bom ver Marcello!!! Aqui ele é um siciliano, nobre decadente, que é casado com repulsiva esposa melosa. Ele se apaixona por sua jovem prima e vizinha. O filme, dirigido pelo expert Germi, é cheio de cortes abruptos, frases ferinas e varia entre o humor amargo e cenas patéticas. Marcello tem uma de suas grandes atuações. Seu tipo, de bigodinho fino, cabelo empastado, ansioso de desejo, atrapalhado, é inesquecível. Uma obra-prima de criação e de estilo de interpretar. Mas o filme é muito mais. Temos a trilha sonora de Rustichelli e um roteiro brilhante que foi indicado ao Oscar ( e na época era muito raro indicarem qualquer coisa não anglo-americana ). Nota 9.
   A REGRA DO JOGO de Jean Renoir com Gaston Modot e Marcel Dalio
O revejo para celebrar a lista da Sound and Sight em que ele é o quarto melhor filme. Tenho uma relação complicada com este filme. Quando o vi pela primeira vez não gostei. Na segunda vez eu gostei um pouco. Agora foi a terceira. E finalmente entendo onde está seu gigantismo. Vemos um aviador que quebra um recorde mundial. Logo o tema muda, é a relação de um casal muito rico que se trai amoralmente. Então vamos ao campo e o tema se torna uma caça aos coelhos. Mas surge um malandro e agora o foco é nos amores desse malandro com uma empregada casada. Vem então o tema da vingança e nessa altura já não sabemos do que trata o filme e esquecemos do tal piloto de avião. E é isso: o filme é o primeiro a não ter personagem central, tema ou enredo. Não tem hierarquia, não tem foco, nem moralidade. É absolutamente livre. Influência gigantesca sobre o cinema feito após 1960 ( que é quando ele é descoberto. Em seu tempo ninguém deu bola pra ele ). Sempre que voce assistir um filme com dúzias de personagens com histórias entrelaçadas e sem qualquer sentido de objetivo central, saiba, o diretor tem este filme como cartilha. Nota 9.
   AS FÉRIAS DE MONSIEUR HULOT de Jacques Tati
Falar o que? Nada acontece neste filme, mas e daí? Queremos que esse nada jamais termine. O que amamos é ver Hulot, ver aquela praia e conviver com aqueles personagens. Este filme, ainda hoje hiper original, é um dos mais prazerosos filmes já feitos. Tudo aqui é felicidade. Hulot vai passar férias na praia, e nós vamos com ele. É um dos mais amados filmes do cinema. Eu realmente o irei rever por toda a vida.. Nota MIL.
   AQUI É O MEU LUGAR de Paolo Sorrentino com Sean Penn, Frances McDormand e David Byrne
Sobre um astro dark do rock dos anos 80 perdido no mundo de hoje. Penn está ótimo. Ele faz uma mistura de Ozzy com Robert Smith e algo de Edward Mãos de Tesoura velho. Mas o filme é um lixo insuportável. A trilha sonora, fraca, é de David Byrne e ele aparece como ele-mesmo, um tipo de grã-mestre da arte...Como se pode fazer um filme tão boçal, morto, flácido, tolo, sem porque? Como pode algum crítico o elogiar? Arghhhhh!!!!!
  

ULYSSES, BARBARA GANCIA, HAVAIANAS, ROBERTO CARLOS E MONKEES

   Paulo Coelho não gosta de Joyce. Seria surpreendente se ele gostasse. Porque tanto blá blá blá? Paulinho conseguiu o que desejava. Ele vingou aqueles que não conseguem ler Joyce. Que leiam Coelho.
   A Cinemateca produz uma multi-facetada mostra de filmes silenciosos. É sua chance, voce pequeno preconceituoso, de descobrir as delicias do mais cinematográfico dos tipos de filme. Imagem pura, ação sem diálogos, filmes que independem da lingua do país em que foram feitos, o mais pop dos estilos. E com trilha sonora improvisada ao vivo. Vão passar O Gabinete do Dr Caligaris. Tenho péssimas lembranças desse filme. Assisti aos 16 anos, e apesar de ter o dvd, nunca tive coragem de reve-lo. Hiper doentio, me dá um medo horroroso. Ver esse filme de Robert Wienne é como entrar na mente de um louco.
   Os Monkees, amados, vão excursionar. Se viessem ao Brasil eu iria. E teria de levar calmantes, balão de oxigenio e lenços à mão. Sem Davy Jones não será a mesma coisa. Mas lá estarão Peter, Mickey e Michael. E aquele monte de canções estupendas. Monkees é a única banda fake que virou lenda. E seu programa de Tv era anarquia pura. Ácido para crianças.
   Roberto Carlos foi o cantor da primeira canção que cantei na vida. O tempo voa e ele permanece de pé. Assim como MacCartney consegue, sem esforço, ser a alma em música da Inglaterra viva, com tudo de bom e ruim que ela tem ( comodismo, romantismo simplificado, humor, harmonia e hierarquia ), Roberto é o Brasil. Ele é doce demais, suave demais, sentimental demais, saudosista demais e carola demais. E ao mesmo tempo é profundamente verdadeiro, sincero, comovente e consolador. Ele não ousa. Ele executa. Ouvir coisas como Detalhes ou A Beira do Caminho é tomar contato com os arquétipos imorredouros de uma nação. O tempo voa e ele cresce. No deserto da canção romântica deste mundo velho e cínico, Roberto Carlos é bálsamo de esperança.
   Barbara Gancia é sempre ótima. Um texto dela: "Onde estão os Ricos?" Brilhante e hilariante. Ela toca com pé de chumbo e humor de veludo em assunto que muito me interessa. Ou seja: Com essas camisetas simplesinhas, essas bermudas horrorosas e chinelos fedidos, ainda existem ricos? O que define a riquesa? Afinal, hoje todos se vestem como pobres, assistem coisas de pobre e falam como pobres. Existem ricos, ricos de verdade? Onde estão esses endinheirados que se vestem como ricos, se divertem entre ricos e usufruem apenas do que é exclusivo? Barbara fala das imagens do Brasil de 1950, onde, ao contrário de hoje, todos parecem ricos. Ternos de linho e camisas brancas alinhadas. O pobre virou lei geral?
   Dou meu palpite: Ditadura da democracia. Ser rico é uma vergonha. Ser feliz é ser personagem da novela das oito. E rico de novela se comporta e goza a vida como pobre. A única diferença entre classes é que eles assistem Batman em poltronas melhores e usam a mesma bermuda de pobre comprada em loja mais cara. Fora isso, é o mesmo mundo de churrasco, balada e chinelo.
  Pense nisso: Na vida ou voce crê em tudo ou em nada. Isso é coerência. Crer em tudo: Anjos, física nuclear, na história, no marxismo, na psicanálise, em Jung e nas religiões. Porque tudo é uma questão de fé e se voce admite uma, creia, voce admite a validade de qualquer outra construção da mente criativa. Ou descrer de tudo. Religião, história, poesia, Freud e Marx, Kant e Goethe, admitir que tudo é vã construção da razão FANTASIOSA e assim se despir de toda crença e se guiar apenas por SUA EXPERIÊNCIA DE VIDA. Esse é o pensamento do mais importante filósofo vivo. E ele é tão bom que deixa a hipótese em aberto. Creia em tudo ou creia em nada. Mas jamais cometa a bobagem de crer em uma coisa e negar outra, ou negar tudo menos uma única teoria. Voce deve ir fundo. Ser um homem aberto a tudo, ou ser um homem descrente de tudo.
   Pra finalizar: Eu adoro a Inglaterra. E abomino os ingleses vivos.

O DESEJO DE PINTAR - CHARLES BAUDELAIRE

   Mario Vale, pintor e desenhista, executa belas imagens e ainda traduz o poeta francês, primeiro homem de nosso tempo, neste livreto bonito e puro. São textos em prosa com alma de poesia, ou poemas não acabados. Vale pega-os, verte-os e pinta-os. Nós os lemos. E se os lermos com vagar, entramos na coisa.
   Baudelaire foi o primeiro flanêur. Como costumo fazer em meus dias tontos, ele andava pelas ruas de Paris, aterrado, abismado e maravilhado. Em meio a podre febre moderna, recolhia fragmentos de beleza, e eternizava essa beleza secreta e morta em textos que propunham o spleen. Duende. Doente.
   Chineses usam gatos como relógios. Percebem as horas nas pupilas brancas dos felinos quietos. Porque o tempo é uma pupila de gato chinês: sempre o mesmo e só usa o relógio-nosso quem é escravo do tempo.
   E o amor faz de nós, enfim, livres do senhor das horas.
   Um anjo-poeta perde a sua aura. Rico poema prosado, em que há reflexos da atual teoria Benjaminiana da perda da aura da arte e ainda dos anjos de Asas do Desejo, o mais Baudelaire dos filmes, feito estranhamente pelo hiper-alemão Wenders. O anjo perde a aura e contente vive a sujeira do mundo real.
   Baudelaire tinha medo e asco do pó e da velocidade. Era um dandy. Cáspite!!! O homem era um dandy, um poeta sem asas e um flanêur!!!! Ele era o nobre possível em tempos que abominam tudo o que é especial.
   Vê paisagens em janelas fechadas e ama a morte. Foi Baudelaire a base de Freud para o impulso da morte. Para o poeta, a morte é amor, amor é desejo de morrer sob o olhar de quem amamos. Todo apaixonado é um suicida. Crer em psicanálise é acreditar em Baudelaire.
   Para ele, voce cria a verdade ao criar a fantasia. Fantasia que é muito mais real que aquilo que vive fora de nós. Porque na verdade o fora não vive. Quem pode provar a verdade de qualquer coisa que não seja nossa?
   Então ele anda pela vida recolhendo imaginações e vendo a si-mesmo em tudo. Sua poesia é desejo de provar a vida. Impossível. Quem nunca desejou pintar....viveu?

A HISTÓRIA DAS AVENTURAS DE JOSEPH ANDREWS E SEU AMIGO O SENHOR ABRAHAM ADAMS - HENRY FIELDING

   Momento do nascimento do romance, a Inglaterra de 1750 via em meio a revolução industrial, o surgimento da classe média. Povo que era alfabetizado e que com algum tempo livre adquiria o hábito da leitura. Se hoje tememos que os livros se tornem passado, é aqui que eles surgem como objeto cotidiano. Mas o que é o romance?
   Romance é o relato que narra a evolução de um ser, e ele se faz exatamente na Inglaterra por ser ela a nação de Locke. A filosofia do papel em branco, do homem não como ser predestinado, mas sim como ente em formação. Ou seja, o homem como personagem daquilo que seria um romance. Lendo o romance o leitor lê a vida de outro que poderia ou pode vir a ser sua vida também. Esses livros se tornam febre e Fielding é um dos grandes. Um profissional, pois também é aqui que nasce o autor como profissão.
   Tom Jones é o grande livro de Fielding e este Joseph Andrews surge antes. Mas é um tipo de ensaio de Tom, ensaio que homenageia o Quixote de Cervantes e ataca com humor os livros lacrimosos de Richardson. Sempre um humorista, aqui são narradas as aventuras de Andrews, jovem muito belo, que ao ser assediado sexualmente por senhoras ricas, foge para salvar sua castidade e leva consigo sua amada Fanny e seu amigo, o pastor Adams. Adams se torna então o centro do livro. Um ingênuo.
   Estalagens, estradas campestres, brigas, cerveja, duelos, o livro tem o clima britânico de então. Mas atente, nada de psicologismos. Os personagens de Fielding são tipos, nunca pretendem a profundidade. O autor fala pelos personagens, não cria gente real, exibe ação.
   Bela edição de luxo, ilustrada, da editora Ateliê Editorial, digna da importância do livro.

OLIMPÍADAS 2012

   As Olimpíadas melhoraram muito.  ( Voces acham que eu penso que o agora é sempre pior ? Não. Existem coisas que melhoraram e o esporte é junto à medicina o mais evoluído ).  Nos anos 80 as Olimpíadas eram assustadoras. Os grandes esportistas cheiravam à falsidade. Eram arrogantes, agressivos, neuróticos ao extremo. Ainda havia a rivalidade USA URSS e isso contagiava os jogos. E principalmente, o doping corria solto. Todos os recordes eram batidos dia a dia, sem parar, e os atletas tinham corpos monstruosos. Eles não se falavam, não relaxavam, não pareciam humanos. Ben Johnson, Florence Griffith Joyner...
   Usain Bolt seria impossível em 1984 ou 1988. Ele é relaxado, sorridente e tem um físico normal. Seus músculos não estão prestes a explodir. ( Tenho de dizer: Neste exato momento toca Bowie no ginásio, Boys Keep Swinging... ).  Mas não é só Bolt. Phelps nada tem de anormal, "apenas" seus recordes. Ele parece um estudante americano de Ohio ou Arkansas. Mas em 1988 não era assim. Eles rangiam dentes, faziam poses de deuses, se cutucavam.
   Como li em algum lugar, o esporte ocupa o lugar da arte e da religião. Dois bilhões de almas se ligaram em todo o mundo para ver Bolt vencer. Não há Oscar ou lider religioso que consiga isso. Se nossos artistas se chamam Coetzee, Scorsese ou Dylan ( e eles são grandes ), Michael Jordan, Senna ou Valentino Rossi são mitos maiores. Brad Pitt desaparece ao lado de Bolt.
   É exatamente na década de 60 que esse processo começa. Nessa década o mundo ainda produz mitos da arte como Beatles ou Kubrick, mas é o fim desse ciclo. É também aí que nascem os primeiros mitos mundiais do esporte: Pelé e Cassius Clay. E com eles vêm Jim Clark, Rod Laver, Wilt Chamberlain e Beckembauer. Nos anos 70 o esporte se torna estilo de vida, toda a moda e toda a estética se torna esportiva. Mark Spitz, Crujff, Dr, J, Magic Johnson, Nadia Comaneci, Niki Lauda, John McEnroe, Shaun Tomson, Borg....se abrem as portas, welcome ao mundo esportivo.
   Tudo isso tem a ver com a morte da fé. A fé se transfere da alma para o corpo. Religião, que é fé no não-visivel, e arte, que é fé no símbolo, perdem seu trono. O mundo é agora o corporal, o músculo e a vitória sobre o real. Ruim isso? Não. Se voce tiver olhos para perceber irá ver a arte e a transcendência que podem viver em cada movimento "real".  Não é por acaso que o boxe se presta a tantos contos e filmes maravilhosos. O esporte pode ser uma metáfora completa não só sobre a carne, mas também sobre a estética e a alma.
   Nesse sentido, Bolt é um criador.
   Um último adendo.
   O que um grego pensaria sobre tudo isto? A tocha olímpica, os saltos, as lanças e a luta....Creio que ficaria extasiado. E surpreso por ver os bárbaros tão vencedores e os helenos tão perdedores.

ABRA OS OLHOS E DEIXE-OS GUIAR

   Coisa rara em SP, seus olhos têm a chance de se deleitar e quem sabe, aprenderem a ver. Fotos de Fellini no Sesc-Pinheiros. Basta a foto da equipe de frente para o mar. Ela já fala tudo sobre o mundo do mestre de Rimini. O homem perante o nada que em mundo felliniano é sempre belo. Mas há mais: Jasper Johns no Tomie Otake. Para os olhos entenderem o nascimento da vulgaridade como centro do mundo-idiota. Jasper percebeu: o futuro é dos imbecis. Eles crescem porque pais idiotas têm mais filhos. Temos ainda os impressionistas no CCBB. Monet e a beleza absoluta da cor e do quase invisível, Renoir é a alegria de se estar vivo. Mas tem mais. Até Cézanne foi convidado. Dá pra perder? Só se voce for uma besta.
   Mas tudo cessa diante de Caravaggio no Masp. Como sempre a quantidade de obras é minima e voce sai do caixote da Paulista com frustração. Mas basta um Caravaggio para mudar para sempre seu entendimento do que seja arte. Ela é muito mais do que o mercado tenta nos fazer comprar.
   Após tudo isso, aproveite a lista da Sight and Sound e alugue Aurora de FW Murnau. Não existe filme que tenha maior gama de informação poética. Puramente visual.
   Delicie-se.

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM ESPORTE ESTÉTICO

   Li em algum lugar que em mundo sem religião e vazio de sentido o esporte se torna uma última tentativa de redenção. A nobreza de se tentar ser o melhor dentro de regras e de competição justa. Um objetivo que na verdade nada significa, uma realização que assume sua transitoriedade e seu futuro esquecimento. O esporte só poderia se tornar tão importante em realidade vazia onde a transcendencia se torna impossível e o tédio impera. O que seria passatempo fútil toma o posto de centro da vida, poder econômico e ícone de realização. Não mais um nobre e não mais um mártir, o herói é o homem que salta mais alto ou corre mais depressa. Mas se o esporte é central somente em universo vazio de sentido, podemos entender que ocasionalmente ele pode exibir uma fagulha de arte ou de espiritualidade. E nesses momentos ele vem como nostalgia. É como se por um segundo pudessemos pressentir alguma coisa que foi um dia. Uma imagem que não se verbaliza, mas que nos toca.
   Ésportes coletivos são dos mais pobres em sentido. O que eles simbolizam é apenas uma guerra tribal, ou mais óbvio, brincadeiras de pátio escolar ( que é onde eles nasceram ). O sentido que recorda arte e espírito se encontra mais facilmente nos esportes individuais. Eles trazem a marca do herói solitário, da responsabilidade por seus erros, da força perante o mundo adverso. Podem às vezes ser cheios de lembranças de sentidos perdidos, de atos esquecidos, emoções eufóricas.
   Existe toda uma educação estética no hipismo. Ele nos convida, como acontece com o melhor cinema, a admitir a existência de um outro modo de olhar e de vivenciar o tempo. Nele tudo é atenção ao detalhe. O que vemos é o mais belo dos animais sendo guiado pelo mais inteligente, mas nunca numa relação de mestre e servo, e sim numa parceria onde cada um dá o melhor que pode oferecer. As longas pernas se fazem energia e voam ou se disciplinam enquanto os olhos escuros arregalam-se em atenção absoluta. O sol brilha sobre o pelo do animal que é a obra-prima da elegãncia natural. E vence aquele que mais educado for. Cada pegada deve ser exata, cada movimento a repetição de uma exatidão, cada reação nervosa uma conclusão. A harmonia chega a ser musical, musica em que o som é a respiração do cavalo e seu trote ritmado. Tudo nesse esporte é arte, e essa arte nos ensina a ver. Usufruir.
   As provas hípicas são feitas em Greenwich Park. Para não se danificar o gramado, construiu-se uma plataforma a quatro metros de altura, onde a areia foi colocada e a pista construída. O gramado existe, cultivado e sempre verde, desde 1495. Em Londres, a mais de cinco séculos, se cuida de um gramado. Jamais se construiu nada naquele espaço, jamais se modificou seu design. E é lá que correm e trotam os cavalos.
   Nada pode dizer mais sobre o que seja a Inglaterra.

SIGHT AND SOUND, NOVA LISTA DOS 50 MELHORES FILMES

   Um amigo me envia a nova lista da revista inglesa Sight and Sound, nela os 50 melhores filmes da história do cinema. Pela primeira vez Kane não é o primeiro ( é o segundo ). Tentativa de ser diferente? Não sei. Kane está longe de ser meu filme favorito, mas ainda é o mais influente. Porque? Porque em duas horas ele exibe TODOS os tipos de cinema, todos os estilos, tanto do passado, como daquilo que se faria desde então. É por esse motivo que Kane é o filme de quem conhece e compreende o cinema. Ele recapitula e antecipa o próprio cinema.
   Mas quem venceu desta vez? VERTIGO de Hitchcock. E já aviso, ele é um de meus mais amados filmes. Faz tempo que Vertigo vem crescendo em todas as listas. Ele se beneficia do dvd. As novas gerações se surpreendem ao vê-lo, o adoram. Ele toca nos temas que são mais relevantes em 2012: solidão, real e imaginário, compulsão sexual, fetichismo e sadismo. Tudo isso com a técnica perfeita do gênio inglês. Vertigo ser o number one não surpreende ninguém. Ele é magnífico.
   A lista, como já disse, é influenciada pela voga do dvd. Filmes que eram famosos como lenda, ao serem vistos em casa, confirmam ou não sua fama. Vendo a lista em seu todo, três diretores sobressaem como renascidos em revisão: Tarkovsky, Ozu e Dreyer. Três filmes de cada um deles se colocam entre os 50 e o russo tem muito destaque. Devo dizer que dos 50 só não assisti um, História do Cinema de Godard, aliás vivemos um tempo godardiano, sua obra é bem representada.
   A lista nada tem de Tarantino, Woody Allen, Joel Coen, Clint ou PT Anderson. Os diretores em atividade representados são Wong Kar Wai, Lynch, Bela Tarr, Scorsese e Kiarostami. Estão longe de serem meus favoritos.
   Mas é uma boa lista. Apesar de não dar o destaque a Bergman que eu daria ( temos Persona em 18 e só ), vemos Ozu em terceiro, Murnau em quinto e Rastros de Ódio de Ford num belo sétimo lugar. Fellini está em décimo e Os Sete Samurais de Kurosawa é o 17. É bacana ver Bresson e seu Balthazar entre os topo 20 e meu querido L'Atalante de Vigo em 12. 
   Listas nunca são como voce gostaria, mas esta não me causa revolta ou hilariedade. Sóbria, essa a palavra que a define.
   1 VERTIGO - HITCHCOCK
   2 KANE - WELLES
   3 TOKYO STORY - OZU
   4 A REGRA DO JOGO - RENOIR
   5 SUNRISE - MURNAU
   6 2001 - KUBRICK
   7 RASTROS DE ÓDIO - FORD
   8 CÂMERA - DZIGA VERTOV
   9 JOANA D'ARC - DREYER
   10 OITO E MEIO - FELLINI
   11 POTEMKIN - EISENSTEINE
   12 O ATALANTE - VIGO
   13 ACOSSADO - GODARD
   14 APOCALYPSE NOW - COPPOLLA
   15 LATE SPRING - OZU
   16 AU HAZARD DU BALTHAZAR - BRESSON
   17 OS SETE SAMURAIS - KUROSAWA
   18 PERSONA - BERGMAN
   19 O ESPELHO - TARKOVSKI
   20 CANTANDO NA CHUVA - DONEN
   21 L'AVVENTURA - ANTONIONI
   22 O DESPREZO - GODARD
   23 O PODEROSO CHEFÃO - COPPOLLA
   24 A PALAVRA - DREYER
   25 IN THE MOOD - WONG KAR WAI
   26 RASHOMON - KUROSAWA
   27 ANDREI RUBLOV - TARKOVSKI
   28 MULLHOLLNAD DRIVE - LYNCH
   29 STALKER - TARKOVSKI
   30 SHOAH - LANZMANN
   31 O CHEFÃO II - COPPOLLA
   32 TAXI DRIVER - SCORSESE
   33 LADRÕES DE BICICLETA - DE SICA
   34 A GENERAL - KEATON
   35 METROPOLIS - LANG
   36 PSYCHO - HITCHCOCK
   37 JEANNE DIELMAN - AKERMAN
   38 SANTANGO - BELA TARR
   39 OS INCOMPREENDIDOS - TRUFFAUT
   40 VIAGEM À ITÁLIA - ROSSELINI
   41 PATHER PANCHALI - SATYAJIT RAY
   42 SOME LIKE IT HOT - WILDER
   43 GERTRUD - DREYER
   44 PIERROT LE FOU - GODARD
   45 PLAY TIME - JACQUES TATI
   46 CLOSE UP - KIAROSTAMI
   47 A BATALHA DE ARGEL - PONTECORVO
   48 LUZES DA CIDADE - CHAPLIN
   49 CONTOS DA LUA VAGA - MIZOGUCHI
   50 HISTÓRIA DO CINEMA - GODARD
        Devemos lembrar que filmes recentes tendem a cair sempre de posição, assim que seu impacto vai se extinguindo. Dificilmente veremos Lynch em listas futuras. O tempo é sempre o melhor juiz de toda arte. Vencer a passagem do tempo é o grande mérito.
        Como vivemos em tempos pouco imaginativos, Bunuel fica de fora. Assim como a elegãncia de Visconti ou de Resnais. Não são bons anos para requinte ou para delicadeza.
        Destaquemos a definitiva consagração de Ozu e os vários criticos discípulos de Godard se fazendo notar. Toda escolha reflete o momento em que ela é feita. O modo de filmar godardiano é hoje muito valorizado. Esta lista confirma isso.

GORE VIDAL, O ÚLTIMO ARISTOCRATA

   Gore Vidal foi o último americano aristocrata. Ele tinha uma nostalgia crítica daquilo que a América um dia fora e daquilo que poderia  ter sido. A América que ele amava não era aquela dos cowboys e nem a dos soldados heróis da segunda guerra. Era o país idealizado pelos fundadores. Ao ler Gore Vidal, indicado por Paulo Francis, em 1988, toda a minha ideia sobre o que fosse a História mudou.
   Imagine. Um grupo de intelectuais é incumbido de pensar e idealizar um país recém fundado. Isso é a América em seu apogeu. Franklyn, Jefferson, Paine...todos iluministas bem formados, todos liberais modernos, recebem a missão de fazer um país. Pela primeira vez, e pela única até hoje, uma nação nasce por ato de inteligência e não pelo acaso da história. Os EUA surgem como proposta, como ato humano, como obra da mente. Contrário da Europa, feita ao acaso de escombros do imperio dos romanos, os EUA são construídos pela vontade. Planejados. A terra da liberdade e dos ideais. Mas Gore Vidal logo nos alerta. Essa nação é traída. Ela desvia sua direção e se faz nação do militarismo. Primeiro sinal: a guerra contra a Espanha em fins do século XIX. O país tinha entre seus compromissos o não envolvimento em questões internacionais. Mas os militares se fazem poderosos. Nasce o país que conhecemos, uma ideia iluminista maculada pela realidade.
   Vidal escrevia bem. Tinha um estilo leve, direto, e desfiava uma corrente de informações enciclopédicas. Sua familia era daquelas que podemos chamar de aristocracia americana. Os filhos de Harvard, da politica liberal tradicional, da região de Boston e Philadelphia. Exemplo de elegãncia, tinha um caso de amor com a Itália. Para Gore, a terra de Dante era a única nação onde um homem com educação e senso de beleza poderia viver. Era apaixonado pela luz romana, pelos mármores envelhecidos, pela comida e o vinho. Gore Vidal era resenha constante nos jornais dos anos 80/90. Me mostrou que era possível cultivar a mente e ser feliz. Não foi pouca coisa. Eu pensava que todo intelectual era como Sartre. Um tipo de ratinho feio. Vidal era solar.
   Claro que ele tinha defeitos. O pior era a vaidade. Se ele era chamado de "Montaigne americano" ( e ele adorava esse rótulo ), devemos lembrar que Montaigne era genuinamente modesto. Um Montaigne vaidoso nega o próprio Montaigne.
   Seus livros históricos são excelentes. JULIANO deve ser lido por todos. E ele ainda frequentava Hollywood ( num tempo em que intelectuais sérios ainda acreditavam em cinema ). Assim como Aldous Huxley e Faulkner, ele se arriscou em alguns roteiros, o mais famoso sendo Ben Hur. Foi Vidal quem ressaltou a pulsão gay do herói. É hilária a história de como ele conseguiu enganar Charlton Heston, que não percebeu as pistas sobre a homossexualidade do filme.
   Gore Vidal morre, e preciso dizer, mais uma vez, que em mundo de Miami onipresente, Vidal estava sem lugar. Mais que um autor, um questionador. Um chato charmoso. Um belo de um escritor.