SOBRE A CASA DA JOÃO MOURA EM PINHEIROS

Voce olhava pelo portão alto e o que via?
Uma alameda ladeada por árvores altas que sombreavam o cascalho do chão. Depois um gramado e a casa que começava com uma escadaria de mármore branco e dava seu primeiro sinal em azulejos azuis e janelas de vidro colorido. Tudo ali era detalhe e a casa nos convidava a pensar e a ver. Formara gerações, histórias sendo vividas e pedindo para que as revivêssemos. Dava para se escutar as vozes das crianças que brincavam ao redor dos muros e a buzina de um Ford que passava sonolento pela rua.
Mas é hoje e o que importa é o que é visto neste momento. A casa quebrava a monotonia de ruas idênticas, descartáveis em sua procissão de prédios sujos, caixotes de concreto e sobradinhos aos pedaços. Ruas alinhadas ao acaso, postes intrusos e fios que embaralham a vista. Mas ao avistar aquele portão de ferro, alto e com a sombra de cipestres e pinheiros, voce parava e tinha o convite de reentrar numa narrativa. A casa existia, se afirmava como história, dizia das mãos que a fizeram e dos olhares que a acariciaram. A música risonha de suas tardes de sábado em que as crianças se sujavam no quintal e folgavam antes do banho na banheira rosa, e os chás da tarde em que a avó pensava nos chás de outro tempo. Missas de domingo e o leite entregue pela carroça com um cavalo negro. Nos quartos havia o som das tábuas do piso, elas rangiam e anunciavam os passos do pai de bigodes duros.
A rua se adormecia.
Hoje entre o lixo de papéis velhos e de carros sebentos, a casa sobrevivia lembrando a quem soubesse lembrar de que homens são uma história. Homens narram e quando deixam de narrar morrem. Mesmo que continuem a comer e a dormir, estão mortos. Homens sem história são carcaças. Um mecanismo de presentes sem fim, destruindo e fazendo, erguendo e desfazendo, esquecendo sem parar nunca de esquecer. As pessoas passam pela rua, agora, e não ficam. Suas vozes não permanecem. A casa permanecia. Nos lembrava de que alguma coisa deve perdurar. Testemunhas existem. Trazem a afirmação de que a vida agora poderia ser mais. Se a vida era mais sendo menos, ela agora poderia ser muito mais sendo um pouco menos. A casa cantava baixinho nas noites que de tão iluminadas destruíram as sombras.
Então agora eu olho o portão e o que vejo?
A alameda enlameada e as árvores como galinhas de granja que esperam a hora. Meus olhos percebem um monte de tijolos e mais nada. Tudo o que era contado se transformou em silêncio. A melancolia de histórias antigas estapeada e feita apreensão de novo decreto. O ar toma o espaço onde lembretes vicejavam. O cuidado de uma narrativa, agora violada. Marcas de rodas onde antes pés descalços se pertenciam.
O homem odeia a beleza porque ela o recorda seu triste fracasso. O fracasso humilhante de não saber ver. O homem que olhava e nada ouvia naquela casa, obteve sua suja vingança. Reduziu a nobreza à altura de sua insignificância. O caso não é mais o de não conseguirmos construir a beleza, a coisa piorou, e hoje não sabemos amar a beleza. Aquele monte de tijolos é como uma antiga princesa estuprada e caída numa rua qualquer. É como o riso de dentes podres de um rufião vingativo.
No lugar da casa me dizem que será feito um shopping center.
Ando lendo John Banville. Pode colocá-lo entre os três maiores autores vivos. Ele sente como eu.
     

RAYMOND CHANDLER E O ADOLESCENTE EM NÓS

   Raymond Chandler cresceu como um almofadinha. Um menino mimado que estudou na Europa. E então, surpreendentemente, se viu na maturidade como pai de Marlowe, um dos detetives durões da literatura noir. Chandler era o oposto de Marlowe. Marlowe era aquilo que Chandler imaginava que seria o "ser um homem". E nessa atitude adolescente reside o fato de ele ser tão importante até hoje. Ele dá voz ao sonho de QUASE todas as gerações mimadas do pós-guerra. Escreveu aquilo que todos nós imaginamos ser a real vida do homem urbano de ação. Uma rede de ladrões, prostitutas, falsas virgens, ricos sacanas e solidão estóica. Tudo bobagem. A realidade de Chandler é tão real quanto o cinema de Tim Burton. O que eles criam é bom, muito bom, mas é irreal. Chandler trabalhou o sonho de adolescentes de 1945. Burton, com seus filmes que são todos como quartos vitorianos de bebês insones, deu imagem ao sonho ruim de teens de 2000.
   Hammett é muito mais sólido que Chandler. Porque Dash esteve lá. Foi detetive e foi parte da sordidez. Chandler tem um pé na tradição inglesa do conto de detetive. Ainda há algo de mental nele, de puramente dedutivo. O problema é que Chandler é fraco em lógica. Seu mistério nada tem de tenebroso. A solução do crime é sempre frustrante, não se produz o "Ah!" de Conan Doyle. A arte de Chandler reside em sua descrição. Acabamos por penetrar e fazer parte do ambiente que ele descreve. Após ler Chandler nos sentimos muito mais machos. Intuitivamente ele tocou no nervo adolescente de todo proto-homenzinho urbano. O desejo de ser um cafetão, um jogador de poker de beira de porto, um velho marujo, enfim, um cara frio vivendo em perigo, um cara com história pra contar.
   Esse tipo de ideal está hoje quase extinto. Mas foi lei em várias décadas. Penso que foi substituído pelo ideal do homem saudável. Nada de cafetão, jogador ou marujo. O cafetão lembra aids, o jogador lembra cigarro e doença mental e o marujo é um velho com câncer de pele. Mas entre 1945 e 1985 essa ideia do homem marcado, meio sujo e muito estiloso era o objetivo. Chandler ajudou a criar esse ideal.
   O cinema adorou. Chandler escrevia ao estilo "cortes e sets". Pedia por um ator tipo Bogart ou Lancaster ( na verdade ele sonhava com Cary Grant, o que mostra a diferença entre Hammett e ele ).  Quando Marlowe surgiu nas telas na pele de Humphrey Bogart estava completo o feitiço. Todo homem com cojones seria Bogey.
   Autores policiais continuam a seguir a trilha de Chandler. E de Hammett, Cain, Goodis... Irônico é pensar que o melhor autor no estilo noir acabou sendo Patricia Highsmith, uma mulher....
   Ler Chandler hoje é lembrar de uma masculinidade perdida. Fria, sórdida, cheia de bebida, fumaça e ruas escuras. E que traz embutida uma nobreza modesta, a sensação de um dever que será cumprido. É um mundo que nunca existiu. Mas a qualidade de uma época não seria medida pela ilusão criada?

SINDBAD, O TERRESTRE

    Sinbad O marujo; desse todos já ouviram falar. Mas Sinbad, o Terrestre foi esquecido. Pois acabo de o ler. Escrito na mesma época, por volta de 780/800 de nossa era, e talvez composto pelo mesmo autor, temos aqui, como no outro Sinbad, o dominio do maravilhoso. Tudo pode acontecer. Mulheres viram pássaros, cavalos voam, o tempo corre, reinos malditos e reinos do bem, magos e demonios. A diferença do outro Sinbad é a de que este é muito mais sofrido, muito mais poeta e se trata de um adolescente dominado pela paixão.
    Ele é enganado por um velho alquimista e se vê deixado em montanha, para ser devorado por pássaros. Escapa e começa aí sua saga. Ele cruzará a China e atingirá o Japão, reino que na época era considerado o mais misterioso do mundo. A paixão o move. Se apaixona por princesa ao vê-la de banhar. Interessante ver que o amor dos dois é flagrantemente sexual. Nada disfarça o caráter carnal do amor de Sinbad, ele quer o corpo da princesa e a rapta para poder a seduzir. Quando eles se separam o que ele sente é a nostalgia das pernas e do sexo dela.
   O livro se passa na rota da seda, estrada que ligava a China ao mundo árabe. O comércio mandava na região, a salada de linguas e de religião. O islã, movimento ainda recente, é reafirmado em cada aventura, e costumes arcaicos são revividos. O mais encantador sendo o da vizinhança. Se voce encontra alguém na estrada deve servir essa pessoa, pois foi Deus quem a colocou em seu caminho e portanto voce tem uma divida com ela. Várias peripécias do livro se pautam por esse costume.
   É interessante também tomar contato com um mundo onde os sentimentos explodem livremente. As pessoas sofrem até desmaiar, choram por semanas e se jogam á vida sem exitação. Há uma absoluta crença na vida, as coisas não são postas em dúvida, tudo é aceito e vivenciado. Sinbad viaja, e como viajante se joga à vida que se oferece.
   Ele amadurece nesse caminho, os anos passam, tem filhos e acaba por voltar a seu país ( o Iraque ), onde a mãe o reencontra. Viajamos com ele, em meio a poesia amorosa e de saudade, vemos o que ele vê.
   Belo livro de uma coleção de textos antigos da Martins Fontes. Vale muito procurar.

MUITO TEMPO ATRÁS O MUNDO ERA ASSIM...

    Ser triste era um charme. Já era uma tristeza fake, mas olhos lacrimejantes e poucas palavras eram sinal de beleza. Bowie, que era um tipo de juiz de elegância, dizia que a beleza só era possível onde morasse a tristeza. Dizia, porque ele faz agora o que, inteligente que é, deve fazer: sair de cena; e em época de hiper-exposição, faz-se o silêncio... Mas voltando a meu tema...
    As pessoas modernas de então tinham de ser deprimidas e tinham de fazer terapia. Todo mundo frequentava analistas. E todo mundo tinha mapa astral. Essas pessoas nunca saiam em fins de semana. E essa é uma das mudanças que mais me assombram: as pessoas modernas saem sexta e sábado!!!! Se saía às terças, quartas e quintas. Os outros dias eram para a ralé. Tanto que nos fins de semana tudo era mais barato. A gente dava risada de quem marcava saídas sexta-feira.
   Amigos marcavam pré-balada em casa. Voce ia à casa de alguém e bebia lá. Ou fazia outras coisas. Ás vezes até terminava de se produzir. Mesmo heteros davam uma importância imensa ao visual. Armani, St.Laurent, Yes Brazil, Forum, Soft Machine ( era minha favorita ), Ellus, e um monte de marcas "do Rio" que sumiram. Ah...esqueci da Benetton!!! Então voce ia na casa do amigo e ouvia música ( Bowie ) enquanto bebia e se aquecia para a noite. Aliás, não se usava a péssima palavra "balada". Balada era tomar droga em grupo ou ir viajar à praia.
   Se ia muito à casa de amigos. Conversava-se muito. Conversas de seis horas eram coisa banal. E o assunto era sempre o eu emocional. Qual a minha praia, pra que eu existo, onde devo me achar. Como eu disse, ser triste era chique. A cocaina mandava e era considerada droga de rico, coisa hollywoodiana. O povão ia de maconha e cola. Ninguém tinha 200 amigos virtuais, então eram uns 20 amigos do peito. Se telefonava muito, onde se conversava por horas e em natáis e aniversários se enviava cartões. Eu mandava flores para meninas. Com cartões românticos. Sinceros. Espero que alguém os tenha guardado.
   Um disco era para se ouvir inteiro, lado um e lado dois. Lia-se a ficha técnica. O nome do engenheiro de som era muito importante. A música era levada muito a sério. Ao tirar o celofane do vinil voce tinha a sensação de estar desvirginando uma sacerdotisa grega. O cheiro de disco novo era como incenso. O lançamento de novo clip era cerimônia compartilhada com os 20 amigos.
   Na minha faculdade tinha gente que via espiritos. Tinha gente que havia morado no mato sem comunicação com ninguém. Tinha gente que tomava LSD para ver um deus. Todo mundo era meio louco. Não a loucura do toc ou da deprê, era a loucura da esquizo. A cidade parecia um manicômio.
   Alguns amigos usavam cabelo roxo e outros calças rosa com sapatos azuis e vermelhos. Isso não seria nada demais não fosse o fato de que eles transformavam esse visual em politica. A ideia de um novo mundo.
   Os criticos de cinema não falavam de filmes pop. Batman ou De Volta Para o Futuro eram ignorados. Critico falava de arte, bilheteria ou fofocas de ator não interessavam. Criticos eram metidos, arrogantes e adoravam fazer um escândalo. Metiam o pau sem dó. E chamavam de deuses a quem amassem. Os sentimentos eram exaltados.
   As casas noturnas tinham garçon. E ninguém pagaria o mico de fazer fila. Fila!!!! Ora, que humilhação!!! Em aviões, cinemas ou boates, voce tinha a mordomia assegurada. Espaço e alguém te servindo, isso era a mordomia.
   As profissões mais IN: arquiteto, artista plástico, fotógrafo e cineasta. Jogador de futebol NÂO era levado a sério, assim como artista de TV ou cantor popular. Ensaio de moda com jogador ou noveleiro, nem em sonho. Sim, foi tempo de extremo esnobismo. Asfixiante esnobismo. Regras de beleza e de charme a granel.
   Comprava-se muito menos livro, se lia mais. Escrevia-se menos, sabia-se escrever melhor. Havia vazio para pensar e para aprender. Se os cinco canais de TV não tivessem nada pra ver, se o cinema não exibisse um filme bom, voce era obrigado a não fazer nada. Então voce lia, ou ia à casa de um amigo, dava um telefonema, escrevia, pensava. Hoje voce se perde em 200 canais e nada vê. Ou fica zumbindo com a cara enfiada no Facebook.
   O mundo mudou muito e não mudou nada. Transava-se na mesma quantidade, mas era mais no carro e menos no motel. E não se usava camisinha. Voce ia numa corrida só, sem parada para higiene. Se beijava menos, se amava igual. Como não existia celular, se sentia mais saudade, e como não se podia mandar torpedo, se vigiava menos. Ficava-se ligado em pensamento, em sonho e em planos. Ainda havia a possibilidade da incomunicação. As suspeitas eram menores, pois quanto mais se está ligado mais se exige prontidão.
   Não se dava tanto valor a animais de estimação. Para se achar um petshop era uma corrida. Estacionava-se na rua e se passeava na rua. A molecada ia pra lanchonetes de rua aos domingos de tarde. E havia a experiência de sair de um filme e se cair na rua. O choque do filme com a escuridão da rua de noite, as sombras, o silêncio, o carro distante. Sorvete na rua, hot-dog na rua, encontro na rua. Cheguei a transar na rua. E jogar bola nos jardins, de madrugada, bêbado, na rua.
   Eu não vivi completamente esse tempo e acho que ninguém viveu. Todos estavam envolvidos com um eu tão profundo que não podiam ver a vida fora. Essa década é pra mim uma nebulosa triste, fria, cheia de amores imensos, sofridos, e de ícones heróicos, impossíveis. Não sei se hoje é pior. É mais futil, sem dúvida. E muito menos perigoso. Talvez a chave seja a de que em 1982 a adolescência mandava. Hoje somos crianças bem alimentadas, saudáveis e felizes.
   Adolescentes são egocentricos, são vaidosos, acham que sabem tudo e se preocupam com seu ser todo o tempo. Experimentam, tentam matar o mundo antigo, são ansiosos. Amam demais, choram demais e vivem tristes. E riem como malucos. Crianças dormem. E sonham. E brincam de ser adulto. Repetem tudo aquilo que os pais fazem. Sem saber o que aquilo significa.
   Acho que essa é a diferença. Adolescentes brincam de descobrir. Crianças descobrem a brincadeira.,

Flying Burrito Brothers - Christine's Tune



leia e escreva já!

THE FLYING BURRITO BROTHERS, UM SONHO TRISTE DE CURTO OUTONO

   Eu ouvia falar de Flying Burrito fazia séculos. O tipo da banda cult que não fez sucesso algum em seu tempo ( apesar de ser uma banda pop ). O povo da época não aceitava esse tipo de grupo. Se tivesse surgido dez anos mais tarde teria estourado. Se fosse o tempo dos clips estouraria AINDA mais facilmente.
   Mas em 1969 ninguém do rock dito sério gostava de bandas que não eram "bem loucas". As opções eram longos solos de guitarra ou mensagens de revolução. Os Burritos não se enquadravam em nenhum dos dois casos. A outra opção era o pop do Creedence ou dos Beatles. Mas aí havia o problema Gram Parsons.
   Hoje, em que nos acostumamos com Eagles ou John Mellencamp, parece estranho, mas o público do rock em 69 abominava country. Um chapéu de cowboy ou o som de um banjo deixava seus longos cabelos em pé. Country era música de conservadores, de racistas e de velhos religiosos. Hank Willians, Johnny Cash ou Willie Nelson eram escutados por uns poucos hippies como pecado vergonhoso, e o povão do centro dos EUA, lugares como Iowa ou Arkansas não contava. Gram Parsons, apesar de nascido na Florida, de familia rica e moderna, mudou a coisa.
   Entrando nos Byrds em 1968, ele transformou uma banda que era folk-elétrico em country-elétrico. Fora dos EUA as pessoas colocam folk e country no mesmo saco. Nada a ver. Folk é esquerda, country era direita. Folk é Woody Guthrie e Dylan, violão e letras gigantes, country é banjo, rabeca e dobro, letras sobre familia, campo e Jesus. O que Gram fez foi pegar a musica country e botar maconha nela. As letras falam de herois da estrada, de gente perdida em encruzilhadas, de amores desesperados e de muita solidão. Tudo regado a marijuana e tequila. E vestindo seu famoso paletó,  folhas de erva desenhadas sobre fundo branco.
   Os Byrds resolveram ir tocar na Africa do Sul. Gram se recusou, apartheid ainda vivo. Fundou os Flying Burrito Brothers.  O disco de estréia é lindo como a Lua. Mas nada vendeu.
   Como acontece com várias bandas, apesar de não estourar foram escutados pelas pessoas influentes. Um monte de gente começou a gravar country não-careta. E logo Keith Richards se fez fã e amigo. Gram e Keith passaram a andar juntos e a influência de Parsons sobre o som dos Stones de então é imensa. Dead Flowers ou Sweet Virginia são puro Parsons e Wild Horses foi composta tendo Gram em mente. Indo para a carreira solo, onde sua proposta country foi ainda mais radicalizada, Parson ainda teve o tempo de lançar dois discos. Mas em 1973 foi encontrado morto. Overdose de heroína.
   Há aqui uma história típica da época, que poderia estar em filme dos Coen. Os amigos, sabendo que Gram queria ser cremado, pegaram o corpo do velório e o levaram pro deserto. Lá tentaram cremá-lo com gasolina e não conseguiram. O corpo não virava cinza, virava churrasco...
   Os dois discos solo são pra chorar. Tristes como fim de caso ou fim de tarde solitária. Alguns momentos dão a certeza de que Parsons era um super poeta, um artista superior. Estava pronto para tomar as paradas do mundo. Não houve tempo pra isso. Morreu com 24 anos.
   Os Flying são uma bela alternativa para estes tempos posudos. Eles são naturais. O fato de não terem estourado demonstra a riquesa de sua época. Ou a cegueira de um sistema. No clip que postei abaixo, que é uma gozação e Não demonstra o tipico som de Parsons, ele faz gozação a Mick Jagger. Imita os trejeitos de Jagger e cria uma cumplicidade com Keith Richards. Eu, assim como tantos outros neste século que já nasce velho, adoro Gram Parsons.

The Flying Burrito Brothers - The Older Guys USTV (full version)



leia e escreva já!

Band À Part - Jean-Luc Godard (1964)



leia e escreva já!

BANDE À PART - JEAN LUC GODARD E ANNA KARINA

   Para se gostar de Godard em sua primeira época, aquela que vai de 1959 até 1965, fase que termina com o rompimento com sua musa, Anna Karina, é preciso se ter senso de humor. Isso porque seus filmes de então são desconstruções de tradições, leves reflexões sobre a absoluta liberdade de filmar e de viver. E se voce não possuir esse descompromisso e essa juventude libertária, nada feito. Voce vai procurar portos seguros nestes filmes-oceanos e nada irá encontar. Pensará então que este é um filme a deriva. Voce é que pensa como âncora.
   O filme foi feito em 25 dias e nesse ano Godard lançou 3 filmes. E meio.
   É sobre uma dupla de gatunos que envolve uma mocinha ingênua em crime. Roubarão a casa onde ela vive com a tia. Isso dito, o filme é tudo o que um filme de crime não deve ser. Ele divaga, se desvia. Quando surge a vontade de falar de um livro, se fala de um livro. Se há o desejo de dançar, se dança. E se surge o vazio de ideias, nasce o silêncio. Longe do realismo e longe de Hollywood, o filme é um quase nada, uma desconstrução que diz em alto e bom som: -Fazer um filme é uma brincadeira!!!! Nada há de sagrado nisto!!!!!
   Bem, se voce é Godard a coisa anda. O problema é que um monte de gente acreditou neste filme e passou a filmar tudo o que vinha à cabeça. Voce conhece o resultado...
   Quando vejo este filme sempre penso em meus jovens colegas de USP. O espírito do filme é o mesmo. Uma ingênua vontade de tentar coisas diferentes. Só que o filme veio 50 anos antes. E ainda é magnificamente jovem.
   Quentin Tarantino nomeou sua produtora com o nome deste filme. E em Pulp Fiction várias cenas são homenagens a o que vemos aqui. O papo furado dos bandidos no carro, a dança dos bandidos em uma lanchonete, a mocinha ingênua e de voz de criança, o jeitão relaxado e improvisado do filme inteiro. Aliás a cena na lanchonete é inesquecível. Ela nada tem de especial e incrivelmente tem tudo de que o cinema precisa. Antes eles fazem um minuto de silêncio por não ter nada de bom para dizer ( certos filmes deveriam ter duas horas de silêncio ), e depois improvisam a dança que é encantadora. O sorriso de Anna Karina ao final é deleite puro.
   É neste filme também que ocorre a famosa cena do Louvre, que é visto pelos três em nove minutos ( cena que Bertolucci cita em seu filme com Eva Green ). É outro improviso entre vários outros.
   Destaco também a fotografia natural de Raoul Coutard e esse é um segredo de Godard. Seus filmes naturais davam certo porque Raoul sabia filmar tudo em todo lugar com qualquer luz e em qualquer situação. Este filme é todo de rios sujos, ruas feias, árvores nuas, neblina e lama. Talvez o personagem mais importante seja esse ambiente úmido e pobre.
   Eu sou apaixonado por Anna Karina. Então prefiro nada mais dizer a não ser que Jean Luc Godard foi grande enquanto ela esteve a seu lado. Depois dela, o quase nada.
   Imperfeito, chato, rustico, improvisado e muito inspirador. Assistir este filme é injeção de vontade de criar. Godard não fazia grandes filmes, fazia peças de desejo de se fazer. Este filme dá esse desejo.
   Não é pouco.

O TEMPERO DA VIDA- G.K.CHESTERTON

   É sempre um prazer encontrar um autor que pensa, em muitas coisas, mas é claro que não em tudo, como voce. Chesterton tem uma visão de vida que em muito se parece com a minha. Ele faz crítica dura a toda a modernidade, explica o porque de suas críticas, e ao mesmo tempo jamais cai em amargor. Fosse amargo Chesterton cairia em contradição, pois o que ele mais critica na modernidade é exatamente seu amargor.
   Chesterton tornou-se mania na Inglaterra de cem anos atrás com seus livros policiais em que o "herói" era o pacato Padre Brown. Por detrás da simplicidade desses livros havia a exposição da filosofia do autor. Chesterton polemizava com coragem, ele era anti-capitalista e anti-comunista, abominava Freud e as seitas religiosas, entrava em atrito com Shaw e Russell, não gostava de toda filosofia materialista.
   Este livro traz textos publicados na imprensa, de 1905 até 1935. Alguns depois fizeram parte de um programa de rádio que ele tinha na BBC. As ideias defendidas neste livro são excitantes e provocadoras. O que as prejudica é o fato de terem sido pensadas para a imprensa; suas teses mereciam um muito maior desenvolvimento.
   A escrita funciona porque os temas são sempre muito graves, mas o estilo é sempre bem humorado. Exatamente o contrário do que se faz hoje na imprensa, onde se escreve banalidade com enorme seriedade. ( E no cinema também. Histórias idiotas tratadas com rigor de um recém formado ).
   Mas de onde vem a ideia de Chesterton de que a modernidade fracassou? É muito simples, aliás, a tese que ele sempre defende é a de que tudo é sempre óbvio, os só-cabeça é que pensam sem parar, jamais descansam e acabam por pensar demais e por pensar mal.  A modernidade produz em sua maioria, poemas e romances sem esperança, sem sentido, sem porque e sem utilidade. Isso tudo ainda poderia ser redimido se fosse belo, mas além de tudo há a descrença na beleza. A coisa é lógica, um mundo e uma época que produz tanta desilusão é consequentemente uma idade de profunda tristeza. Para saber qual o nivel de felicidade de um povo basta olhar o que esse povo escreve, canta e pinta. A arte moderna oscila entre o desespero, a tristeza e a ansiedade histérica.
   Autores felizes como Dickens, Thackeray ou poetas como Shelley e Holderlin seriam silenciados na modernidade. Chesterton, cristão radical que é, diz que a era mais feliz da humanidade foi aquela que os materialistas mais abominam: a idade média. Por ter sido uma época em que o dinheiro ainda valia pouco, a produção ainda era de quem produzia e onde a carne e o espírito ainda conviviam em razoável harmonia.
   Há um texto em que ele fala de algo que me deu o que pensar. Falando sobre Darwin, ele diz que o darwinismo deveria se restringir só àquilo que é de sua competência, a biologia. Se Darwin vira filosofia aplicável a tudo, se o evolucionismo pode explicar tudo ( e é o que acontece hoje, em 2012 ), então a ética e a moral serão jogadas no lixo. Todo ato imoral e não-ético poderá ser desculpado como degrau evolutivo. O ladrão esperto de hoje pode ser o próximo passo da evolução. O mais forte e o mais bonito serão a ponta da evolução. Valores humanos e não biológicos, como moral, ética e arte serão negligenciados. Ou pior, entrarão na falsa lógica evolucionista.
   Na estrada da simplicidade, Chesterton fala das crianças e das mulheres. Mulheres e crianças sendo vistas pela sociedade masculina como seres pouco racionais, emotivos, intuitivos. Chesterton pergunta então, e porque crianças, mulheres e os pobres também, seriam os errados? Quem disse que a intuição feminina ou o mundo cheio de sentido das crianças é o "mundo falso"? A mulher como o humano que está totalmente ligado a natureza, dona do dom da vida, da alimentação, ligada a ciclos, a marés, a sonhos. E a criança, supersticiosa, que crê em magia, em azar, em sinais, em lugares sagrados e secretos. Os pobres, que vivem na simplicidade da conta exata, sabendo tirar muito do quase nada. Porque eles estão errados? Porque são vistos como fracassos, como tolos ou como fracos?
   Inspírados textos de Gilbert Keith Chesterton, que fala da divisão da vida moderna, vida que divide tudo em fragmentos, que desfaz casamentos eternos, que separa aquilo que separado perde todo o sentido.
   Num café da Espanha ele assiste a um casal e seu filho. O pai, que olha a criança com adoração, dá um gole de sua cerveja ao menino. A mãe ri, e dá outro gole ao filho também. O garoto então se senta no colo do pai e brinca com seu bigode. Lá não existe um Édipo que possa os fragmentar, não existe uma tolice americana que dite algo contra o álcool dado a crianças. O mundo moderno não vive ali, aquela familia é antiga como a vida, bela como o mundo, perfeita como o amor.
   É esse o universo que Chesterton defende. É esse o único mundo onde a felicidade pode existir. Todo o resto é brinquedo de cabeças sem descanso.

Serge Gainsbourg - Black Trombone (1962)



leia e escreva já!

requiem pour un twister - serge gainsbourg



leia e escreva já!

SERGE GAINSBOURG- DU JAZZ DANS LE RAVIN ( SEX, GALOISE ET JAZZ )

   Serge era o cara que todo mundo na França adorava....odiar. Para a esquerda ( e na França de 60/70 essa dualidade fazia todo o sentido ), ele era um americanizado inconsequente, e para a direita ele era um tipo de vampiro imoral e perigoso. Bem...para mulheres interessantes ele era um desafio e para a molecada anárquica um provocador. Serge entra no século XXI sobrevivendo muito bem. Hoje ele é mais vivo que em seus últimos anos de vida.
   Como pessoa, ele estava em todas. Musicalmente foi jazz, foi chanson, fez rock e fez reggae. No cinema só fez bobagem, mas são sempre bobagens curiosas. Escreveu, fez TV, não parava nunca de inventar. E tinha um jeito hiper-mega-super cool. Serge é da linha de Robert Mitchum, parece sempre ausente, sonado, derrubado, indiferente. Mas quando voce se distrai ele surpreende, porque ele faz tudo sem esforço, sem drama de trabalho, parece fazer "sem querer". Isso é o cool moderno.
   Sua abordagem com as mulheres era a mesma, querer sem querer.
   Então, tudo o que ele fez, teve esse jeitão. Fazia um filme "sem querer" e um disco "sem muito jeito". E pegava todo mundo desprevenido.
   Veja este disco. Voce bota pra tocar e ouve piston e trombone. É jazz. Ele ouviu muito Gerry Mulligan. É cool jazz. Mas é mais cool que o cool jazz. É Le Cool Jazz.
   Ele coloca várias palavras em inglês nas letras. E as declama meio sonâmbulo e depois canta meio drunk. Tem bafo de sexo e de álcool. Cheiro de axila sem desodorante. Boteco com umidade. É sujo. Baforento.
   E voce se vê estalando os dedos no ritmo das músicas. Ele faz exatamente o que voce faria. Pega aquele cool jazz e o mistura com uma coisa muito dele mesmo, muito francesa. Uma coisa meio Rimbaud e meio Cocteau. Não é o jazz de whisky e negros alinhados de Chicago ou Orleans. É jazz com Pernod e jovens de boina e blusa listrada de St. German e Marseille. Os americanos odiavam. Era pra eles como ouvir rock feito por alemães. Pra nós, latinos, faz todo o sentido. Une dois mundos. Une o ótimo e o soberbo.
  E Serge vai então sem medo. No trombone que boceja e na bateria que sacoleja. E dá quase pra ver a fumaça do Gitanes ( ou será Galoise? ), sair do cd e entrar nos teus olhos. Dá quase pra sentir o cheiro da calcinha da menina bonita de cabelos à la garçonne. E daí voce pensa: Que bom! E depois acha: Quero ser Serge! E então conclui:
  É bom pra caramba!

HARAKIRI/ WYLER/ GATO DE BOTAS/ LOSEY/ RAY/ REDGRAVE

   HARAKIRI de Masaki Kobayashi
Estarrecedor. Vencedor do Oscar de filme estrangeiro, trata-se de uma obra-prima amarga. Através de angulos de câmera precisos e de um ritmo solene, o que assistimos é um retrato da vida em seu aspecto mais puro: a dor da fome e da quebra de um mundo. Samurais em tempo de paz são inuteis. Sem trabalho, passam fome, e envergonhados, pedem para que nobres os deixem praticar o harakiri em seus palácios. Um jovem é obrigado a se matar com espada de bambú, o que seria errado. Um outro samurai aparece para também se matar, mas antes conta sua história. A cena da morte por harakiri é bastante forte, aprendemos todo o ritual japonês. Mais terrível é a crítica social que há no filme, o harakiri como um modo de se eliminar guerreiros incômodos. Mas eles crêem nesse ritual e o seguem com exatidão. O filme tem a exibição de aspectos da vida que eram corajosamente mostrados pelo cinema japonês da época. O dilaceramento da carne e da alma exibidos em detalhes. Há uma cena em meio a bambuzal com vento que é uma das mais belas ( e terríveis ) cenas do cinema. Aqui Kobayashi atinge a perfeição. Nota DEZ.
   O ZELADOR ANIMAL de Frank Coraci com Kevin James
O inominável. Kevin é um dos piores humoristas do mundo. Nota Zero Farenheit.
   OS CAVALEIROS TEUTÔNICOS de Aleksander Ford
Clássico medieval do cinema polonês. Centra-se em jovem que promete amar jovem romântica. Isso entre inimigos, cavalos, prados imensos e espadas pesadas. Parece ser um grande filme, mas atenção: a versão existente em dvd é impossível de se ver. Desbotada, imagem encolhida, som ruim. Sem nota.
   O REI DOS REIS de Nicholas Ray com Jeffrey Hunter e Robert Ryan
Ray conseguiu filmar a vida de Cristo sem nenhuma emoção. Na verdade ele se prende mais às intrigas da corte de Herodes e a João Batista. Hunter faz um Jesus Cristo banal, mas Ryan está muito bem como João. O filme frustrará aos cristãos e será indiferente aos descrentes. Nota 1.
   A SOMBRA DA FORCA de Joseph Losey com Michael Redgrave
Um pai alcoólatra, recém saído de clinica, tem dois dias para salvar filho da forca. O filme, magistral, mostra toda a patética tentativa do pai. Ele esquece coisas, não percebe pistas, se enrola em ideias. Redgrave era um gênio. Faz um dos grandes viciados do cinema. E Losey sabia mostrar como ninguém a irreversibilidade do destino. Se o mal pode ocorrer, ele ocorrerá. Este filme tem um dos melhores finais já filmados. Tenso, triste, vazio, soberbo. Nota DEZ.
   A GUERRA DE HART de Gregory Hoblit com Colin Farrell e Bruce Willis
Esquece. Tédio insurpotável. Nota ZERO.
   O GATO DE BOTAS de Chris Miller
Não é um dos grandes desenhos do século de grandes desenhos. Mas é ok. O Gato é uma figuraça e os cenários são lindos. O roteiro se perde do meio para o fim, e conseguimos inclusive perceber erros absurdos. O personagem do Ovo estraga o filme. Nota 4.
   MRS MINIVER ( ROSA DE ESPERANÇA) de William Wyler com Greer Garson, Walter Pidgeon e Teresa Wright
Garson discursou por uma hora ao  ganhar o Oscar por este filme. Foi daí que instituiram o cronômetro na cerimonia. Ela não está especialmente bem. O filme fala de uma familia inglesa e sua vida na segunda-guerra. Wyler foi um grande diretor e há uma cena de gênio: um bombardeio com a familia assustada num porão. Cena feita de explosões que não se vê e de rostos que nada dizem. Mas o filme tem problemas. Todos são bons demais e essa Inglaterra é completamente americana. Winston Churchil dizia que este filme salvara a Inglaterra. Seu sucesso despertou o interesse da América pela guerra ( quando lançado os EUA ainda não haviam se lançado à luta ). Se a importância de um filme se mede pelo impacto social, este é dos mais fortes. Mas é apenas um singelo filme pop tipico da MGM. Nota 6.

EXATAMENTE COMO A VIDA REAL

   Uma coisa que me dá o que pensar: porque as pessoas percebem tanto mérito em filmes e livros que "são exatamente como a vida real"? Qual o mérito em se criar algo que nada mais é que uma cópia daquilo que a vida já criou? O máximo que uma obra realista pode atingir é saber olhar bem.
   Mas posso unir isso a mania de biografias e posso ir ainda mais longe e ir até os reality shows. Do extremo realismo às biografias e ao reality show o caminho é o mesmo, a via que declama em alto e bom som que só o que é "a verdade" tem valor e pode ser util.
   Quando um autor como Dickens cria mais de dez mil personagens, todos "irrealistas", o que ocorre? Dickens está negando a vida e criando gente que nada tem a ver com o real? Ou seria o contrário?
   Toda obra excessivamente realista tem algo de hospitalar. De quase sem vida, quando não, de morto. O escritor recolhe dejetos, fatos "´já acontecidos", e portanto, passados, e os fixa em linhas ou imagens. O mesmo ocorre com as biografias. Sempre passam a sensação de serem testamentos ditados por um moribundo. Um testemunho vindo do leito, leis cheias de "verdade". Que verdades são essas? Desde quando dizer a verdade é ser verdadeiro?
   Quando um autor poderosamente imaginativo cria personagens, lugares e ações, ele cria "a vida". Esse escritor, digamos Dickens, repete a criação que a natureza opera, do nada ou do vazio, cria personalidade. O movimento é o oposto do realismo, da reportagem ou da biografia. Neles voce participa da memória de um fato terminado, morto. No artista original, voce toma parte na criação presente, na liberdade de dar vida e sentido a uma narração.
   Nos acostumamos ao pequeno, ao pouco ambicioso. Autores criativos são vastos e me parece que eles assustam aos pequenos leitores de hoje. A criação deles é vasta demais, exigente demais, complexa demais. Mas é Chesterton que me alerta para o fato principal: autores como Dickens ( e Rabelais, e Swift ), são alegres demais.
   Eles trazem o dom da fertilidade, da fecundidade. Tocam o papel e criam, e criar vida é sempre um ato de alegria. Seus livros pulam, uivam, dançam, dialogam, dão prazer e dão ideias.
   Pessoas educadas ( ou domesticadas? ), a crer que "arte" seria um espelho da vida, e que vida seria tédio e atos minúsculos, jamais conseguirão tolerar os exageros de sentimento, apetite e de criação de Dickens ( e Balzac, e Cervantes ).
   Um artista sempre foi Prometeu. Um homem ladrão, que com o fogo na mão tentava dar luz e calor para a humanidade.
   Hoje, reduzido a um tipo de repórter do vazio e do não-ocorrido, ou um retratista do já terminado, um jornalista-divulgador da "verdade", ele carrega fogo apagado, impotência fria, tristeza de quem não sabe mais fazer viver, criar, inventar, ser feliz.

PEDACINHOS DE VIDA= PEDAÇÕES DE COVARDIA

   Chesterton tem humor, mas não é simpático. Não espere nada de confortável nele. E nem de liberal oco. No livro que estou lendo há uma ideia que nos deveria ser óbvia, mas que de tão clara se torna esquecível. A ideia, antipática, é a de que o erro da arte moderna é o de crer que a vida pode ser fragmentada.
   Sim, voce pode cortar uma vida em pedaços e misturar tudo. Voce pode transformar uma história em pedacinhos desconexos. Mas ao fazer isso voce paga um preço: voce mata a vida. A vida é um fluxo constante. A história é um fluir e se voce corta esse fluxo a história morre.
   Chesterton usa um exemplo que nos recusamos a aceitar. Se voce tem vários flertes, vários casos, voce não tem na verdade vários flertes e vários casos. O que voce tem é um grande flerte e um grande caso. Voce carrega a história de cada um desses flertes e casos. Não existe algo como "um encontro inconsequente". Todo encontro é consequente e sem perceber ele lhe fará pagar seu preço. Ideia antipática né?
   Não gostamos de ser lembrados disso. De que cada ato tem sua história e de que todas essas histórias formam um única história, a sua. De que na vida real, e ela não é a vida de livros modernos ou de filmes contados ao contrário, existe um inicio e um fim. E que eles são consequentes. A cada erro cabe uma dor e a cada acerto uma alegria. E que é impossível se ter uma historinha aqui e outra ali, todas são a grande e única narrativa.
   Esse é o fascinio da tragédia. Toda tragédia é a história correndo em sua fluidez indomável e cobrando o preço do ato feito. Nosso tempo, covarde, tem horror a tragédia. Temos a ilusão de que ao cortar a vida em pedacinhos poderemos ter pequenas dores. Casinhos ruins rendem dores suportáveis.
   Ironia dos deuses: Eis a nossa tragédia. A trágica fuga, constante e apavorada, da vida.

O VIGÁRIO DE WAKEFIELD- OLIVER GOLDSMITH

   Eu adoro o século XVIII. O romance se tornando dominante ao ser direcionado para a nova classe média. O nascimento daquilo que conhecemos como livraria, best-seller e imprensa cultural. E um espirito de época em que o que sobressaía era o prazer pela discussão, pela análise e pela novidade.
  Do que falavam esses romances? De viagens, de peripécias, de lutas e disputas. O enredo é sempre rico, estamos longe das elaborações do romantismo e dos detalhes do realismo. Não há uma grande preocupação com estilo, o principal é a história. Dessa forma o que temos é ação constante, acontecimentos sobre acontecimentos. A descrição de casas, paisagens ou rostos é secundária.
  Falei que esses livros falam de aventuras e de ambições, na verdade podemos reduzir tudo ao dinheiro. A classe média inglesa de 1770 pensa em renda, em bons casamentos e bons negócios. Por mais que os livros se encham de guerras ou de duelos, é o dinheiro que move a ação.
  Oliver Goldsmith foi um malandro. Viveu sempre de golpes, de expedientes. Torrou a herança da familia e foi levando a vida na lábia. E escrevia bem. Poeta e jornalista, aqui é romancista. Ele fala de um vigário e de sua familia. O vigário é um  ingênuo, as filhas são ambiciosas, a esposa mandona e os filhos obedientes. São explorados por nobre conquistador, azares sobre azares caem sobre a familia, e mesmo assim o vigário se mantém ingênuo, bom, um grande perdoador. As tragédias são tantas que o humor se faz presente. Goldsmith tem aquela verve típica da época. Ele mostra o ridiculo com tintas fortes. E todos são ridiculos, os nobres com suas crueldades e os burgueses com sua adoração aos nobres. O estilo é rápido, as coisas acontecem de repente, sem grandes preparações. Oliver Goldsmith não se detém, ele quer nos divertir e nos instruir. Consegue.
  Um livro é uma coisa maravilhosa. Quando ele é bom, entramos em um mundo quando o abrimos. O século XVIII foi aquele em que o livro tinha a maior consciência de seu poder de criar mundos. Seja na poesia, na filosofia ou no romance, os autores têm pleno poder sobre sua obra. Encaram a escrita como criação de mundo. Pois bem, ao abrir este volume entramos no belo mundo rural da classe média da época. E encaramos o grotesco desse universo de vigarices, pequenos golpes, interesses e fé cambaleante. Um belo livro.

A SOMBRA DA FORCA, JOSEPH LOSEY; PENA DE MORTE, COMUNISMO E ÁLCOOL

Quando a paranóia comunista tomou conta da América, logo após a segunda-guerra, um monte de gente pirou. No cinema a consequência foi a de que sumiram os filmes de consciência social, filmes que abundavam nos anos 30. Gente que fazia esse tipo de filme teve que se enquadrar. Alguns se recusaram e tiveram suas carreiras encerradas ou foram forçados a emigrar.
Um ator brilhante como John Garfield não aguentou a pressão e morreu do coração ainda jovem. Creia-me, John era indomável, um ator do estilo nervoso, que antecipou De Niro e Pacino. Outros nomes entraram na geladeira. A carreira se estagnou e ficaram anos no limbo. Gente como Elia Kazan e Edward Dymytrick preferiu se safar dedurando os colegas. Acabaram por pagar um preço também, Kazan passou o resto da vida a se justificar e Dymytrick simplesmente se afundou em banalidade. Era um diretor que prometia, após os depoimentos nunca mais se acertou.
E existiram aqueles que emigraram e que na emigração se fizeram grandes. Conseguiram renascer, renascer de tal modo que acabaram por se confundir com o país que adotaram. Jules Dassin já era em 1950 um maravilhoso diretor americano. Fazia um tipo de cinema másculo, de sombras e personagens malditos, filmes fatalistas, que nada envelheceram. Tendo de sair da América, Dassin se transformou em um dos mais interessantes diretores da Europa. Tanto que ainda hoje há quem pense ser ele um francês ou um grego. Pois foi na França e na Grécia que ele se radicou. Dirigiu alguns dos melhores filmes do mais forte período do cinema da Europa e se casou com a maior estrela do cinema grego.
Joseph Losey é um caso de igual força. Há quem tenha a certeza de que ele é inglês. Já dirigira alguns filmes nos EUA, mas é na Inglaterra que ele se afirma. Primeiro fazendo filmes como este A SOMBRA DA FORCA, e depois nos roteiros de Pinter ou de Tennessee Willians. Seu estilo é o do drama claustrofóbico. Os personagens penetram num tipo de labirinto sem solução e acabam por se perder para sempre. Este filme, com mais uma atuação de gênio de Michael Redgrave, trata de culpa, de alcoolismo, da força do dinheiro, da pena de morte, de pai e filho. Voce passa o filme esperando a redenção e ela não pode acontecer. O pai salva o filho, mas pagando um preço alto demais.
Redgrave mostra o patético do álcool sem jamais cair na comédia. Junto com o Richard Burton de A NOITE DO IGUANA, é o mais perfeito retrato de um viciado. Ele não consegue agir direito, ele não consegue pensar, ele tenta e tenta, mas esquece fatos, falha, se atrapalha. No rosto de Redgrave voce vê toda essa confusão dolorosa, um mapa de derrotas e de decepção.
O enredo é simples: um pai sai de clinica e visita o filho na prisão. O filho vai ser executado por assassinato. O pai vai tentar elucidar o crime em dois dias. Mas ele é um bêbado, o filho o odeia e nada parece o ajudar a chegar a verdade. Losey leva as cenas com absoluto controle. Nada de exageros, nada de choro, sem heroísmo ou humor. É quase uma radiografia gelada de uma agonia. Mas com toda essa precisão ele nos pega em cheio. Porque ele dá espaço para que um ator brilhe à vontade e para que a história corra em seu desenvolvimento dramático. O filme é curto, sem nada de sobra ou de menos. O pai bebe com raiva, adormece quando não devia, perde pistas, tenta raciocinar, se perde. Losey observa tudo com distãncia, sem se apiedar, isento.
Joseph Losey foi um grande diretor.

HERÓI

As pessoas amam os herois. E em sua maioria, gostariam de ser um deles. Mas poucas, muito poucas, têm a coragem e podem pagar o preço que o heroísmo pede. Pessoas espertas perceberam então que pessoas que não tentam o heroísmo estão dispostas a ser comandadas. Precisam de comando e de dogmas que as livrem de responsabilidade.
O herói é o homem/mulher que saiu da "vila". Seja fisicamente, seja metaforicamente, todo herói rasga o véu da ilusão, obtèm a imagem da verdade e sai/entra em busca de uma missão. Para obter essa visão é necessário o descompromisso com o comum. O herói não segue um padrão, seja comportamental, religioso, cientifico ou politico. E aquele que não segue um dogma paga o preço, a solidão, condição do herói, de todo herói, mesmo daquele que vive em grupo. É fácil perceber que nada é mais nocivo à sociedade que um herói. Ele lembra ao homem comum aquilo que ele poderia ter sido. Traz em si a ideia de que existe vida fora da banalidade. Irritará o materialista por seu desapego, o cientista por sua irracionalidade, o religioso por sua insatisfação, o lider por sua insubmissão.
Nós, que não somos heróis, não suportamos a vida sem regras estabelecidas. Amamos a ideia do heroísmo, mas temos pavor do que significa sê-lo. Queremos segurança e anonimato, ser como todo mundo, não carregar o peso de nossa individualidade.
Segundo Jung, sem o encontro com esse individualismo que existe em cada um de nós, não há como viver uma vida com sentido. O  não-herói aplaca sua angústia, mas paga o preço de só poder viver sob o jugo de um lider, uma lei ou uma regra. Busca o esquecimento de si-mesmo, não suporta se olhar. Corre numa sucessão de distrações, de viagens sem fim, de êxtases vazios. Vive na esperança louca de não precisar viver. A vida é história, a vida é alma, a vida é futuro. E história, alma e futuro pertencem individualmente a cada um que vive. O covarde procura viver a história de outro, sonhar o futuro comum e negar a alma como coisa sua e ao mesmo tempo sem dono.
A arte nos faz ter contato com a história interna de todos nós. E abre a possibilidade de encontrarmos nossa história pessoal. A linguagem da poesia é a linguagem do inconsciente, ela é lúdica, criativa, volátil, sábia. A religião não dogmática nos dá contato com a alma, pois religião não é superstição ( resposta fácil, covarde e tola, que nada responde na verdade ), religião é uma necessidade de todo humano, a necessidade de sentido, de transcendencia e de tomar contato com aquilo que está além do que sabemos e podemos saber. Impulso tão forte quanto a própria vida, impulso que é sublimado em alguns ateus radicais pela politica, sexo ou filosofia racional. Não percebem que essas são suas religiões sublimadas e empobrecidas.
O futuro é uma construção permanente que depende da realização da história e da alma. Futuro que não é um alvo, não é um destino, não é premeditado. Ele é conhecimento. Da vida e de si-mesmo.
Existe em voce a potência de se ser aquilo que voce pode vir a ser. Essa imagem mora dentro de voce desde sempre. E se voce tiver algum poder de introspecção poderá vê-la. Isso nada tem de mistico ou de louco, ela está lá, é um tipo de "homem que eu poderia ser e talvez um dia seja". Não é melhor ou mais bonita que aquilo que voce vê no espelho e que seus amigos vêem. É tão somente mais verdadeira. Estranhamente calma e definida. Como se fosse um fim de história. Um eu que não mais se move. Esse é o futuro seu e só seu. Mas não é o futuro que necessáriamente vai acontecer. Para vir a ser ele precisa de seu esforço, de sua responsabilidade com voce mesmo, e de conhecimento. Principalmente de conhecimento.
O herói é o homem que foi ao encontro desse "ele definido".
A industria cultural sabe usar essa nossa fé com soberba simplicidade. Peter Parker encontrando dentro de si o Homem Aranha. Marinheiros partindo e retornando como Lobos do Mar.  Cowboys que se lançam ao deserto para se encontrar e voltam á cidade para a salvar. Reis do rock que se martirizam em individualismo e que retornam e nos passam sua mensagem.  É sempre o caminho do mergulhar dentro de si e o sair transformado no homem que se nasceu para ser. À parte do meio social, com ideias experimentadas e experimentais e pleno em sabedoria dolorosa. E sempre haverá o incômodo que causam/causaram herois reais como Muhammad Ali, Leon Tolstoi, Thoreau ou Oscar Wilde. Amados e repelidos, anti-dogmáticos e criadores de seguidores que os seguem sem nada para ser seguido, a não ser o exemplo da vida do herói que a viveu. Porque o herói de verdade nos convida a criar nossa sina, nossa vida, nossa dor. A saber que o compromisso é com voce-mesmo e com a vida.
Ninguém pode viver sua vida. E ninguém pode te salvar daquilo que voce faz de voce mesmo. Essa é a lição do herói. Esse é o começo do sentido da vida.

JACK WHITE, DUANE, INGLATERRA, XIMENES E CANNES

   Roy Rogers toca em SP. Slide guitar. Slide guitar é o som de Paris-Texas. Ry Cooder. Slide é som de homem. Apesar de Bonnie Raitt. É estrada e botas e carro velho com fedor de óleo. Se eu pudesse eu tocava slide mas eu sou uma múmia para todo instrumento musical. Sou incapaz de tirar um acorde em piano, violão ou pistão. Mas até que batuco bem. John Lee Hooker e Elmore James são slide. Mas o maior solo de slide que já ouvi é o de Duane Allman em Layla and Other Assorted Love Songs. Ele acontece na faixa Key To The Highway. Raios e trovões em vinil.
   E por falar em guitarra....Uma das coisas mais ridiculas dos anos 80 foram as guitarras. Elas se transformaram em piadas sem graça. De um lado viviam os clones de Eddie Van Halen, com seus solos sem sentido e sem sentimento algum. Uma disputa chata pra ver quem tocava mais rápido. E de outro lado um povinho fofo que amava guitarras "soft". Cheguei a ler, eu juro, que Johnny Marr era o maior guitarrista da história do rock. Arre!!!! Slash lembrou ao mundo que guitarra era Joe Perry e Marc Bolan. Riff e ritmo. E Jack White nos recorda que a guitarra é o rock. Jimi Page revive em seu modo de abordar o instrumento, mas ele vai mais fundo e nos devolve Robert Johnson. Seu disco solo é do balacobaco.
   Modigliani....eu já gostei. Ele é romantico e pega os adolescentes sedentos. As mulheres nuas que ele pintou prometem muito e sua vida foi um poema de dor e de ilusão. Mas hoje ele não me comove. E o MASP montou uma expo miserável... Prefiro esperar Caravaggio.
   Todas as publicações falam ( bem ) de Downtown Abbey. A série inglesa cult que foi escrita por Julian Fellowes. Ele escreveu um Altman legal, aquele do casarão inglês cheio de empregados. Como dizia Paulo Francis, amaericano adora ver a alta classe inglesa em ação. Por isso dão sempre um Oscar para ator britãnico ( menos Peter O'Toole...que pena! ). Eles amam o sotaque da BBC e ficam se sentindo mais classudos ao admirar aqueles casarões cheios de cortinas, veludos e chá com sanduiches de pepino. É um mundo que foi destruído na primeira guerra, mundo sólido onde o pobre era muito pobre e o rico sabia que morreria rico. Casas com trinta empregados e terras sem cobrança de impostos. Brideshead Revisited é citada como série que influenciou Downtown... Já quero ver. Brideshead é o máximo.
   O festival de Cannes ainda importa? Em 1976 deu Taxi Driver e em 1971 O Mensageiro. Alguém lembra quem venceu ano passado?
   Mariana Ximenes escreveu um belo texto sobre Douglas Sirk no Estadão. Mariana é o máximo!
   A revista da livraria Cultura tem belo texto sobre Bergman. Domingos de Oliveira fala do diretor sueco e Sergio Rizzo também. Leia que vale a pena.
   Pra terminar, os dez filmes que Ruy Castro mais assistiu nos últimos dois anos:
   Caligari de Wiene ( o filme que mais me deu medo na vida inteira ), Ladrão de Alcova de Lubistch, Ladrão de Bagdá de Powell, Contrastes Humanos de Sturges, Entre a Loura e a Morena de Bekerley, Milagre em Milão de De Sica, Monstro da Lagoa Negra de Arnold, Bob le Flambeur de Melville, Mabuse de Lang e Se Meu Apto Falasse de Wilder.

AL GREEN-TAKE ME TO THE RIVER. LIVE 1975...o segredo está no soul



leia e escreva já!

THE BELLE ALBUM- AL GREEN

   Ao olhar a obra de Al Green, normalmente as pessoas escolhem Let's Stay Together, Green is Blue ou Call Me. Gosto de todos, mas The Belle Album é meu disco favorito. Gravado já na decadência de Green, este é o disco em que ele se apresenta mais livre, solto, perto do erro. Seu extremo profissionalismo dá uma cochilada. O som é quase o de uma jam.
   Al Green estourou em 1971 com seu soul sexy. Sua voz não tinha a fragilidade de Marvin Gaye e nem o alcance de Stevie Wonder. Ele também era menos ambicioso que os dois. Jamais tentou gravar uma obra-prima, ou ser um tipo de guru da causa black. Fazia belos discos, cheios de groove, intercalados com baladas que nunca eram de rasgar o coração. Sua banda, exuberante, tinha uma dupla de baixo e batera que beirava o inenarrável. Sacudiam tudo, botavam tudo pra ferver, ebulição absoluta. Na época da super-black-music, Al Green era um dos deuses. Entre 71/74 mandou e desmandou, um cantor sexy, macho e muito vaidoso. Mas aí veio o tiro...
   Num hotel, em 74, Green foi atacado por uma fã. Fã que acabou por atirar em si-mesma, na frente de Al Green. Em crise, Al Green acabou por voltar à igreja e se fez pastor. The Belle Album, em que pese seu som com influências de Sly Stone e seu sacolejo funk, é um disco do Al Green espiritual. Recolhido.
   O som é menos rico que nos outros albuns. Metais e cordas comparecem menos. O que se destaca é o teclado estilingado, um par de guitarras discretas e um baixo que assume o centro do som. Enfeitando e tascando fogo na melodia vem a bateria suingada e coruscante. O disco é uma delicia de ritmo e de leveza.
   Al Green continua na ativa. Grava e faz shows, é reverenciado por cantores de r and b. Mas perdeu a vontade de ser o rei. O tiro dado pela fã paralisou sua carreira. The Belle Album é como um rastilho de pólvora que sobrara da arrancada inicial. E que poderoso rastilho.

O DOGMA É UMA DROGA

   Houve um tempo em que as pessoas acreditavam que o fim da repressão sexual faria da vida uma coisa simples e feliz. Que todas as depressões e melancolias iriam embora e que os impulsos de violência sumiriam. Não é o que acontece.
   Mas voce pode se aferrar ao dogma e falar que o sexo é livre, mas que a maldita religião nos deu tanta culpa que não conseguimos nos livrar dela. Não somos felizes porque nos sentimos culpados.
   Infantilidade absoluta. Uma das caracteíristicas da mente infantil é jogar a culpa sempre no mais velho. Eu sou assim por culpa de meu pai. Somos infelizes por culpa da velha tradição religiosa. Esse é o tal raciocinio infantil reducionista. Voce cria duas certezas ( que dependem da fé em as aceitar ) e as repete como um mantra mágico. Para voce será uma solução. Não é uma solução, é uma cegueira.
   A infelicidade de um homem independe de vida sexual ou religiosa. O homem é feliz quando ele consegue viver a vida para a qual foi formado para viver. Quanto mais longe ele estiver dessa vida mais infeliz ele será. A repressão do século XIX que tanto fazia mal, não era apenas a repressão sexual. A dor que sentimos hoje não é mera culpa ou vazio. É muito simplório falar de culpa ou de vazio e fingir que alguma coisa foi respondida. A dor, seja no século XIX ou agora, sempre nasce da falta de liberdade, e essa liberdade não é a de se fazer sexo ou a de poder ir e vir. Essa liberdade é a liberdade de ser.
   Ser aquilo que voce é. Nada é mais dificil e proibido. Os costumes sociais, a familia, a moda, a falta de tempo, o trabalho, a politica, tudo contribui para o não-ser. Para voce se achar é primordial a solidão absoluta. É necessária a luta com o meio e o mergulho em seu universo. Diálogo entre voce e voce sem a intermediação de nada que não seja voce. Em nosso mundo hiper-comunicativo ( e portanto solitário ), mergulhar em si-mesmo parece coisa de egoista ou de esquizofrenico. Mas é apenas nesse mergulho que o crescimento ocorre e que a solidão diminui. Antes de se relacionar com alguém voce deve se relacionar com voce-mesmo. Sem isso, tudo fica num encontro de máscara com máscara.
   Não há modo mais garantido de NÂO conseguir se encontrar que sendo membro de uma igreja. Ou de um partido. Ou de uma associação de filosofia ou psicologia. A partir do momento em que voce diz "Amém" para algum dogma voce se perde daquilo que voce poderia ser. O menos religioso dos homens é o que segue uma religião. A busca fica reduzida a soluções simples que dependem de se aceitar uma verdade estabelecida pelo costume. E o mesmo vale para dogmas politicos, existenciais ou o que for. Aceitar uma verdade não vivida dentro de quem a aceita, mas apenas porque deve ser assim, ou o costume diz isso, ou meu meio social é assim, ou é bacana pensar desse jeito, é sempre uma mordaça para a fala. Pior, é um modo de não-ser.
   A vida é muito complicada. Não creia em quem divulga explicações. E creia, às vezes a coisa é tão simples que se torna inaceitável.
   Nada do que escrevo aqui é por "ter sido ensinado". Tudo o que falo foi profundamente vivido e visto por mim. Se pareço confuso é porque eu sou confuso. Se às vezes falo como ateu e às vezes como o mais carola dos franciscanos é porque eu sou essa contradição. Não por  moda ou por ter me convencido intelectualmente de uma verdade. Mas sim por ter vivido as duas condições. Sei da facilidade cômoda e produtiva da crença ateia, e conheço a terrível profundidade da experiência religiosa significativa. Conheço o prazer do sexo e conheço a euforia da descoberta de uma fé. Sei o que é transcendência e até mesmo epifania. Não por ter lido, mas por ter tido a experiência.
   Se creio no Daimon interior não é por amar a Grécia clássica como a amo. É o contrário: por ter o Daimon é que amo a Grécia. Nada pode entrar em mim que já não viva lá.

BERLINER ENSEMBLE, NEYMAR, BERGMAN, SHOPPING CENTER E CSN

   A BERLINER ENSEMBLE é uma das melhores instituições da Alemanha. Ela vem ao Brasil e é muito muito muito primordial que voce a veja. Com Bob Wilson na direção, eles irão apresentar A ÓPERA DOS 3 VINTÉNS e LULU. Mesmo que voce não entenda alemão, veja. E ouça também. Em A Ópera a música é de Kurt Weill. Música de Weill significa beleza e humor no mais alto grau de perfeição possível. Lulu, o texto enigmático-expressionista de Frank Wedekind, tem trilha de Lou Reed. Lulu fala de sexo como morte e de noite como sexo. Seria bom rever o filme de Pabst antes do espetáculo. Voce sabe, o filme com a feiticeira das telas, a felina Louise Brooks. A experiência deverá ser vitalmente arquetipica.
   Cee Lo Green esteve no Sónar. Se aquilo é uma amostra da atual música negra estamos muito mal. Ele canta pobremente, não tem sex-appeal e tem repertório sem sal. Um mundo negro que nos deu Al Green e Jackie Wilson viver agora de Cee Lo é mais frustrante que a literatura francesa depender de Houllebecq.
   Mais um monstrengo nasce em SP. O Shopping JK está pronto. No futuro haverá uma via elevada que unirá todos os shoppings de "gente bonita". Voce entrará num tubo de cristal e será levado por esteiras à todos eles, Iguatemi, Higienópolis e etc. Arquitetonicamente o tal complexo é aquilo de sempre, um caixotão com vidrinhos. Nossos arquitetos não pensam mais. Usam um programa que repete soluções.
   CARAVAGGIO virá ao Masp. Entre de joelhos no caixotão mediocre que não enfeita a Paulista. Caravaggio não é o melhor pintor da história. Esse posto é disputado por Rembrandt, Velazquez e Cézanne. Mas é o mais "instigante". Seus quadros são como flagrantes de feitiçaria. Ele foi um homem "do mal". Do submundo. Mas sua obra é elevada, explosiva em luz e sombra. Ninguém pintou sombras como ele. A obra-prima "São Francisco Meditando" virá ao caixotão. Como disse, se ajoelhe diante dela. Mas não ore. Olhe. Caravaggio em SP é honra que não sei se merecemos.
   Crosby, Stills and Nash passaram por aqui. O tempo é ironico. Em 1982 nada era mais passado e esquecido que os três menestréis. Seu som acústico, suave, gracinha, era a coisa menos Roxy e Bowie possível. Em 2012 eles são hiper-cult. O som que eles faziam em 1970 é o que 90% dos moços sensiveis sonha em fazer agora. A diferença é que Crosby tomava umas coisinhas que esses moços nem sabem o que é. E Stephen Stills é genial. Roxy e Bowie caem, James Taylor e Cat Stevens sobem. C'est la vie...
   Quem mora em SP deve estar vendo os filmes de Douglas Sirk no CCBB. Sirk é o idolo de Almodovar e Todd Haynes. Dramas deslavados, exagerados, quase ridiculos e maravilhosamente deliciosos. Ele nunca tem medo. Vai lá na ferida e a cutuca com vidro. Ou melhor, com cristal. Seus filmes são arrumados, engomados, bonitos como geladeiras brancas. Com postas de carne podre dentro.
   Mas quem mora no Rio pode soltar fogos. Ingmar Bergman tem 46 filmes sendo exibidos. E mais 5 documentários sobre o gênio da Suécia. Deram um jeito de trazer até mesmo os cinco comerciais de sabonetes que ele fez nos anos 50. Vai ser hilário ver Bergmaníacos como eu tentando achar nos comerciais um sinal do gênio do gênio. O mundo de hoje não merece Bergman. Ele ia ao fundo das coisas e hoje nós conseguimos ir só até onde os dogmas permitem. Mas eles estarão lá, 46 chances de crescimento espiritual.
   Dou a dica. Se voce já viu Morangos Silvestres e O Sétimo Selo, espero que sim, voce não é um analfabeto, não vá perder O ROSTO, NOITES DE CIRCO, FANNY E ALEXANDER e JUVENTUDE. Esses são imperdíveis. PERSONA, MONIKA E O DESEJO e A FONTE DA DONZELA vêm a seguir. Depois chegam em SP. Já estou no aguardo. Se voces perceberem algum careca histérico na sessão, esse sou eu.
   Neymar dá a toda uma geração, ou duas, acostumadas a ver futebol de verdade só pela TV, a chance de entender porque os quarentões falam com saudade de Zico, Sócrates e Falcão. Um jogador de gênio jogando em seu apogeu no Brasil é fato que não ocorria desde os tempos de Junior e Zico. Vimos os 4 erres brilharem na Europa, aqui, só um brilhareco. Ver Neymar no estádio é perceber o talento em ebulição plena, a mente pronta para o não-óbvio e a ambição sem limite nenhum. O ridiculo ou o sublime no fio de um cabelo. Coragem em jogar e em tentar. Um ego do tamanho do mundo. Aproveitem que logo acaba...

Irene Papas - Electra - Ηλέκτρα (1962) (08/12)



leia e escreva já!

XINGU/ GEORGE STEVENS/ KON ICHIKAWA/ CAMERON CROWE/ ELECTRA EURIPIDES/ GARY COOPER/ ZÉ TRINDADE

   COMPRAMOS UM ZOOLÓGICO de Cameron Crowe com Matt Damon e Scarlett Johansson
Há algo de errado com a gente. Simplesmente somos incapazes de levar "o bem" a sério. O século XX entupiu nossa cabeça com a ideia ( absurda ), de que apenas aquilo que é "do mal" pode ser verdadeiro. Quem viu este filme? Fala do luto, da morte, da reconstrução. Mas tudo sob a ótica de gente do bem. Pessoas que são como eu ou como as que eu conheço. Mas o doentio em nosso mundo é que essas pessoas que conheço só se interessariam por este filme se ele fosse do mal. Se o pai fosse um viciado em heroína e pedófilo talvez eles o assistissem. Se o papel de Scarlett fosse o de uma maníaca tarada e ladra, eles fizessem fila para ver. O estilo Jornal Nacional é o que predomina. Para as massas, prédios explodindo e viagens fabulosas, para os pseudo-cultos, a exposição de podridão e de personagens "do mundo real". Mundo real de quem, cara pálida? O meu não é. Este filme é melancólico pra caramba, não foge de assuntos dark, mas tudo sob a ótica da bondade, do ser legal. Senti aversão em 3/4 dele, tudo me parecia fofo, bobo, mas só no fim percebi que aquilo tudo era muito mais eu-mesmo que baboseiras metidas a artesinha-para-principiantes que abundam por aí. Em um mundo mais saudável este filme seria um hit. E meus amigos teriam corrido para vê-lo e depois o discutido comigo. Mas ele não tem auto-punição, sangue, sexo doentio, drogas pesadas, necrofilia...Tem apenas um cara tentando sobreviver e uma familia com problemas sérios de uma familia banal. Como a minha. E provávelmente como a sua. Damon está ótimo e Scarlett, desglamurizada, tenta atuar. É sua melhor interpretação. Crowe não desiste. Desde Singles ele tem um interesse: gente legal em mundo errado. O final deste filme é lindo de chorar. Mas alguém ainda procura a beleza na arte? Nota 7.
   UM LUGAR AO SOL de George Stevens com Montgomery Clift, Elizabeth Taylor e Shelley Winters
Monty faz um desajustado. Em seu rosto vemos que ele não tem lugar, mal sabe o que é. Mas para seu azar ele sabe o que quer. E desajeitadamente tenta obter esse objeto. E paga pelo erro. O filme não faz nenhuma concessão. É duro. E maravilhosamente bonito. Stevens sempre buscava a perfeição. Cena a cena ele trabalhava duro para ser perfeito. Conseguia. Tudo aqui é superlativo: atores, fotografia e roteiro. Jovens diretores costumam estudar este filme nas escolas de cinema. O que conseguem aprender? Ou melhor, o que a Sony e a Viacom deixam ser tentado? Filme de crime sem vilão e sem mocinho. Tragédia que beira a magnitude. E composta de gente comum, normal, o que o torna mais forte ainda. Nota DEZ!!!!!!!
   ARROWSMITH de John Ford com Ronald Colman, Helen Hayes e Myrna Loy
Um dos primeiros filmes sonoros de Ford, tem um visual cheio de sombras e belos cenários expressionistas. Começa devagar, mas vai crescendo até seu final dramático. Fala de um médico que exita entre ser um pesquisador ou um sanitarista. No final vai para o Caribe enfrentar epidemia. Apesar do Caribe ser um país de fantasia, é lá que o filme atinge seu melhor ponto. Há clima, magia e suspense. Colman parece artificial demais, um Melvyn Douglas cairia melhor. Myrna Loy infelizmente aparece pouco, seu charme e sofisticação parecem de outro universo. É um filme bom, mas longe da gigantesca estatura de Ford. Se parece muito com as bios que a Warner faria em seguida. Nota 6.
   FOGO NA PLANÍCIE de Kon Ichikawa
É o mais próximo do inferno que podemos chegar. Nas Filipinas em 1945, soldados japoneses, cercados por soldados americanos, não têm o que comer. Acompanhamos um soldado tuberculoso vagando pela floresta. No caminho ele encontra desesperados como ele. O homem em seu limite. Canibalismo. Alguns começam a comer os feridos e um deles chega a comer a si-mesmo. O cinema japonês é rico em filmes que vão ao limite. E aqui Ichikawa filma sem sensacionalismo. Tudo é como é. Eles não são do mal ou do bem, são organismos que tentam viver. O objetivo da vida seria a própria vida. É um dos filmes mais desagradáveis já feitos. Mas atenção, Ichikawa nunca busca o sensacional ou a chantagem emocional, não faz escãndalo, o filme é elegante. Chocantemente elegante, ele prova que isso pode ser feito. Nota 8.
   ELECTRA de Michael Cacoyannis com Irene Papas
Impressionante. Numa vasta planicie, Cacoyannis filma a tragédia de Euripides do modo como tudo deveria ser 2500 anos atrás. Cabanas, roupas de lã grossa, gente feia. Irene está assustadora. Sua Electra é infelicidade completa. Ela precisa e deve se vingar. O irmão, Oreste, exita, mas acaba por cometer o crime. A trilha sonora de Mikis Theodorakis é uma obra-prima. A fotografia de Walter Lassally também. Se eu fosse freudiano diria que todo nosso inconsciente mora aqui. Se eu fosse jungiano, diria que este filme mostra nossos arquétipos. E se eu acreditasse em pura biologia, diria que nossos gens foram poluídos por essas experiências. Como sou apenas eu-mesmo, digo que é um filme digno de um texto chave de nossa cultura e de nosso senso do que seja o trágico. Jamais se farão filmes como este novamente. Nota 9.
   THE PRIDE OF THE YANKEES de Sam Wood com Gary Cooper e Teresa Wright
Eis o que seria um filme pop antigo. A biografia do jogador de beisebol Lou Gehrig, seu sucesso e sua aposentadoria ao se descobrir com doença fatal. Sinal dos tempos, o filme mostra sua infancia pobre, sua escalada e seu estouro. Os primeiros sinais da doença também, e NÃO mostra a doença. A cena final, linda, mostra Lou entrando no túnel dos vestiários, sumindo no escuro, e fim. Tempo em que havia o pudor de se poupar a crua exposição de intimidades intimidantes. Quem teria prazer em assistir a dor de um câncer? Gary Cooper é um monstro de carisma. A gente o segue com os olhos, gosta de olhar pra ele e de o escutar. Sam Wood era o diretor dos grandes hits ds MGM. Este foi um dos maiores. Absolutamente ultrapassado, totalmente familia, e uma deliciosa nostalgia. Nota 7.
   ENTREI DE GAIATO de JB Tanko com Zé Trindade, Dercy Gonçalves, Costinha e Chico Anísio
Brasil dinossauro. Zé Trindade é meu humorista brasileiro mais querido. Passei a infancia repetindo seus bordões ( "O que é a natureza...."), um malandro simpático. Ainda se pode crer em malandros simpáticos? Dercy é outra malandra. Os dois tentam enganar um ao outro, e depois resolvem roubar um hotel. Ingênuo e bobinho, quando termina deixa uma sensação de "quero mais". Cauby Peixoto aparece cantando e tem Moacyr Franco com "Me dá um dinheiro aí!". Nota 5.
   MINHAS TARDES COM MARGUERITTE de Jean Becker com Depardieu
Já falei deste filme alguns meses atrás. Mas ele voltou a cartaz e devo dizer que é o melhor filme para se ver em SP. Tudo o que falei do filme de Crowe vale para este com uma diferença, este é melhor. Simples, triste, solar ao mesmo tempo, é cinema sobre gente e não sobre bailarinas de cartoon dark ou viciados em sexo de manual de arte-para-iniciantes. Tomo radical posição ao lado de O Artista e de Hugo contra a moda emo. E sei que esse cinema que hoje combato é culpa do meu heroi Bergman. O gênio da Suécia criou o cinema como arte-da-crise existencial, e um bando de pseudo-artistas tenta a 50 anos repetir seus passos. Acabam por fazer uma versão teen dos dramas bergmanianos. Fazem um tipo de PERSONA para iletrados. Aqui não. Becker faz um filme longe desse mundo de baboseiras. Depardieu é apenas um bronco que descobre a cultura. É lindo, é real e é profundamente humano. Imperdível!!!!! Nota 8.
   XINGU de Cao Hamburger com Felipe Camargo e João Miguel
O que deu errado? O tema é o melhor. Os cenários de sonho. Mas não emociona jamais. Voce vai ver um filme como este para sentir frisson, adrenalina e até lágrimas. Nada disso ocorre. Voce se interessa e não se entedia, mas nunca seu coração dispara. Uma entrevista com os heróicos irmãos funciona muito mais. Creio que somos um país de documentários. Não entendemos o espetáculo. Um doc com este tema funciona como show mais que este filme. O que é uma contradição. Mas merece ser visto pela beleza plástica e a nobreza de seu tema. E a coragem de Cao ao empreender uma obra tão dificil. Mas devo dizer, é frustrante. Nota 6.

POEMAS DE RAINER MARIA RILKE

   Nascido em Praga, Rilke foi durante os anos 40 e 50 o mais amado poeta do mundo. Mas na radicalização politica da década de 60 ele não só perdeu seu posto como se tornou um tipo de simbolo do "poeta hiper-valorizado". Rilke nunca foi o maior poeta do século, mas está longe de ser hiper-valorizado. Sua obra tem beleza que é só dela e melhor ainda, tem uma filosofia musical, uma espiritualidade vaga que lhe dá permanência. Rilke sobreviveu aos anos 60 e 70. O século XXI sabe o compreender.
   Criado pela mãe como se fosse uma filha, ele tinha tudo para ser um poço de complexos. Não foi. Rilke passou pela vida sendo muito amado, mimado, valorizado. Claro que ele via a vida com olhos de poeta, beleza e melancolia se casavam em sua vida, mas foi uma vida plena, realizada e curta. Rilke morreu aos 51 anos vitimado por uma leucemia.
   Viveu como um poeta "antigo". Escrevia sob forte inspiração e era sustentado por ricos mecenas. Cercado de mulheres que o amavam, em tudo ele confirma a imagem chavão do Poeta. Escrevia cartas aos milhares e se isolava em castelos para escrever. Viajou, amou, escreveu... Escreveu o que?
   Rilke criou algumas das mais belas imagens da poesia moderna. Sim, foi um moderno. Pois mesmo vivendo como um romântico e odiando profundamente tudo o que fosse "ciêntifico", Rilke escreve sem metro, solto, ao sabor do desejo. Escreve sobre a alma, anjos, morte e a fugacidade das coisas.
   "Todo anjo é terrível"
   Sua poesia é gnóstica. Ele busca conhecer as coisas e topa constantemente com uma imagem: o anjo. O anjo como ser tão imenso que aterroriza. O coração deixa de bater, assustado, ao vê-lo. Para Rilke, um dia pudemos ver os anjos porque suportávamos sua imagem e até mesmo ríamos com ela. Perdemos essa possibilidade, hoje tudo o que sentimos é medo.
   "Oh! Quer a transformação!"
   Gnose. Ele tem a consciência de que tudo é transformação e ao mesmo tempo é um ponto vazio. A alma, como a pantera de seu mais famoso poema, anda aprisionada em sua jaula e ansia pela liberdade que virá.
   Rilke fala de coisa interessante: o homem deve merecer a sua morte. Cada um deve ter sua morte, construída em sua vida. Ele tinha horror a morte anônima dos hospitais, dos súbitos acidentes. O homem deve morrer a morte criativa, a morte que lhe cabe de acordo com o que viveu. Jamais pense ser isso convite a suicidio; é a morte em casa, em ação cotidiana, a morte que se insere naquilo que foi sua vida.
   Para um homem que amou e foi amado da forma como ele foi, há em sua poesia uma surpreendente ausência de sexo e de musas. E falo isso como um elogio. Rilke não usava sua vida como objeto de exposição, ele a usava como suporte a sua obra. Escrevia sobre o espirito e somente sobre o espirito. Tudo me sua obra é ritmo em busca do absoluto. Caça à epifania.
   Termino citando três filmes que sempre me vêem a lembrança ao ler Rilke.
   Asas do Desejo, Morangos Silvestres e Viver!
   Wenders, Bergman e Kurosawa. Todo o idealismo alemão, idealismo tão forte em Rilke se faz explicito na obra-prima de Wenders. Não são anjos terríveis os do filme, mas a vida desses anjos é. No filme de Bergman, o filme que mais cresce em meu conceito a cada vez que o revejo, há a busca por sentido e o encontro com a morte merecida. E temos Viver!, o mais doído dos filmes, de uma tristeza insuportável e ao mesmo tempo de terrível beleza. O velho que parte da vida, vivendo numa intensidade como jamais antes teve a coragem de tentar, é toda a demonstração do objetivo da poesia de Rilke. O velho que canta e se balança na neve é imagem de terrível e quase assassina beleza.
   Meus poetas favoritos tomam conta de lados daquilo que sou.
   Keats é meu sonho. Stevens meu intelecto. Pessoa meu exterior e Yeats minha alma. Rilke é meu medo.
   O livro é traduzido por José Paulo Paes. Perfeito.

UM LUGAR AO SOL - GEORGE STEVENS, DEMASIADO HUMANO, DEMASIADO HUMANO...

   George Stevens já era um diretor famoso quando em 1941 foi para a Segunda Guerra. Até então ele era basicamente um diretor de comédias, um excelente diretor de comédias, que começara fotografando filmes de Laurel e Hardy e evoluíra para as produções A. Na guerra ele comandava um grupo que era encarregado de filmar e fotografar batalhas e tomadas de cidades. Stevens esteve no dia D e mais importante, foi seu grupo o primeiro a entrar em Dachau. George Stevens foi o primeiro a ver e registrar câmaras de gás, pilhas de ossos e corpos jogados como lixo. De volta a seu país, ele nunca mais dirigiu uma comédia. Este filme, considerado por muitos um dos melhores filmes já feitos na América, é uma sinfonia sobre compaixão, sobre desamparo e sobre o azar.
   Montgomery Clift é um rapaz pobre que cruza o país para encontrar um tio rico. Lhe pede um emprego e passa a trabalhar na fábrica do tio. Se envolve com colega de trabalho e a engravida. Mas ao mesmo tempo começa a ser surpreendido pelo interesse que desperta numa rica herdeira belíssima. Tudo, que poderia ser sorte e alegria, se faz desencanto, erro e crime. O filme é de uma melancolia absoluta.
   Baseado em clássico de Theodore Dreiser, o roteiro não faz concessões. Clift é um rapaz triste. Em seus olhos e nos seus modos vive um tipo de "estrangeiro", de homem que nada sente por inteiro, de alienado. Marlon Brando levou a fama, mas o ator que criou o modo moderno de atuar é Clift. Torturado, complicado, profundamente infeliz, Clift morreria aos 45 anos de alcoolismo. Seu trabalho aqui é impressionante. Jamais sentimos raiva ou pena dele, sentimos proximidade, compaixão.
   Incrível pensar que Elizabeth Taylor tinha 17 anos aqui. Foi seu primeiro filme sério e ela está lindíssima. Faz com leveza e coquetismo a milionária que cai de paixão por Clift. As cenas de beijo dos dois são plasticamente imbatíveis. O filme fez dos dois, amigos para toda a vida. Shelley Winters faz a proletária engravidada. Há uma cena, em que ela vai ao médico para tentar aborto. A cena lentamente se transforma  numa luta surda, cruel, tristíssima entre Shelley e a verdade.
   George Stevens se fez famoso pelo seu capricho. Filmava muito, gastava meses em montagem, era um perfeccionista. Nos extras Roubem Mamoulian diz que ele tinha o mais corajoso dos estilos: cenas longas, sem movimento de câmera, sem cortes e enfeites. E são cenas maravilhosas! A beleza do filme está ligada ao tema. Nunca é uma beleza gratuita. Como diz Warren Beaty em outra entrevista nos extras, Stevens dirige sem se exibir. Como faziam Renoir, Wyler e Zinnemann, é a direção invisível, não intrusiva, que conta e mostra, que nos faz esquecer que aquilo é um filme.
   As cena se fundem em outras cenas. É um efeito encantatório. O rosto de Liz Taylor se apaga lentamente enquanto um carro passa correndo numa estrada. Ou o lago brilha ao luar e desaparece dando lugar aos rostos de Clift e Liz. As cenas se embaralham, se torcem, fluem como brilho de sonho. Aliás, todo o filme tem um aspecto maravilhoso de sonho ( ou melhor, pesadelo ). Mas não é só na forma ou em seus atores que reside a grandiosidade de A Place in The Sun. É na humanidade do todo que ele nos toca mais fundo. Aqui não há um vilão. Não há um herói. Os milionários são apenas homens, assim como os operários. As duas mulheres se comportam como amorosas e assustadas apaixonadas. Nenhuma delas é ruim ou boa. E Clift, numa atuação mágica, faz um assassino que nunca parece ruim ou esperto, e um herói que é todo mentira, tristeza e distancia.
   Vencedor de 6 Oscar, sucesso de bilheteria, feito antes de SHANE, este é um filme inesquecível.

TRANSFORMER, FUTEBOL, SEXO E AL GREEN

   Parece que afinal foi descoberto o óbvio, 1972 foi o melhor ano do rock. Uma série de shows, inclusive no Brasil, comemoram os 40 anos do ano que enterrou o passado e definiu o futuro do futuro. 1972 acabou de vez com as ilusões hippies mostrando ao universo a cara cínica, hiper-profissional e metida a besta do rock. Foi ano que deu aos tempos vindouros o caminho em estilo e produção.
   Harold Bloom, que não gosta de rock mas entende de mundo, diz que durante quinze anos o rock foi uma experiência mistica-transcendental. Seus amigos e alunos iam a shows de Grateful Dead ou Jefferson Airplane como quem ia a um momento decisivo em termos de existência. Procuravam uma reviravolta, um renascer. Em 1972 esse povo botou as botas na Terra. A experiência passa a ser carnal: sexo, drogas e ação.
   Exile on Main Street dos Stones, Harvest de Neil Young, Transformer de Lou Reed, Roxy Music 1, Let's Get It On de Marvin Gaye, Music of My Mind de Stevie Wonder, Catch a Fire de Bob Marley, Ziggy de Bowie, Slider de T.Rex, Superfly de Curtis Mayfield, Gram Parsons, o primeiro do Kraftwerk, Honky Chateau de Elton John, Funkadelic.... uma multidão de discos que ecoam sem parar nessas quatro décadas. Não há nada feito nos últimos milênios que não beba dessa fonte.
   Os Vingadores batem o recorde de bilheteria....em 1972 esse recorde foi batido pelo Poderoso Chefão....alguma coisa ruiu desde então. Falar de cinema hoje é falar de saudade ou de futilidade.
   O Bandido da Luz Vermelha é o maior filme já feito neste Brasil. Hoje estréia sua tardia continuação. Não vi ainda mas já adorei. Tem o sublime Ney Matogrosso fazendo o Luz Vermelha. Segundo Ney, o bandido passou 40 anos na prisão lendo Baudelaire, Nietzsche e Kant. O filho do Luz segue os passos do pai. Faz tudo o que ele fez...em 2012. Não conheço melhor definição do mundo de hoje. Fazemos tudo aquilo que em 68/72 foi feito. As mesmas passeatas, as mesmas rebeldias, as mesmas caretices, as mesmas bandas, as mesmas atitudes. Mas com rostos sem rugas e sem marcas de história. Vazio portanto. Apenas cópias.
   No youtube tem uma cena em que George Best solta gargalhadas enquanto joga bola pelo United em 1968. Ele vai bater uma falta e um amigo do mesmo clube lhe rouba a bola e o dribla. Entendeu porque descrevo esta cena aqui?
   Dylan veio ao Brasil e fez o melhor show da década. Pouca gente viu. Em 1965 ele dizia que o mundo estava empenhado em morrer e que ele estava empenhado em viver. Em 2012 ele continua vivo. Recria suas músicas em cada show, percorre a estrada e renasce a todo dia. Dylan é a prova viva de que viver é possível.
   Ando com um amigo por ruas escuras. Um insight: Dylan repete Rimbaud e Whitman. Renascimento. Morte em vida, mortes em vida e a ressurreição antes da morte. Dylan é um exemplo de gnose.
   Neymar nos recorda que o futebol é uma brincadeira. Ele chega ao limite do jogar por jogar, onde a vitória é um detalhe e o gol uma celebração. Neymar não é um turista. É um peregrino.
   Quando aquela menina anda com seus jeans esfarrapados grudados nos quadris eu sinto que o sexo é uma chance para se deixar de ser bobo. Eu me afundo nela, me esqueço de mim nela, me engulo nela e me perco de mim nela. E depois volto pra mim-mesmo mais eu do que nunca. Quero que ela faça o mesmo. Ela faz. O sexo existe pra gente morrer nele. E aprender a reviver nele. Carne e suor também é religião.
   1972 teve Al Green. E quando se tem Al Green não se precisa de mais nada.

EXILIO

"Tudo já foi dito, tudo já foi escrito, tudo já foi feito"- Foi o que Deus ouviu. E ainda não tinha criado o mundo, nem existia coisa alguma. "Também isso eu ouvi", Ele respondeu, do separado velho Nada. E pôs-se a obra.
Uma romena certa vez me cantou uma melodia popular que mais tarde reconheci incontáveis vezes, em várias obras de vários autores dos últimos quatrocentos anos. As coisas não começam, ninguém contesta isso. Ou pelo menos não começam no momento em que foram inventadas. O mundo foi inventado velho desde o começo.
Jorge Luis Borges.

Um mundo feito por um deus que não era deus. Um mundo onde estamos exilados. Essa é a crença profunda de todo artista. O exílio. O deus que cria Adão não é Deus. A criação do homem e deste universo já é uma queda, uma catástrofe. E todas as igrejas são ilusões. Perpetuação do erro. Jesus não ressuscitou. E os anjos existem apenas para nos confundir.
Se eu escrevesse isto em 1600 seria morto. Hoje, parece uma banal verdade. Um simples pessimismo. Mas para colocar as coisas em seus devidos lugares, devo completar o que escrevi.
Exilados na saudade do Deus que foi afastado de nós. Nostálgicos da união. Jesus era um viajante. Ressuscitou "antes" de morrer. São Paulo não nos fala de Jesus, fala de Paulo. A sensação que temos de termos sido enganados. A certeza de que já fomos melhores, maiores, livres. As tentativas de se estabelecer contato com a verdade. Somos eternos mas a morte existe. Renascer antes de morrer. Ninguém renasce após a morte, a coisa se decide agora. Encontrar a voce-mesmo e salvar Deus de seu exilio. Whitman, Rimbaud, Emerson, Huxley, Rilke, Melville, Shelley, Yeats, Lawrence, Borges. Os grandes "buscadores".
Eu não me impressionaria tanto com essas ideias se não as pensasse desde sempre. E sei que muito pensam e não falam. Ou não conseguem as expressar em pensamento coerente. Então fica mais fácil dizer: Bláh!!!
A ideia de Deus exilado é a mais dolorosa que se pode ter. Mas deve-se saber que uma fagulha da criação primeira ( antes da queda-criação ) ficou em nós. E é essa fagulha que nos faz procurar, indagar, estudar, viajar, penetrar na vida. Procuramos até percebermos que aquilo que procuramos sempre foi nosso. Mas não é dado ver a todos.
É por isso que amo os trovadores. E vi em cada amor a chance de transformação. É por isso que sofro da nostalgia dos homens grandes e do mundo grande. É por isso que sempre senti a urgência de salvar alguma coisa em mim e fora de mim.
Nascemos antes.
E se voce não sabe não cabe a mim dizê-lo.

A FÉ DOS ATEUS

"O homem está numa armadilha...e a bondade de nada lhe vale na nova ordem. Ninguém mais liga para isso. Bem e mal, pessimismo e otimismo- são uma questão de grupo sanguineo, não de disposição angélica. Quem algum dia se interessava e cuidava de nós, quem se preocupava com nosso destino e o do mundo, foi substituido por outro que se regozija com nossa servidão á matéria e às mais baixas partes de nossa natureza."
Lawrence Durrell.
Durrell foi um escritor terrível. Se voce não o conhece, não pense que se trata de um autor bonzinho. Ao contrário. Ele escrevia livros sobre o seco desespero, sobre sexo, sobre o absoluto vazio. Se quiser o conhecer leia "O Quarteto de Alexandria", saga composta de 4 livros. Foram escritos nos anos 40/50. Nesta nossa época de absoluta covardia, em que nossos escritores se conformaram com suas "questões miúdas", Durrell, como Bernanos e Camus, se dava questões espinhosas. Viajante incansável, ele procurava respostas. E tinha a grande consciência de que procurar essas respostas era a própria resposta.
Valentino foi um cristão herege do século III. Perseguido pela igreja, seus passos foram apagados da história no século VII. O dogma cristão não pode conviver com a tradição que Valentino revivia. Uma tradição que é a alma da religião do mundo de hoje. Mesmo os ateus a seguem sem o saber. Louca contradição, na época da tecnologia, tudo o que fazemos, sem saber, é nos aproximar da mais antiga das religiões do ocidente. O trágico é que por não ter consciência desse movimento, nossa aproximação é pobre. superficial, oca. Mas real, verdadeira e ansiosa. Vejamos.
Valentino falava de uma tradição que vinha de Zarathustra, figura histórica do Irã de cerca de 2000 a/c. O que Valentino disse que fez dele um herege foi que Deus não é anterior ao homem. Temos uma centelha divina que é eterna tanto como Deus. Ele não a criou, existe com ela. Em nós há uma alma que é tola como a carne, e esse "eu interior", eterno e personalisado, habitante do mais profundo centro de nosso ser, fagulha que justifica nossa existência.
Se voce é só um pouquinho esperto já notou onde está o pensamento que faz com que essa seja a fé desta nossa época. Tudo em nosso mundo é a procura dessa fagulha. E essa é uma particularidade que nasce na renascença e atinge seu apogeu agora. O homem olhando para dentro de si-mesmo, se fazendo cada vez mais solitário, entretido nessa busca por sentido, por razão, por luz. Empreendendo viagens de conhecimento, experimentos mentais, análises psiquicas, meditações, tentativas de se encontrar. Gente que não segue uma igreja, um dogma, um programa, mas que intuitivamente tateia a procura de algo dentro de si. É a religião dos intelectuais, dos insatisfeitos, e que existe até mesmo nos ateus. A vontade obssessiva de conhecimento, de um conhecimento que vive dentro e não fora daquele que procura. Nada de novo, esse desejo mistico sempre existiu, sempre foi arduamente combatido por todo dogma, e sempre sobreviveu oculto. Sim, desejo mistico, pois o que se procura é a verdade, o ser voce-mesmo, a paz final, o sentido das coisas e da vida. Em 2012, qual o pensador, seja filósofo, poeta, físico, médico ou vagabundo boêmio, que não ansia por isso? Que não passa a vida tentando chegar ao centro de seu interior e ver o que há nesse centro?
Mas não confunda as coisas. Se para encontrar esse centro voce usa os passos de algum outro caminhante, voce segue um dogma e na verdade não está saindo do lugar. O que Valentino dizia que mais irritou a igreja é que ninguém pode fazer o trajeto por ninguém. Cada um é único, ninguém faz parte de um rebanho ou de uma corrente. Cada descoberta é feita a seu modo, de seu estilo, com sua conduta. Individual. Fé de caráter elitista e individualista, ela tinha de ser perseguida pelas religiões que pregam o comum e o coletivo.
Bobamente então, viajamos ao Perú, a Indonésia ou viajamos em LSD, sem saber qual o sentido dessas viagens. Estudamos poesia, psicologia, religião, sem saber o porque desse estudo. Ficamos abstraídos em pensamentos confusos, sonhamos imagens simbólicas, nos fechamos em doida busca digital, sem saber o porque desses atos, desses sonhos, dessas ansias. E lemos tolices que prometem dar um caminho, vemos filmes que parecem dizer algo ( e nada falam porque temem se perder ), tentamos mergulhar em música, em sexo, em sentimentos "profundos"... tudo isso com um só objetivo: nos encontrar. Há algum outro objetivo na vida dos pensadores no último século e meio? Na arte moderna ou nas vidas dos homens privilegiados que não precisam pensar apenas em sobreviver?
Pois saiba que desde antes do judaísmo já havia esse sentimento. A busca do eu-verdadeiro, do eu que não pode morrer porque jamais foi criado.
Escrevo agora alguns pensamentos de Henry Corbin, o mais renomado estudioso dessa fé ( Sim, não tema a palavra fé. Sem ela voce não consegue nem mesmo atravessar a rua ).
A divisão mental entre abstração e razão tirou toda a possibilidade de se entender a vida. Já fomos capazes de ler tudo o que há na existência. Hoje só podemos ver aquilo a que fomos ensinados a perceber.
Se buscamos a nós-mesmos fora de nós-mesmos, encontramos a catástrofe. Catástrofe erótica, na forma de amores-paixóes fadados a insatisfação; e ideologias, onde tentamos nos ver naquilo que foi criado por outro.
A linguagem poética faz com que conheçamos aquilo que está dentro de nós. Cada grande poeta nos dá a possibilidade de um nascimento interior.
Religião individualista, fé daqueles que passam a vida atrás de conhecimento, crença em eu-interior que não pode deixar de ser, o caráter mais terrível dessa corrente mistica é a certeza de que toda a verdade existe desde sempre dentro daquele que a procura. Dessa forma, padres, guias, lideres, passam a ser supérfluos. Viver a vida que vale a pena é andar só e confiar apenas no seu interior.
Existe religião que seja mais a cara dos dias que agora vivemos?

A AUTO-AJUDA DAS SOMBRAS ( PONDÉ, O VAMPIRO FUNKY )

  Está escrito no rosto de Pondé o deslumbre pela fama. Quando ele fala tudo tem um acento de "veja como falo as verdades". E pior, por várias vezes ele cai na tentação da piadinha fácil. Seria delicioso se fosse um cara tipo CQC, mas é um filósofo. Pondé não sabe, mas em seu reducionismo tolo, faz o papel de auto-ajuda dark, um tipo de new-age para quem se vê como muito superior à new-age.
   Uma hora falando o óbvio: "Gente! O ódio é real e existe em todos nós!" Caramba! Ninguém sabia disso! Ele conseguiu ser mais primário que o mais banal dos consultores-psicólogos de programa feminino. O triste é que eu sei que de banal Pondé não tem nada. O problema é seu deslumbre.
   Ele simplificou tanto algumas coisas que me dá a sensação de que ele pensava estar falando para um bando de crianças. Dizer que irmãos têm como laço apenas a trepada acidental dos pais é reduzir algo de hiper-complexo a uma piadinha imbecil.  Um irmão, no mínimo, é alguém que interfiriu poderosamente no destino de uma criança. Alguém que compartilhou uma casa, um afeto, um estado emocional familiar. Foi testemunha participante de um drama. Muito mais que mera trepada acidental.
  Quando ele falou de cristianismo, aí a coisa degringolou para a pura tolice. A base do cristianismo não é e nunca foi o "ame a todos". A frase é "Amar o próximo como a si mesmo", e o centro da proposta é o terrível "Como a si mesmo". Amar a si mesmo é a grande dificuldade. Esse amor NÂO é uma imposição, é um alvo inatingível, mas que deve ser tentado. A virtude está na tentativa. Culpa por não conseguir amar? Aprenda a conviver com ela baby.... É isso que nos dá o livre-arbítrio.
   Pondé quase se trai quando fala da inveja. Dá pra ver em sua cara uma coisa tipo : "EPA!"  Ele fala das invejas e cita o dinheiro, o sucesso, as mulheres...mas esquece, para mim de propósito, a principal: a inveja da bondade. Temos um ódio invejoso terrível de quem é bom, de quem parece inocente. Invejamos aquele que parece ter pouco ódio e nos consolamos o imaginando reprimido, fraco ou simplesmente estúpido.
   A marca da auto-ajuda é o reducionismo. Transformar o complexo em simples. Todo livro desse estilo fala de coisas muito importantes de um modo retardado. Pondé se faz um tipo de auto-ajuda das trevas. Seu show de humor cansa.
   Invejo seu sucesso. Deploro sua babaquice.