HENRI BERGSON: UMA REAÇÃO CONTRA A VOZ COMUM

   Filósofo central da virada do século XIX para o XX, Bergson, Nobel de 1928, sempre correu riscos. Sua filosofia se ergue contra o senso-comum de seu tempo. Ele faz o elogio da ciência, mas não se esquece de falar que à ciência cabe o que é científico. A vida é outra coisa. O que?
   Primeiro a inteligência. A inteligência existe para lidar com a matéria. E a linguagem, atributo básico da inteligência, é ferramenta que possibilita vida em sociedade. Para lidar com a matéria o homem usa sua mente em termos materiais, que seja: espaço e tempo. Uma pedra tem peso, tem tamanho e tem presença. Nossa mão tem tamanho, peso e presença. Nossa inteligência tem o dom de trabalhar sobre essa realidade. Ela entende a vida nesses termos, geometria e tempo. Mas há um problema nisso: a vida não é assim.
   Espaço. Nada no universo é linear. Nossa inteligência se move em linha, como a fala, como a linguagem. Mas o espaço fora de nós nada tem de linear, de ordenado, de sujeito-predicado. É então que Bergson passa a falar do tempo. Mas antes faço um parênteses.
   A sensação espacial-temporal que Bergson revela me é muito conhecida. Várias vezes em minha vida tive essa impressão de que bastaria deixar meu cérebro ir mais fundo, deixar as certezas sumirem, para que então a verdade da vida me fosse dada. Uma sensação de que todas as linhas, mapas e coordenadas poderiam ser apagadas, esquecidas, perdidas. Esse momento, que tanto me é próximo, é aquilo que Bergson chama de intuição. Eis a coragem de sua filosofia: é baseada em intuição e não em razão. Bergson usa a razão para chegar a intuição. Para ele, é no momento fluido do vislumbre criativo que a verdade surge. Ele diz que todo pensador teve um breve momento intuitivo, e que todo seu filosofar posterior é uma tentativa de descrever em palavras "alguma coisa que nega a palavra, que não se presta ao discurso", a intuição primeira.
   O tempo só pode ser apreendido pela razão ( como todo o real ) se for contado e dividido em pequenas unidades. Aprendemos a pensar em termos de um tempo que pode ser contado. Mas "sabemos" que não é assim. Não há um momento que nasce, acontece, termina, e um outro que nasce, acontece e termina. Não há passado e não pode haver uma parada-final para o homem ( como há para as pedras ). O tempo é uma fluidez contínua, um incessante nascer e acumular, um fluxo criativo que nunca cessa, um vir a ser que não pode ser datado, contado ou capturado. Internamente ( e toda a filosofia de Bergson é sobre a interioridade ), o tempo é eterna presença, o ontem é sempre agora. E é isso que é inalcansável para a ciência: a vida é movimento incessante, e a razão só pode trabalhar com aquilo que está estático ( mesmo que seja o movimento, ele será dividido em unidades estáticas ), a fluidez é incompreensível para a razão, mas é intuida pelo espírito. Não há um só átomo parado no universo, nada portanto pode ser entendido sem que se entenda seu movimento. O tempo é essa hiper-fluidez que foge, que carrega o acúmulo de tudo já vivido, que se debruça e se esparrama.
   O conceito de "duração", tão dificil de ser entendido, seria então esse constante fluir. A contagem de tempo e a medição de espaço seriam operações, artificiais, do cérebro-razão, modo de se proteger da insegurança do que escapa do controle, modo de lidar com a técnica-sobrevivência. A duração é o tempo real, tempo criação, mutável eternamente, um incessante nascer.

HENRI BERGSON TALVEZ TENHA ACERTADO

   Um dos aspectos mais enganosos de todo pensador é quando ele generaliza o que é particular. Digamos que um jovem inteligente, por um azar ou acaso da vida, tenha tido um pai extremamente severo e frio. Se pensador, o maior erro que esse homem poderia cometer seria o de formar uma tese geral baseada na frieza de todo pai. Ou digamos que um outro fosse incapaz de sentir amor. Como artista ele teria todo o direito de expressar o desamor da vida, sua má sorte amorosa, ou o pouco amor que é dado a seres como ele. Mas se ele formasse uma teoria em que a ausência de amor fosse lei geral, aí o particular se confundiria com o todo. Muitos se identificariam com a tese do pai frio e com a tese do amor ausente; mas aqueles que discordassem não estariam necessariamente errados. A teoria "chutada" por Mr.X não os teria conquistado porque sua vida nada teria de comum com sua tese. A maioria dos filósofos comete esse erro. Confunde sua visão pessoal de vida com a verdade geral. Generalisa. Faz do particular e original algo de geral e comum. Bergson, dentre várias outras coisas, se debate contra isso. Se ao falar do tempo ( duração ) e do pensamento ele é mais interessante, não deixa de ser fascinante a forma como ele demonstra o quanto há de ressentimento pessoal na filosofia, na sociologia e na psicologia. Pessoas que por serem incapazes de viver ou sentir alguma coisa da vida, passam a crer que não viver e não sentir tal aspecto seja o geral. Transformam a cegueira em falsa visão.
   Toda a teoria de Bergson tem a saudável fonte da dúvida. Ele jamais diz "é assim", ou "deve ser isso". O que ele fala é "talvez seja" ou "pode ser que". Não temo dizer que é o meu filósofo. Dúvidas e ansiedades que tenho desde sempre são compartilhadas por Bergson. O que a mim importa é o que lhe importa. Autor que me surge na hora exata ( intuição? ). Me vem quando posso enfim o entender e ver o que ele viu.
   O que mais se pode querer de alguém que pensa, a não ser pensar com voce sobre aquilo que é seu?

CINEMA TRANSCENDENTAL- CAETANO VELOSO ( O REINO DE EROS )

   Sempre que estou feliz estou em sentimento erótico e sempre que me sinto em Eros ouço música de meu país. Pretensioso? O fato é que o ressentimento baixa de grau e então me permito ser o que sou desde sempre. Voce sabe, por aqui ninguém é mais vítima de ressentimento que Caetano. Tem uns criticos de rock que adoram falar mal dele ( crítico de rock falando de Caetano....é como crítico de cinema falar de teatro ou de pintura palpitar sobre arquitetura. O que um cara que opina sobre Rem e Clash tem a ver com Caetano? ). Ressentimento. Caetano canta muito, fala muito, sabe muito e pior, parece ser feliz. Imperdoável. Lembro que fui adolescente ressentido. Ateu, revoltado, anti-tudo, nada me irritava mais que aqueles bicho-grilos do Objetivo que amavam Caetano. Asquerosos. O que não queria perceber é que o que me irritava é que eles tinham tudo o que eu queria e não tinha. Parecia que eles estavam sempre em paz, rindo, parecia que rolava muito sexo, droga, folias e festas. Estavam sempre cantando, beijando, meio pelados e cheios de sol. Eu me ressentia e criava uma raiva anti-erótica sombria e mortal. Isso tudo mudou quando amei de verdade pela primeira vez e descobri o sol, o suor, eros e a felicidade. Este disco veio junto. Entendi. Não sou brasileiro. O Brasil não é meu país. Eu sou do Brasil. Por mais que engula litros de Henry James e Roxy Music, eu sou daqui. Sem ressentimentos, please.
   As letras. Gringos diziam que era incompreensível como um país de iletrados podia ter uma música popular de letras tão sofisticadas. Tão profundas. É provável que essas letras ainda sejam escritas, mas não são mais populares. Regredimos. O ressentimento vingou-se de sua ignorância. Oração ao Tempo é filosofia profunda em forma de mpb. Caetano diz ter recebido toda a letra de seu inconsciente enquanto fazia a barba. Não vou citar aqui trecho nenhum da letra, seria injusto não citá-la inteira. Não conheço letra popular mais complexa.
   O disco é todo solar. É pele bronzeada com gota de suor. Areia voando e cheiro de mar. Mas é todo voltado pra dentro, é auto-análise, é divagação aprofundada. Pretensioso? Qual o pecado desde que exista prazer? Uma canção de Jorge Mautner: O Vampiro. Eu amava Aninha e a ouvia todo dia. Feliz mas chorando de amor que crescia sem parar. A canção diz tudo. Não há melhor letra sobre a dor de amar e amar cada vez mais. " Voce é o estandarte da agonia/ Que tem a lua e o sol do meio dia". Só voz e violão e solidão. A voz dele parece cantar para mim e só pra mim. Outra canção é Elegia, baseada em John Donne. Erótica. Tropical. Feliz, muito feliz.
   As mais belas rimas estão em Trilhos Urbanos. Todas as palavras se chamam umas às outra e andam como vento em ruas de verão. É uma aula completa sobre ritmo e poética. Tivesse nascido vinte anos antes e Caetano teria sido nosso melhor poeta "de livro". Mas ele cresceu com Caymmi, João e samba e deu no que deu. Além da voz, a voz que nunca desafina.
   Vale dizer que ao escutar tudo isto durante meses todos os dias aos 15 anos o disco gravou-se em mim. E o reencontrando hoje, impregnado neste dia, de Bergson e de uma primavera que promete, percebo ser este disco mais "eu" que tantos outros eus que conheci em discos e livros desde então. Graças aos céus conheci este mundo a tempo. Nas faixas deste disco mora não só meu melhor lado, como brilha ao sol meu mais feliz mundo.
   COMPOSITOR DE DESTINOS/ TAMBOR DE TODOS OS RITMOS/ TEMPO TEMPO TEMPO TEMPO/ ENTRO NUM ACORDO CONTIGO...
  

CLARK GABLE/ WELLMAN/ WELLES/ KEVIN KLINE/ WOODY ALLEN/ ASTAIRE

O GRANDE MOTIM de Frank Lloyd com Clark Gable, Charles Laughton e Franchot Tone
A clássica história do navio Bounty, que no século xviii foi palco de famoso motim. Laughton faz com vivo prazer o capitão cruel e de rígido costume; Gable é o jovial imediato que acaba por apoiar o motim; Tone é um nobre que viaja para pegar experiência. O filme, maravilhosamente bem produzido em padrão MGM, é diversão típica dos anos 30, ou seja, simples, eficiente, inteligente. Caso raro de filme que ganhou Oscar de filme e mais nada. As cenas na ilha onde eles se exilam são belíssimas! O desempenho de Laughton é de não se esquecer. Nota 8.
BEAU GESTE de William Wellman com Gary Cooper, Ray Milland, Robert Preston, Brian Donlevy e Susan Hayward
Outra aventura clássica. Três irmãos de familia nobre-decadente servem na legião estrangeira. É o filme onde se criou a imagem do "sargento durão". Cooper está no auge da fama e nasceu para ser herói. O filme, muito bem dirigido, tem humor, drama e suspense. Wellman, diretor sempre confiável, tem senso de timing, de visual, de leveza. É um mestre. Assistir este filme é como ler uma velha história de HQ. Puro escapismo fofo. Nota 8.
MR. ARKADIN de Orson Welles com Welles, Paola Mori, Patricia Medina, Akim Tamiroff
É um dos vários filmes que Welles fez em condições muito precárias. Ele antecipa muito do clima nouvelle vague, tem às vezes algo de filmes como Alphaville. Welles brinca com a câmera, com os atores, com o enredo ( um tipo de policial complicado ), mas tudo acaba parecendo muito confuso, estranhamente vazio, e em seu pior, pedante. Nota 4.
ANTIGONE de Georges Tzavellas com Irene Papas, Manos Katrakis
A peça de Sofocles sobre a moça que enfrenta o rei para poder honrar seu irmão morto. O filme é belíssimo. Não houve medo algum de ser solene, distanciado, e o texto poético é bastante preservado. Mais uma prova de que grandes peças podem ser grandes filmes. Irene faz Antigone com senso maravilhoso de destino, mas Creon, feito por Katrakis, rouba o filme. É um rosto inesquecível, feito de pedra, cruel e rígido, terrível. As vozes são aterradoras. É um filme inesquecível. Nota 9.
XEQUE-MATE de Caroline Bottaro com Sandrine Bonnaire e Kevin Kline
Kevin sempre foi e é um ótimo ator. Fez então este filme francês, provávelmente por falta de bons papéis em Hollywood. Sandrine é uma camareira de hotel de luxo em cidade de veraneio. Ela se apaixona pelo jogo de xadrez ao vê-lo como algo que simboliza aquilo que ela não tem. É casada e completa o orçamento fazendo faxina na casa de um americano que escreve. Eles jogam xadrez. O filme é muito ruim. Entediante, nada nele faz sentido. Não se entende o porque de sua súbita paixão pelo jogo, o porque do arrogante americano abrir a guarda com ela, o porque de se ter feito tal filme. Não passou por aqui até agora e ficará bem se não passar. Nota Zero.
MEIA-NOITE EM PARIS de Woody Allen com Owen Wilson e Marion Cotillard
Owen está ok. É mais um ator que consegue fazer Woody Allen como o próprio. Marion está bem como a modelo de Picasso. Mas Adrien Brody como Dali está hilário!!!! É um filme que de certa forma celebra a vida. Mas a celebra de forma sem riscos, tudo dá certo sempre. É um prazer apaixonante ver Heminguay falar, Zelda e Scott dançar e Cole Porter tocar piano. Eles são meus mitos e portanto são parte do que me faz estar vivo. Belo filme. Crítica mais longa abaixo. Nota 7.
TRÊS PALAVRINHAS de Richard Thorpe com Fred Astaire, Red Skelton, Vera-Ellen
Longe de ser um grande musical. É do tempo de "vacas magras" de Astaire. Mas...caramba! Como é bom ver um filme de Fred Astaire!!!!! Há um alto astral tão grande e convincente que seus filmes servem como um tipo de mensagem, são como um lembrete daquilo que podemos ser. O que temos de leve, nobre e bonito em nós. Os serviços que Astaire nos fez são inestimáveis. Eis um anjo. Nota 7.

AS AVENTURAS DO BARÃO DE MUNCHAUSEN- RUDOLF ERICH RASPE

Talvez eu quisesse viver em fins do século XVIII.... se eu tivesse sangue azul e vivesse longe da França, claro. Melhor ainda, se fosse ligado ao alto clero!!!! Se uma época tem seu espírito revelado pela literatura que deixa à posteridade, o século XVIII tem na aventura e na busca pelo exótico seu talento mais especial. De Cândido à Tom Jones, de Crusoe à Gulliver, é esta a época dos livros de aventuras, de viagens, de contos filosóficos. O prazer guia a prosa.
Munchausen existiu de fato. Ele foi um militar-nobre, que ao se aposentar ( esteve em duas guerras ), entretia seus constantes convidados ( estamos em século que deplora a solidão ) com as fantasiosas histórias de sua vida. Logo, contos baseados em seus "causos" expalharam-se pela Europa ( nenhum deles escrito por ele mesmo ). Rudolf Erich Raspe, aventureiro que frequentou sua casa, escreve na Inglaterra ( estava vivendo por lá foragido ), as memórias do Barão. Um êxito! Um best-seller!!!! Desde então várias outras versões são coligidas, mas digamos que é esta a mais célebre.
O Barão viaja por mares, ares, chega a ir à Lua, ao inferno, voa pelos céus. A fantasia toma conta do escritor, e assim invade também quem o lê. O personagem é imenso, ele vai caçar e traz centenas de patos, se atira contra inimigos turcos mata logo um batalhão, e se sai voando numa bala de canhão, cai na Lua e conhece os lunáticos. Há uma exuberância em seu modo de narrar que não se esgota.
Nosso tempo precisaria de livros como este, de pura fantasia, de prazer sem propósito "nobre", de total "sem noção". Deixar a criação mandar na ação, ser levado para onde a fantasia desejar, liberar a mente de qualquer decoro ( e de qualquer objetivo simbólico ). Seria pedir demais?

MEIA NOITE EM PARIS- WOODY ALLEN

Quando o personagem de Owen Wilson procura aceitar sua condição temporal, tudo o que ele faz é recordar seus antibióticos. Vivemos a época do medo e é interessante que sempre que tentamos valorizar nosso tempo em relação aos "good old times", tudo o que conseguimos lembrar são nossos medicamentos e as condições de higiene. Woody, neste bom filme, errou em seu final. Ele acomoda as coisas e faz um final Disney. Muito mais interessante seria se o escritor se perdesse para sempre em seu devaneio. De qualquer modo ele encontra uma alma romântica como a dele, que se emociona com Cole Porter e ainda vê a "Paris" na Paris.
Todo amante de arte tem seu tempo mítico. Para quem ama a pintura ( como a personagem de Marion Cotillard ) esse seria a Paris de Gauguin e de Degas. Para um pintor, seria a renascença de Michelangelo. Um filósofo provávelmente iria desejar viver na Grécia de Platão e um músico na era de Mozart e Haydn. Como típico escritor americano, o personagem de Wilson ama a época de Heminguay e Fitzgerald. Woody Allen, que sempre viveu de certa forma nesse mundo de jazz e music hall, faz com que Cole Porter cante ao piano dando as boas vindas à Wilson no paraíso. Zelda e Scott Fitzgerald são seus anfitriões e nada poderia ser melhor. Ao contrário de Arnaldo Jabor, minha maior emoção não foi ver Cole ao piano ( e eu adoro Cole Porter ), mas sim a hora em que Dali, Bunuel e Man Ray sentam-se à mesa ( faltou Lorca ). Adrien Brody faz uma participação hilária ( '- Dali! Sou Dali!!!"), e Man Ray ( Voces que me lêem precisam ver seus curtas ) está lá, com seu olhar duro e curioso. Bunuel permanece silencioso, e é nessa hora que me emociono. Em mim surge uma vontade poderosa, um desejo de estar lá, sentado naquele lugar, desejo de ficar para sempre ali, rodeado por meus mitos.
O filme é exemplar nisso. Wilson, por mais inadaptado que seja, tem em si a possibilidade de ser feliz. Porque ele crê em algo, ele crê na Paris de 1926. Quando ele viaja para lá, tudo o que ele sente é maravilhamento, nunca medo. Mergulha em seu sonho, entra em contato com seus deuses e se encontra, pronto para o necessário retorno. Comparado a sua noiva, ele é vivo, grande, interessante e interessado. Aliás é sintomático observar como sua noiva está o tempo todo comprando coisas ou indo a algum lugar. Ela jamais usufrui, reflete ou espera. Combina com as ruas assépticas de Paris, em oposição as ruas enevoadas e escuras da "Paris".
Tudo fica mais belo com o jazz à Grapelli e Django, e ouvir o veemente Heminguay falar é para mim como encontrar um irmão mais velho. Não sei qual seria meu tempo ideal. Eu adoraria viver nessa Paris de 1926, como amaria a Londres de 1890. A vantagem de meu tempo é o de poder ler sobre Paris e Londres e ver este muito romântico filme. Mas acho dificil que alguém em 2094 sonhe em conhecer a época de Johnathan Frazen e Philip Roth. De Saramago e Llosa.
Mas talvez exista então, em um mundo que será provávelmente mais controlado e frio, o desejo de se visitar a época de Woody Allen.

A PROCURA DO MITO- ROLLO MAY

Nossa era tem feito um trabalho: exterminar mitos. Em louca ânsia de destruição, matamos ( tentamos matar ) tudo aquilo que atende pelo nome de mito ( ou sagrado ). Usamos a palavra mito como se ela fosse um palavrão, como se mito fosse tudo o que é enganoso, falso, ilusório. O mito vive onde não existe o tempo, é eterno e imutável, e é por isso que tendemos a negá-lo e nos rirmos dele, o nosso mundo é seu oposto, temporal, falível e sempre mutável. Numa sociedade que é educada para admirar a linha de montagem, o novo produto e a insatisfação, o mito se faz marginal. Nunca precisamos tanto de mitos. A vida sem eles não tem valor nenhum.
Rollo May fala disso. E fala mais. Começa falando de dois modos de se abordar o sentido da vida. Sartre propõe que esse sentido deve ser dado por nossa força individual. É o que hoje predomina. O individualismo extremo. E há o modo de Kierkegaard, procurar o sentido que existe independente de nós, o sentido oculto, o saber que é dado pelo mito. Essa é a filosofia que nos falta. May logo percebe que a psicologia surge em mundo sem mitos, se eles ainda vivessem não haveria o porque de terapeutas e analistas. Doença mental ou emocional é sempre a falta de um sentido, de um porque, de mitos que guiem e dêem ao ser o sentido do todo, o sentido de fazer parte, de comunhão.
Thomas Mann: "O mito é a verdade eterna em contraste com a verdade empírica, que é falível e mutável."
Nessa primeira parte do livro, Rollo May diz que os mitos conduzem os fatos e não o contrário. Ele explica isso usando como exemplo a descoberta da América. A criação de um clima favorável a esse encontro entre mundos, a Europa se preparando a esse choque, a esse mergulho em mundo novo, a essa transformação. Tudo na renascença prometia essa descoberta. Os novos mitos de então o apontavam. A pergunta que faço é: para o que nosso mundo hoje se prepara? Quais são nossos pobres mitos? Esses fiapos de lendas, de sinais e de crenças nos fazem esperar o que?
May fala então sobre a América. O homem europeu impressionado com o tamanho e o mistério do continente. Se lançando ao deserto, a fronteira. Nasce o mito americano, o homem sem passado, sem história, em constante renovação, em busca pelo novo. Novo lar, novo ambiente, desapegado de raiz, apegado a sua "realização". Eis o problema: se naqueles tempos esse mito era positivo, sua perpetuação fez do americano um homem sem contato com sua subjetividade, sua origem, um ser que valoriza o novo por ser novo ( como se a novidade fosse uma qualidade em si ) e que protege seu individualismo até a solidão absoluta. May cita a antiga cidade européia, em que há sempre a presença da catedral tranquilizadora, ( mesmo para ateus ),tranquilizadora por jamais sair de lá, ser testemunha de sua vida, dar às pessoas um senso de pertencimento, de continuidade, de comunidade. Isso inexiste no "mundo novo".
Que mitos nosso mundo tem criado? Qual o mito americano? Elvis? O self-made-man? Que heróis?
Rollo May sabe que a qualidade de uma civilização está na qualidade do que ela cria. Arte, religião, mitos. Somos produtores de uma arte vulgarizada e banal, que desistiu covardemente do sentido; de uma religião que nega o verdadeiro Deus, que prega o individualismo e a solução mágica; e de mitos que estão presos ao tempo e a razão, e que portanto são anti-mitos. Pois sua função é integrar consciente e inconsciente, dar sinais daquilo que nos é mais precioso, iluminar a treva da ignorância. Conduzir.
O livro faz a análise de algumas obras literárias "mitológicas": O GRANDE GATSBY, A DIVINA COMÉDIA, OS FAUSTOS de MARLOWE, GOETHE e MANN, PEER GYNT e MOBY DICK.
Gatsby como o mito dominante da América moderna. O homem que se faz do nada, que cria sua persona por vontade de ferro, que bem sucedido, dá festas onde nada acontece de verdadeiro, e que apodrece em tédio terminal. Gatsby nada tem de verdadeiro, de humano, de real. É a imagem da solidão, do não se conhecer, do homem que não encara o inferno e assim perde o paraíso. Pois o mito traz isso, o caminho para dentro, e adentrando voce pode encontrar afinal o que está fora; e afundando no inferno voce ascende ao céu. É o único modo.
Rollo May não cita Shakespeare, mas sempre que entro em contato com suas peças é isso que sinto: o quanto perdemos. Paixões intensas que levam ao prazer imenso, dores colossais que dão o conhecimento perseguido, o sentido da vida entre raios. O mito.
Na obra de Dante o livro cresce e nos absorve. Dante como um paciente e Virgilio o conduzindo pelo inferno "em terapia". Ver o mal para então conhecer o bem. Beatriz como a final integração com a mulher verdadeira e completa. Talvez a mais bela obra mitológica. Um poema sobre a saúde da alma. ( Senti isso quando o li no ano passado, uma paz imensa na companhia de Dante. )
Peer Gynt de Ibsen impressiona muito. Uma peça imensa sobre a alma que se perde. Lendo Rollo May dá uma vontade enorme de ler essa obra-prima de Henrik Ibsen. Há tradução?
Fausto somos todos nós. Fausto vende tudo em troca do poder. Renega a Deus e ao amor pelo conhecimento, pela ciência, pela liberdade. Rollo May a descreve com brilho, e percebe as diferenças: em Marlowe, Fausto é a peça que propicia a catarse do homem renascentista, ele é um blasfemador; em Goethe há a catarse do homem iluminista, Fausto precisa do mal, do irracional, da escuridão; e em Mann ele é uma nação tomada pelo mal, ele é a destruição absoluta, o niilismo. Fausto sempre lida com a sombra, com aquilo que negamos, com o que nos dá medo.
No capítulo seguinte temos a noção de tempo. Em nossa era apressada não há espaço para o tempo que amadurece. Em todas essas obras, em todos os mitos ( e há a análise também da BELA ADORMECIDA, o mito do tempo que o amor requer e precisa para poder acontecer ), há a sabedoria do tempo. O tempo como aliado, como processo necessário. As coisas crescem dentro das pessoas e acontecem no mundo após sua maturação. Em época de correria e ansiedade nada cresce em tempo certo, nada amadurece. O tempo se torna irritante, inimigo. Ele se demora e cria tédio, ou passa e traz o apodrecimento.
Há um trecho soberbo de Nietzsche em que ele fala da necessidade da presença do herói. Do quanto dependemos da vinda ocasional desse herói para iluminar nossa vida e dar presença ao mundo. Nossos heróis hoje se escondem em trevas por detrás de máscaras, solitários e pessimistas que trazem confusão em vez de solução. O que esperar deles?
Eu cresci com heróis e mitos. Mitos que me conduziram a ser o que sou e o que me tornarei. Que coloriram minha vida e me abriram para dentro de mim mesmo. Heróis que me deram exemplo e consolo. Errei muito, me perdi, mas minha vida sempre valeu a pena enquanto estive com eles. Me é incompreensível que alguém possa existir sem um mito, um herói, um rito. Pior, sinto pena de quem passa pela vida sem suspeitar de sua existência.
Ler este livro diz muito.

Sir Laurence Olivier receiving an Honorary Oscar®



leia e escreva já!

SER ATOR- LAURENCE OLIVIER ( UMA VIDA DE SORTE )

Laurence Olivier, de certo modo, mudou minha vida. Como aconteceu com várias outras pessoas, foi assistindo seu filme Hamlet que comecei a pressentir a grandeza de Shakespeare ( e consequentemente a presença da poesia como rastro da magnânima presença do Homem ). Neste livro, que não é uma bio mas sim um comentário sobre a arte de ser ator, Olivier explica, dentre outras coisas, como ele tentou traduzir a poesia do bardo em imagens de cinema. As brumas, a câmera rodopiante, as sombras e o foco cambiável. Foram essas imagens, fortemente cinematográficas, que me despertaram.
Olivier foi um gigante. Quem o viu no palco jamais esqueceu. Recordo as entusiásticas narrações de Antonio Candido, de Paulo Francis, de Fernanda Montenegro. Noites em teatro que são lembradas décadas mais tarde. Momentos de iluminação. O livro começa com a história dos atores que fizeram a glória de Shakespeare. Kean, Garrick, e já na era contemporânea a tríade Gielgud, Richardson e Olivier. Laurence confessa sua admiração por John Barrymore e Ronald Colman e suas dificuldades no cinema ( provocadas por seu esnobismo. Cinema para ele não era arte. Isso até conhecer William Wyler, que mudou seu conceito para sempre. )
Os grandes papéis de Shakespeare são analisados. Olivier ama Hamlet, adora Ricardo III, mas confessa jamais ter feito um Otelo satisfatório. Para os que adoram Shakespeare, é meu caso, são depoimentos deliciosos. Aliás, o livro inteiro, leve como uma conversa, é um prazer.
A primeira vez que vi Olivier foi na entrega do Oscar de 1979. Ele recebeu mais uma homenagem e fiquei impressionado com a emoção flagrante no rosto dos seus colegas. Não era comum que alguém fosse aplaudido de pé. Esse ato ainda tinha valor. E eu via aquele senhor tão famoso, sempre chamado de "melhor ator do século" e não conseguia perceber onde estava a tal grandeza. Me parecia que Paul Newman e Peter O'Toole eram bem maiores. Precisei esperar dez anos para ver Hamlet na TV-Hamlet e sentir o segredo.
Há uma previsão que Olivier erra por muito. Ele diz que por ser um veículo visualmente pobre, o futuro da tv seria o diálogo. Ele acreditava que programas de tv seriam diálogos brilhantes...Mas prevê que o cinema seria um tipo de experiência visual sem diálogos ou enredos críveis. É um otimista. Ele espera novos Oliviers. Novos Gielguds, novos Richardsons, Redgrave, Finney, Rodgers.... Aliás, a escalação de seu grupo teatral dos anos 60 é de sonho: Albert Finney, Peter O'Toole, Maggie Smith, Derek Jacobi, Anthony Hopkins, Alan Bates e Joan Plowright.
Com atores como esses Shakespeare não poderia estar mais vivo.
Postei acima a entrega do prêmio honorário a Olivier. É um prazer glorioso ouvir Larry falar. Os erres e as vogais ditas com absoluta clareza. Podemos quase comer o som. E é frustrante observar como o Oscar hoje parece vulgar, caranvalesco, burro. Laurence Olivier tem tempo para falar, Cary Grant tem calma para fazer a apresentação e o público pode reverenciar um gênio em vida. Deguste.

ORSON WELLES/ DEPARDIEU/ WISE/ BURTON/ DE SICA/ PETER SELLERS/ ZULU

ZULU de Cy Endfield com Stanley Baker, Michael Caine, Jack Hawkins e Ulla Jacobson
Um grande clássico do cinema inglês, foi votado recentemente um dos top 40 de toda a história do cine britânico. É diferente de tudo aquilo que voce espera. O excelente roteiro narra a história verídica de um grupo de soldados que em 1875 se defende na Africa de ataque de 4000 zulus. A primeira cena ( excelente ) já revela do que trata o filme: vemos uma longa dança ritual zulu. O filme não toma partido, os zulus não são vistos como "bons selvagens", mas tampouco são vilões. Assim como os soldados ingleses, eles são guerreiros humanos. O desenvolvimento dos personagens é perfeito, todos são bem delineados, nenhum é um herói, mas também não existe o anti-herói, têm falhas e qualidades e todos estão transidos de medo. A ação é muito bem feita, o som percussivo dos zulus vindo em crescendo, a violência explodindo de súbito. E o final é um explendor. Em suma, maravilhoso prazer. É um dos primeiros filmes de Caine, é aqui que ele se torna star ( em 64, ano do filme, ele só perdeu em bilheteria britânica para James Bond e A Hard Days Night ). Caine compõe um tenente afetado, fraco, exitante, mas que acaba por fazer o que dele se espera. Stanley Baker, grande estrela da época, é um oficial que luta para ser duro, tenta ser profissional, mas percebe todo o tempo o absurdo daquela matança. Excelente, tem ainda uma fantástica trilha sonora de John Barry, talvez meu compositor de cinema favorito. Nota 9.
A MARCA DA MALDADE de Orson Welles com Orson Welles, Charlton Heston, Janet Leigh, Marlene Dietrich
Um filme de Tarantino feito em 1958. A primeira cena é antológica: um longo plano sem cortes em que Heston anda por rua da fronteira Mexico/EUA em meio a carros, gente e casas. A câmera sobe, desce, corre e caminha e nenhum corte é feito até acontecer uma explosão. O tipo de esbanjamento de talento que foi inventado por Welles. Se Kane é seu filme mais perfeito é este que dá mais prazer ao ser visto. Fala de crime, do confronto entre um velho policial sem ética ( Welles, em atuação de explendor ) e um policial mexicano honesto ( Heston, muito bem ). Tudo no filme é fatalismo, pessimismo, escuro ( a fotografia é maravilhosa ). E tem algumas linhas de diálogo de cinismo cintilante. É um desses filmes cult-chic que fica bem gostar, mas ele merece toda sua fama. Se voce não penetrou no segredo do genial talento de Welles, este talvez comece a mudar sua opinião. Nota 9.
MAMMUTH de Gustave Kervern e Benoit Delepine com Gerard Depardieu e Isabelle Adjani
Minhas Tardes Com Margueritte é o melhor filme em cartaz. Se voce não o viu por ter ido atrás do hype, sinto muito. Lá Depardieu dá um show e pasmem, é um filme atual que trata de gente comum, sem grandes loucuras e doenças mortais. Mas aqui tudo se desacerta. Ele está ok como um aposentado entediado que parte pelas estradas atrás de papéis que provem onde e quanto tempo trabalhou ( problemas de aposentadoria ). Belo tema que poderia lembrar o Schmidt de Alexander Payne com Nicholson ( Payne é um dos muito bons novos diretores que têm pouco hype por não serem "geniais" ). Mas este Mammuth envereda pelo desejo de ser esquisito, diferente, inesperado, e nessa busca tola por arte, ele se faz previsível e pior, enfadonho. Uma pena.... Nota 2.
CORRA QUE A POLICIA VEM AÍ 2 E 1/2 de David Zucker com Leslie Nielsen e Priscilla Presley
Adoro Nielsen!!!!! Ele surge e já abro um sorriso. É daqueles humoristas que apenas por estarem em cena já fazem graça ( Eddie Murphy foi assim há séculos atrás ). Mas esta segunda aventura do hilário policial está longe da naturalidade da primeira. Aqui voce percebe o riso sendo procurado. Mesmo assim tem algumas cenas de humor antológico. Nota 6.
HELENA DE TROIA de Robert Wise com Rossana Podestá, Jack Sernas e Brigitte Bardot
O filme já começa com um erro: no papel de escrava, a muito jovem BB rouba o filme da insignificante Helena/ Podestá. E todo o resto vai nesse ritmo: o Paris feito por Sernas é patético, a guerra de Troia é constrangedoramente ruim e tudo no filme acaba por se parecer com carnaval na Sapucaí. Mistério: como um diretor tão bom como Wise se meteu nessa embrulhada? Nota Zero.
ALEXANDRE, O GRANDE de Robert Rossen com Richard Burton, Frederic March e Claire Bloom
Excelente. Burton, apesar de sua ridicula peruca, dá dignidade a figura de Alexandre. March, como seu pai, Filipe, está ainda melhor, e o filme é visto como um embate edipiano entre pai e filho. Filipe é todo desejo, virilidade, exuberância; e Alexandre, apesar de suas vitórias, é estranhamente fraco, solitário, travado. Rossen, grande diretor, sabe contar sua história. O filme flui. Não existe aqui aquele excesso de luxo hollywoodiano nos cenários "gregos", tudo é simples, claro e natural. Pode ser visto sem medo, ele se sustém, nada é inverossímel. Nota 8.
O FINO DA VIGARICE de Vittorio de Sica com Peter Sellers, Britt Ekland, Victor Mature, Martin Balsam, Maria Grazia Buccella
Uma comédia onde Peter Sellers faz um gatuno italiano só pode ser coisa boa. E é. Sellers foi um gênio e aqui ele dá uma pequena mostra disso. Faz um italiano típico e não parece forçado ou caricato. Faz rir, pelas situações de humor, não por ridicularizar sua interpretação. O filme trata de um roubo de barras de ouro e de um ladrão, The Fox, que deverá transportar esse ouro para dentro da Itália. Para isso, ele se passa por um famoso diretor de cinema "de arte", e usa a população de vilarejo, ávida por fazer cinema, como cúmplices no crime. Mature é um decadente ator americano canastrão ( ele se auto-parodia. Está ótimo ) e temos ainda todos aqueles hilários atores italianos em pequenos papéis. De Sica deixa Sellers atuar, o modo como ele move suas mãos, os olhares à Mastroianni, são aulas de como imitar sem parodiar. Uma comédia de primeira que tem ainda a bela trilha de Burt Bacharach e a linda Britt Ekland, uma atriz suéca do mal ( casou-se com Sellers e destruiu a carreira dele, e depois casou com Rod Stewart e o transformou num playboy. Os dois foram corneados por Britt ). Ah, o roteiro é de Neil Simon. Nota 7.
COLUMBO ( Box com 3 discos ) com Peter Falk, Leslie Nielsen, Lee Grant, Roddy McDowall...
Columbo é um policial feio e mal vestido, que com tranquilidade vai descobrindo seu criminoso. Quando Wim Wenders fez seu maravilhoso ASAS DO DESEJO ele escolheu Peter Falk/Columbo para ser um anjo. Vendo a série entendemos o porque. Columbo se move no crime, mas ele é sempre uma figura calma, plácida, familiar ( apesar do fedorento charuto ), um anjo que não tem uma só cena de violência. O filme começa sempre com o crime. Vemos quem o cometeu e a engenhosidade da execução. O interesse está em saber como Columbo chegará a solução. Ele então, se aproxima lentamente do crime. Toda a força da série está na composição de Falk e nos diálogos. Columbo vai irritando o criminoso, deixando-o confuso, acuado, temeroso. Columbo é obssessivo, racional, teimoso e fica todo o tempo surgindo onde menos se espera. Uma criação inspirada. Nesta caixa, o primeiro episódio tem direção de Steven Spielberg ( é seu primeiro trabalho ). Não darei nota por não ser cinema ( apesar de as imagens, com menos closes do que se usa hoje, serem quase cinematográficas. Cada episódio dura 80 minutos. )

EDUCAÇÃO

Muito boa a matéria sobre educação na Veja.
Sempre me incomoda essa perda de tempo que há na educação de segundo grau ( ensino médio ). Os alunos têm uma montanha de tópicos dados em extrema superficialidade. Pra que aula de sociologia? Adoro filosofia, mas o que pode ser ensinado a um aluno médio de 15 anos em meio às aulas de química e história? Qual o objetivo das aulas de inglês? Alguém aprendeu inglês no ensino público ( ou mesmo no Objetivo e Mackenzie )?
Tempo jogado fora, paciência dos alunos exaurida, conhecimentos rasos sobre vários assuntos que não importam e pinceladas superficiais sobre o que poderia interessar. Por que? A quem interessa manter esse status?
Na Europa se exigem duas matérias obrigatórias e as outras são escolhidas pelo aluno. Ele monta sua grade. Assim, um jovem que deseja ser engenheiro opta por exatas e um futuro arquiteto dá ênfase em desenho e arte. Seria tão duro aplicar esse tipo de ensino aqui?
Me canso de ver alunos com interesse em exatas sendo massacrados com sociologia, filosofia, artes, inglês e educação física. E alunos que adoram ler tendo de enfrentar fisica, quimica e biologia. Porque não oferecer aos primeiros uma matemática mais profunda, além de mais geometria e fisica e aos segundos dar destaque maior a literatura, história e geografia?
Mesmo no ensino superior isso se percebe. Quando fiz FMU tínhamos uma grade de matérias variadas e dadas de forma superficial. Eu cursei comunicações e duvido que alguém tenha aprendido alguma coisa de sociologia, fotografia ou filosofia com aquelas aulas corridas e vazias. Não teria sido melhor ter se concentrado em gramática e redação? Agora na USP ( em que pese seus vários defeitos ) há a racionalidade de se dar apenas quatro matérias em profundidade. Porque não o mesmo no ensino médio?
Estrangeiros se espantam com o fato do aluno brasileiro ter tanta matéria no currículo e tudo dado tão superficialmente. Noções sofisticadas de ciência apenas para constar, um imenso "já ouvi falar mas nada sei sobre".
Aos 15 anos o aluno deveria chegar ao ensino médio e ter de obrigatório apenas português ( saber ler e compreender á base para tudo ) e matemática ( desenvolver o raciocínio abstrato e racional ). E ter oferecida uma grade opcional que iria de história à física, de química à educação artística. O tempo seria melhor usado e o jovem se sentiria mais motivado.
É possível alguém lá em cima se interessar por essa mudança? Até quando?

A EXPLOSÃO DO DIQUE ( REVOLUÇÃO )

Ontem na tv Cultura foi exibido um documentário sobre Maiakóvski. Revolução russa, arte e poesia. Quem me acompanha sabe que tenho imensas prevenções contra tudo o que é russo. Essa coisa leninista foi valorizada demais nesta terra de Lula e Sarney e isso me causa profundo tédio. Há no Brasil uma idolatria pró-russia, assim como um anti-americanismo irracional e profundamente preconceituoso. Mas não posso cair na armadilha que revelo, há sim na Russia pré-comunista e imediatamente pós-revolucionária algo de novo, de ousado e de muito vivo. A morte-em-vida do comunismo logo destruiu toda essa exuberância, mas é fantástico perceber que coisas tão díspares como o video-clip e a linguística moderna têm sua raiz na terra de Maiakóvski.
O documentário, capitaneado por Cacá Rosset e Zé Celso é mais que fascinante, beira o trágico. Há uma sensação de que agora tal exuberância nos é inalcansável. Pois para ser verdadeiramente revolucionário é preciso abrir mão de tudo que se tem, ou nada possuir de seu. Em mundo século XXI em que não podemos nos separar de nossa rede social, de nosso plano de saúde e de nossa tv a cabo, não há a possibilidade de transformação absoluta a partir da destruição completa daquilo que não nos serve. O máximo que podemos fazer são críticas ao que aí está, críticas que buscam seu aprimoramento e jamais sua destruição. A inflação de vida, a extrema liberdade que vemos nas cenas russas nos são tão distantes quanto uma guerra grega ou uma paisagem em Urano.
Dziga Vertov institui o cinema olho. Câmeras que filmam em absoluta liberdade. Eisenstein cria a montagem criativa. Uma imagem traz uma imagem que se completa em outra imagem e que é reafirmada por mais uma cena. Mas o que mais impressiona são os cartazes revolucionários. Passado um século sua assustadora força permanece. São como capas de discos maravilhosas, peças de propaganda vencedoras em Cannes, posters radicais, imagens de camisetas exclusivamente modernas. Maiakóvski, poeta da vida que se matou aos 36 anos ( de tédio stalinista ), cria slogans: MELHOR MORRER DE VODKA QUE DE TÉDIO; TODO SER HUMANO NASCEU PARA BRILHAR; MEU CORPO ENLOUQUECEU SOU TODO CORAÇÃO; O SOL EXISTE PRA MIM... Além de tudo, ele foi ator, músico, pintor, diretor de cinema, escritor. As fotos em que ele surge ( belo com seu olhar de apaixonado e a cabeça raspada ) são soberbas, há nela a força da vitalidade jamais fake. Que bela época para se viver!
Assistir esse documentário dá uma enorme vontade de escrever, de desenhar, de amar mulheres loucas, de viver, viver revolucionariamente.
Tivemos uma muito minúscula prova do que significa um momento como esse. Foi no final dos anos 70, inicio dos 80. Um dique que represava forças libertárias foi rompido, a abertura politica de Figueiredo rompeu essa represa ( sem querer querendo ) e uma festa se instituiu. É a época do Gabeira de tanga na praia, do topless, do nú frontal; mas é também a época do Asdrubal, do rock brasileiro ( sim, eu sei que Ultraje e Titãs são um porre, mas suas letras não eram melhores que as do Restart, Cine e que tais? ). Um monte de coisa é liberada pela censura, peças/filmes e livros. As pessoas tentam viver vinte anos em um. Cazuza é um belo exemplo dessa era.
Uma pequena pitada de "desrepresamento". Imagine então o que foi o fim de mil anos de servidão. Isso foi Moscou em 1917. Jovens nas ruas criando o conceito do que conhecemos como jovem radical. Melhor, criando uma coisa que ainda não fora rotulada. Criando sem saber estar criando, vivendo sem tédio, sem rumo, sem censura e sem mercado. Não podia durar, mas caralho, aconteceu. MELHOR VIVER DEZ ANOS A MIL QUE CEM ANOS A DEZ.
Os rabugentos da covardia sempre podem dizer: mas deu em que? E os jovens irados devem responder: E voce? Deu onde?

MAL ESTAR DO HOMEM MODERNO: STENDHAL, O VERMELHO E O NEGRO ( DE UMA AULA DE LITERATURA )

Pouco nos damos conta, mas até os finais do século XVIII inexiste o mal estar do ser perante a realidade. Nos textos pode haver dor e sofrimento, mas ela é provocada por guerras, fomes, injustiças de deuses ou de reis; não há sinal da dor provocada pela inadaptação do homem a seu mundo. Quando a tragédia se dá, então, ela ocorre por uma ação do destino, por uma sina; a partir da modernidade essa tragédia acontece por um mal que acompanha o personagem: o desconforto com a vida. O mal não vem de um azar, de um fato que ocorre, ele passa a existir no meio em que ele se move, habita o mundo real, está na cidade, nas ruas, e mesmo no campo.
De onde vem esse mal e porque ele surge nesse momento?
Para responder a isso precisamos fazer uma pergunta: Qual o maior mal? A morte. O que nos aterroriza na morte? O esquecimento, o deixar de estar aqui, o deixar de ser. Em suma, o tempo como forma de violência impessoal que a tudo leva, destrói e apaga. Essa é a pista:
Por mais doloroso que seja o drama de Hamlet, nada há ali que anuncie a morte daquele mundo. Hamlet sofre e morre, mas ele sabe que seu universo permanecerá. As coisas que ele conheceu e amou, os costumes que o encantavam sobreviverão a ele. Na Inglaterra com a revolução industrial e na França com a revolução tudo isso será perdido. O homem assistirá pela primeira vez a morte de seu mundo ANTES de sua própria morte.
Na Inglaterra essa violência que destrói vilas, estupra bosques e escraviza homens a minas e a fábricas, é mais contida. Ela é temperada por uma sensação de progresso, de enriquecimento, de poder do intelecto. O homem se assusta, perde seu chão, suas referências, mas não perde suas certezas. O rei continua em seu trono e a igreja anglicana continua impassível. É por isso que nunca veremos autores ingleses tão desesperançados quanto aqueles de países subjugados ou destruídos. E nem como os franceses.
Na França o choque foi maior, pois com os lugares e os hábitos se foram também os reis e a igreja. Tudo foi colocado de ponta cabeça em cinco anos: mortes, sangue, traições, o fim de um mundo de certezas e de previsibilidade. O fim absoluto. Quando Napoleão irrompe há a fé de que ele era o motivo de tanta dor, de que ele seria o grande herói a reordenar a vida. Mas ele é derrotado, a depressão se faz desconforto constante. Stendhal é o primeiro a escrever( e sentir ) isso.
Existe uma doença que se chama "SÍNDROME DE STENDHAL", ela é uma incapacidade de se viver em meio a coisas que mudam sem parar e sem motivo. Esse era Stendhal: um apaixonado por Napoleão que o vira ser derrotado e preso. Um homem que apesar de republicano sentia imensa saudade da nobreza monárquica. Ele não aceitava um mundo que VALORIZAVA O QUE UM HOMEM FAZ, E NÃO O QUE ELE ERA.
Em seus romances o herói não pode viver em meio ao tédio, a falta de brilho, a ausência de paixão. Se a vida real é hostil ( ela é feita para aqueles que nunca pensam e nada sabem sentir ), só resta a seus heróis ( como Julien Sorel deste apaixonante O VERMELHO E O NEGRO ) o amor, amor feito de conquista, de desespero, de enfrentamento a ordem burguesa e de derrota final. O herói deve perecer ou não seria um herói. Se vencesse daria valor ao mundo real, morrendo se divorcia desse mundo que o ofende. Julien vive como um Napoleão, enfrenta a vida, conquista, tenta ascender e é derrotado porque DEVE ASSIM O SER. Stendhal redime Napoleão de seus erros. Apesar de admirar a liberdade inglesa, ele não deixa de se indignar com a vitória do pragmatismo britânico.
Desde então, desde os românticos alemães e ingleses, que desejavam voltar a idade média ou viver em comunhão com os anjos, até Stendhal, não existe mais nenhum tipo de arte séria que mostre seus personagens a vontade na vida real. Voce nasce num mundo que corre, vê todas as suas certezas se transformarem em pó e aturdido, tenta encontrar um só ponto de referência, algo de imutável em meio ao furacão. Voce passa a negar a realidade ou a cinicamente glorificar o vazio. Quando Julien Sorel se deixa ser morto ele instaura a época dos derrotados profissionais. Os Cazuzas e as Amys.
Stendhal sentiu tudo isso, intuiu o que aquilo era e deu ao mundo o molde de um tipo de sensibilidade. Sem casa, sem rua e sem abrigo, nos tornamos todos vira-latas.

VIOLÊNCIA

Este texto é inspirado pelo que Ivan Angelo escreveu na Veja.
Carros. Se já foram fumacentos calhambeques e coloridos rabos de peixe, hoje eles são monstros cinzentos que têm design intimidativo. Carros eram para despertar inveja. Hoje são tanques que devem despertar temor. E são dirigidos como fortalezas de guerra: vidros fechados escuros, alta velocidade, impaciência. Flanar com a capota arriada? Só velhos saudosistas ou chicanos enlouquecidos. Sim, a violência nos toma de assalto. Nossa época é a época da violência.
Ivan fala disso. Das crianças que têm como brinquedos monstros, assassinos e sangue. Barulhos sem fim, tiros, bombas, facas. Elas estão sendo treinadas para que? Que tipo de fantasia é plantada em suas cabeças? Basta olhar: o mais simples dos cartoons é violento. Pior, violência burra pois é sem ironia.
Ruídos. Todo filme é invasivo, mesmo os ditos de arte. Não se exibe nada que seja delicado ou sub-entendido. Se há depressão, é uma depressão violenta; se há silêncio, é o silêncio opressivo que anuncia a explosão. Todo filme é over, é estridente, é feito com cortes que chocam, que exasperam, que violentam. As comédias têm um riso de escárnio, de raiva, de rancor. E mesmo quando há "fofura" é uma leveza doentia, exagerada, caricata, falsa. E violentamente ameaçada.
As mãos estão pesadas, duras, secas. Não se pode mais ser sutil.
Politicos falam como se fossem babuínos, familias discutem em público, e nas calçadas o que se ouve são gritos histéricos, risos agressivos e medo em olhares solitários. O que se passa?
Tripas expostas em filmes, funk pregando o estupro, o sexo de pornôs, o tiro. Comerciais de cerveja onde tudo é pose de agressão: a super-bunda petulante e o cara de atitude mandona e debochada. Tudo over, hiper: ou voce é super feliz ou é nada. Agressivos.
O futebol se torna cada vez mais uma "conquista de território". Rimos dos marcadores de Pelé que pareciam querer dizer " posso lhe roubar a bola?", deveríamos chorar... Os corpos se chocam no jogo de "Guerreiros". O vôlley se tornou porrada e porrada e o boxe foi abandonado por ser pouco agressivo!!!!!!!!!!!!! Basquete de enterradas e gritos e tênis que é só saque e ponto. Toques, firulas, habilidade, leveza, tempo distendido, onde???
Na TV temos a corja do Pânico fazendo agressões sobre agressões, a corja da tarde mostrando mortes ao vivo, a corja das novelas com seus dramas onde todos ferram todos, a corja dos seriados onde todos são agressivamente doentes.
Voce pode dizer: Ora, o mundo sempre foi violento, veja a renascença, veja a revolução francesa, as guerras.... E eu digo: sim, o homem sempre foi animal violento, mas a violência tinha espaços restritos, lugar onde podia irromper. O lar era protegido, a escola era protegida, havia a igreja, o feriado, a praça pública. E principalmente entre 1880/1914 houve a certeza do fim da violência, mesmo com a colonização da Africa e a revolução bolchevique. Pois o homem comum, médio, podia passar a vida em calmo usufruir dos dias, podia viver sem assistir uma só explosão, um tiro, um grito de desespero. Isso é passado. Todos somos expostos todo o tempo a violência insidiosa. Porque?
Tenho assistido a uma caixa de dvds de Columbo. Não vou falar da genialidade da composição de Peter Falk, o que me dá um imenso prazer é o fato de que em toda a série ( policial ) não existir uma só cena de violência. Sem uma gota de sangue. Como isso era possível? Em 1971 se torturava como hoje, se guerreava como hoje, mas havia a hipocrisia de não se mostrar isso? Ou não seria o respeito de se saber que uma familia deveria ser uma ilha preservada da selvageria do mundo de fora? O que me importa é: Porque e como essa ilha foi estuprada?
Se na minha época de primeiro grau o que voce tinha de fazer para ser O Cara era jogar bola direito e ter uma Caloi 10, hoje voce tem de se parecer com um traficante e falar alto e com atitude ( atitude de quem está pronto para surrar alguém ). Contra esse tipo de jovem temos os sensíveis, um tipo de hiper-sensibilidade, o exagero da delicadeza, uma reação forçada e assustada contra os celulares em alto volume e os palavrões machistas. Violência negativa contra a violência positiva.
Ivan Angelo insinua que tudo isso prova que o fim está às portas. Bem, eu não tenho a menor dúvida de que o mundo como o conhecemos está em seu terço final, mas não creio que o mundo em si esteja no fim. O que sinto, irracionalmente, é que o mundo que valeria a pena ( para alguém como eu ) já se foi. É uma forma romantica de se ver o mundo, e eu sou muito romântico! Mas racionalmente qualquer um com mais de trinta pode perceber que a evolução nos tem levado na direção de um embotamento da paciência, do ato de escutar, do silencio, da solidão e do fazer nada; cada vez maior, e a uma preponderancia do ruído, da pressa, do falar sem ouvir, da histeria, da violência cada vez maior.
Sempre que um garoto vê um jogo de tênis ( ou uma luta de boxe ), assiste a um filme ( ou escuta um disco ) de trinta anos atrás, sua reclamação será sempre a mesma: Onde está a pressa, o movimento, a adrenalina, a porrada? Onde a explicitude da pornografia violenta? O mundo em preto e branco é gentil, gentileza que ele não conhece e que lhe parecerá uma linguagem desconhecida. O nosso, em 3D, é histérico, mesmo quando tenta ser suave.
Já disse e repito, porque?

O HOMEM QUE ERA QUINTA-FEIRA- G.K. CHESTERTON

Um embate entre um poeta anarquista e um policial democrata. Por artimanhas do destino, o policial se vê nas redes de um movimento que visa levar o anarquismo a toda a Europa. O livro, que começa com belas tintas de humor, vai se tornando cada vez mais negro. Paranóico até. Chesterton, polemista conservador, toma partido: ele é pela ordem. O tempo mostrou que ele estava certo. Todos esses ismos da época parecem hoje pueris. Pior, seus "bons propósitos" se mostraram falsos.
Há uma fuga pela Inglaterra. Fogem dos anarquistas que se espalham pelos campos. Chesterton é também contra os modernos. Percebe no modernismo uma enfadonha anarquia. Nisso ele errou. O modernismo era muito mais que anarquismo. Well.... é um romance de antecipação, é inevitável o erro. De qualquer modo é ainda bastante lido hoje em dia, em que pese estar longe de ser uma obra fundamental.
Bons tempos em que best-seller era alguém como Chesterton ( ou Maugham, ou Pearl Buck, ou Orwell, ou Exupery, ou Conan Doyle... ).

MARCELO COELHO NA MISSA

Surpreende alguém que um ateu convicto como Marcelo Coelho escreva um texto sobre sua ida a missa do Pátio do Colégio e ao final do culto descubra que não só gostou como que irá voltar?
Marcelo Coelho de todos os colunistas da Folha é o mais rigoroso. Ele não faz concessões ao gosto médio. Se é pra falar de cinema ele fala de Carl Dreyer. Se é pra falar de música ele fala de Bach e se é para elogiar um escritor contemporâneo ele escreve sobre Sebald. Um homem como ele tem óbviamente sinais de desconforto com a crueza vulgar do mundo atual. Há um desencanto em tudo o que ele escreve, mas ao mesmo tempo o niilismo passa longe de seu texto. Ele ainda ama certas coisas, e a cultura é uma delas.
Na missa ele se surpreende com tudo. Estranha o fato de nada nela se parecer com repressão ou fanatismo. Se surpreende com o fato do padre ser um mestre da oratória e mais, possuir um discurso articulado e límpido. Coelho fala do quanto a arte da oratória inexiste hoje ( para os gregos era a arte principal ). Políticos, artistas, filósofos, poetas, desaprenderam essa arte. E para uma pessoa de cultura, nada é mais prazeroso que ouvir alguém falar bem. Atores inclusive desaprenderam a falar. Me delicio sempre que ouço gente como Rex Harrison ou Peter O'Toole falando. Colin Firth e Daniel Day Lewis ainda sabem falar, mas são tão poucos hoje...weeeelllll....
Como acontece comigo, Coelho não consegue se ajoelhar ( é vaidade ), não crê em Deus ou em seus santos, mas como eu ele percebe que há algo naquele lugar. Dois mil anos não podem ser descartados por preconceito.
Estou lendo Chesterton e no seu texto ( deliciosamente vitoriano, e voce sabe, em termos de civilização a era vitoriana foi o auge do gênero humano ), ele diz que tal personagem de seu livro, era "tão revolucionário que ele se revoltara contra as revoluções e se tornara um amante da lei e da ordem". Penso em Eliot, Evelyn Waugh, Auden e o próprio Chesterton, todos foram jovens modernistas e rebeldes, todos se converteram ao catolicismo ao final da vida. Sempre pensei que fosse por medo da morte, mas percebo com a idade que esse medo é maior aos vinte anos que aos quarenta. Talvez tenha ocorrido com eles o que se passa comigo, uma vontade de negar todo esse modernismo de araque, vazio e frouxo, abraçando aquilo que os "inteligentinhos modernos" menos prezam: a religião institucionalizada, a religião careta. Uma conversão sem fé, feita por um excesso de rebeldia. Talvez...
De qualquer modo me lembro da missa por meu pai e do modo como me senti bem na igreja. Não por crer que a alma de meu pai pudesse estar lá, não por crer que Deus pudesse me ajudar, mas apenas por sentir o alivio de estar numa casa onde a morte e a dor podiam se expressar livremente, sem remédios, sem modismos e sem pseudo soluções. Um canto de atemporalidade.
Em tempo sem filosofia prática, sem mestres e eruditos, sem ideologias e sem artistas sábios, é a experiência individual na religião que ainda pode nos dar rumo. Mesmo que seja vã.

SINDROME DO PÂNICO

Não ter ligação com nada e fazer tudo. Naquele ano eu não ficava uma noite em casa. Me sentia psicodélico e apaixonado. Engraçado, eu amava Jane, mas me sentia desconectado de tudo. Década de 80, época em que era obrigatório ser moderno. Então eu fazia video-arte, escrevia textos niilistas e lia Bukowski, Heminguay, Nietzsche e Dostoievski. Os gênios do cinema se chamavam Peter Greenway, Terry Gillian e Wim Wenders ( engraçado como os gênios passam.... ). Como todo cara "inteligente" eu odiava os EUA, a igreja, meu pai e toda forma de poder. E saía pro Bixiga, pros Jardins e pra praia. Pra beber e fumar. Engraçado como não me reconheço nessa época. Era um eu sem Yeats, sem cães, sem sol e sem dúvidas. Pois não havia dúvida alguma: o mundo era um acidente. Deus, pai e familia eram imposturas.
Como hoje eu sei, meu ego me asfixiava. Tudo era: eu sei, eu sou, eu sinto, eu quero. Nada mais entrava nesse eu. Até que numa noite quente alguma coisa entrou. Na marra.
Me entupi de haxixe. E, apaixonado que estava por Jane, que havia dormido com meu melhor amigo, pirei. Na época ninguém sabia qual o nome daquilo. Eu tive ondas de pavor com ondas de frio. E a terrível constatação que derrubou meu mundo: eu não sou dono de mim. Nada controlo, nada sei, nada posso prever. Eu desabei. Era a tal síndrome do pânico, doença que salvou minha vida. Porque salvou? Ela derrubou muros que me deixavam estagnado. Explodiu meu mundinho niilista. E me fez sentir dor de verdade, dor vinda de fora, não imaginada. Eu nasci naquela noite. A síndrome foi um parto.
Jamais deixei de trabalhar ou de ir a faculdade. É engraçado isso. Me encolhi em pavor na certeza de ter enlouquecido, mas nunca deixei de ir à rua. O triste é que naquela época não havia um diagnóstico. Ou não, isso fez com que eu pudesse ser esse barco a deriva.
Me aconselharam a umbanda. Fui. A mãe de santo disse que alguém me fazia mal. Pediu um caminhão de mantimentos. Depois fui a centro espírita. Tomei doze passes e fiquei com mais medo ainda. E uma amiga me indicou seu terapeuta. Fui na esperança de que ele me dissesse que não era caso de internação. Não era. É engraçado. Eu pensava que todo psicólogo era um sábio. Que para ser terapeuta era preciso ter lido tudo de Freud, de Lacan, de Jung e de Adler. Que todo psicólogo sabia tudo sobre filosofia, história e religião. Quando notei que ele lera apenas dois livros de Freud e alguns capítulos aqui e ali, me decepcionei. Mas criamos uma relação de amizade. Na verdade é apenas isso, voce paga um estranho para que ele faça o papel de seu amigo. Triste, mas é só isso. Em quatro anos ele me ajudou a falar de mim mesmo e assim me amar um pouco mais. Mas todos os problemas que eu tinha permaneceram exatamente iguais. E provávelmente alguém dirá que dizer isso agora é parte do processo. Bem... cada um é livre para crer no que quiser. Ele me mostrou que terapia é questão de fé, jamais de ciencia. Funciona se voce crer. Voce não precisa crer num comprimido. E ciência é o comprimido.
Naqueles anos o que mais me ajudou foi o amor que tive por Andrea, uma menina louca que me levava à praia. Com ela eu redescobri o surf e o rocknroll. E logo em seguida a volta da minha tia ao Brasil, o que me fez redescobrir a felicidade que existe em se ter uma familia. Aprendi muito com meu cão, Nicky. Ele me livrou da insonia, fez com que eu aprendesse a cuidar sem esperar retorno e me obrigava a brincar, brincar como uma criança. Até hoje desconfio de quem é incapaz de amar um bicho. De quem só ama quem pode lhe retribuir. É a grande lição que aprendi, foi meu renascimento: amor, familia e animais. A poesia veio junto e o prazer de ler surgiu depois. Renascimento.
Mas a deprê persistia. Todo fim de tarde era aquele aperto no peito e a vontade de chorar. Eu ria, fazia piadas, brincava e me apaixonava, mas a dor estava sempre lá, ao meu lado.
Então deram nome à coisa. Sindrome do Pânico. Fui me medicar e o aperto se foi. É óbvio que me tornei um fã de biologia e quimica. Durante algum tempo a vida era questão de substâncias que se combinam. Toda a dor é uma questão de desequilibrio quimico. Nunca fui tão ateu! O protótipo do materialista. Estranho notar hoje que eu não pensava nada, tudo estava respondido. Árido. Seco. Sem dor.
A morte de meu pai veio balançar toda essa certeza. Me tornei um Espinozista, a vida é uma aposta. Voce aposta num caminho sem jamais ter como saber o resultado desse lance. Me tornei um seguidor de Pascal. O eu é a raiz de todo mal. Somos felizes quando abrimos mão desse eu, quando ele se torna nosso escravo. E me vejo como aquele que sabe que nada sabe, mas que curioso, tenta compreender esse não-saber. A sindrome me ensinou o quanto somos limitados, que nosso cérebro é apenas músculo, que a vida nos é incompreensível, mas que é nossa sina procurar entender. O tempo só existe em nós.
É lógico que eu preferia jamais ter vivido nada disso. Ter sido um.... o que mesmo?
Talvez a lição seja essa, é tudo um caso não saber.

INIMIGOS, UMA HISTÓRIA DE AMOR- ISAAC BASHEVIS SINGER

O horror. Uma moça judia, de 18 anos, filha de rabinos, anda sobre uma tábua. Se ela cair o que a espera é uma fossa de escrementos. Ela cai, em meio ao riso de soldados nazistas. Todos esses soldados, ao fim da guerra, foram para casa beber cerveja e esquecer. Foram ouvir Bach e ler Hesse.... Este livro nos recorda todo o tempo desse horror, o horror proposital, científico, racional, calculado, moderno. E sem remissão.
Senhoras nazistas pisam nos olhos de crianças judias esqueléticas, enquanto no campo judeus delatam judeus e irmãos copulam na frente de todos. É um pesadelo ler tudo isso. Nosso mundo é consequencia nefasta desses anos, nossa descrença no homem vem daí. A negação do futuro e o desapego a cultura. Sem saber sempre pensamos: pra que? De certo modo todos nós nos tornamos judeus, e também nazistas.
Singer não conheceu os campos. Mas viveu na América em meio a seus sobreviventes. E percebeu que todos repetiam que apenas os maus judeus sobreviveram. Os bons morreram. O personagem central sobreviveu, e ele é odioso. Herman vive com a polonesa cristã que o salvou dos nazis. Vive em Coney Island e estamos em 1949 ( o livro é de 1972. Singer venceu o nobel de 1978 ). O que sua polonesa não sabe é que Herman tem uma outra mulher, Masha, uma ex-interna de campo de concentração. E pior, a esposa de Herman, que ele pensava morta, retorna. Ele se vê com 3 esposas.
Herman é um fraco. Ele nada decide, nada faz de verdade. Mente, improvisa, e sofre. Como sofrem esses personagens!!!! Perderam sua fé, perderam a história, descrêem de tudo. O romance é uma saga, às vezes irônica, de perdedores absolutos, mas perdedores que nunca despertam nossa pena. São irritantemente neuróticos.
Todo bom livro nos faz mergulhar em seu universo. Mergulhamos nesse mundo americano/polonês/judaico. Na incessante narração de Herman e em sua nóia absoluta. Singer, autor muito conhecido na América e pouco lido por aqui, escreve simples, fácil, sem floreios de estilo. O incômodo nos toma e constatamos sermos todos um pouco Herman. E isso dói, creia, dói.

LEI, BONS MODOS, VIRTUDE E AMOR

Uma das melhores sacadas de Comte-Sponville é quando ele percebe que se houvesse o amor, se ele fosse predominante, a virtude, a boa educação e a lei seriam supérfluas.
A lei, a coerção, só é necessária quando não existem bons modos. Em lugar onde todos respeitassem a boa educação, o bom convívio, não haveria a necessidade de leis ou de quem observasse sua vigência. Onde a virtude fosse seguida, com naturalidade, não haveria o porque do código de educação e civilidade. Pessoas virtuosas não precisam seguir código nenhum para o convivio entre iguais. E onde o amor fosse dominante a virtude seria vã.
O homem criou as virtudes para que onde não há amor possa haver o simulacro desse amor ausente. As virtudes são as regras de comportamento de quem não ama mas se comporta como se amasse.
Assim, os bons modos são o simulacro da virtude quando ausente. Dar o lugar no ônibus não é ser virtuoso, é parecer ser. Dizer obrigado ou por favor não é ser compassivo ou agradecido, mas é uma forma pobre de parecer ser.
Onde nem os bons modos existem é necessária a lei. O convívio se faz pela ameaça e pela vigilancia. O respeito entre iguais é obrigatório. Haverá um simulacro de bons modos.
Me parece que estamos indo a passos largos para o mundo da lei. Apenas a vigilancia e o castigo mantém algum nivel de civilidade. Humildade, caridade, coragem, amor, sinceridade, castidade... só à força da lei. Só aos olhos vigilantes do mundo.
O que leva também a constatação de que o amor eros só é dominante onde o amor philia não se faz presente e o amor philia domina quando não há agape. Se todo amor fosse agape não haveria necessidade de philia e se todo amor fosse philia não seria preciso eros. Temos a necessidade de leis porque os bons modos se foram, temos necessidade de bons modos porque a virtude desapareceu e criamos as virtudes porque o amor deixou de comandar.

O AMOR- ANDRÉ COMTE-SPONVILLE

Um pequeno livro lançado primeiro no Brasil. Trata-se de uma compilação de alguns dvds em que André discorre sobre o amor. Para quem leu o obrigatório "PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES", este livro é um complemento.
Existem 3 formas de amor, como voces sabem. Eros, Philía e Agápe. Eros sendo o mais básico e comum, e Agápe o mais raro. Platão institui o amor Eros, Schopenhauer o desenvolve e Freud, discípulo de Schopenhauer, o cristaliza. O que seria esse amor-Eros? No Banquete, Aristófanes fala da história dos hermafroditas. Seríamos esses seres incompletos, e o amor seria a busca por essa outra metade. Todos conhecem essa lenda. O que muitos esquecem é que Platão discorda dessa crença. No Banquete, como em tudo, Platão está ao lado de Sócrates, e Sócrates fala que amor é falta, vazio, desejo puro. Desejamos aquilo que não temos, e como desejar aquilo que temos? Impossível. O amor nada mais é que essa insatisfação sem fim, miragem que ao ser atingida se desfaz. Desejamos, obtemos e descobrimos então que não era aquilo que queríamos. Partimos pra outra busca. Schopenhauer vai mais longe, é famosa sua frase que diz que viver é estar num pêndulo: balançamos entre o desejo e o tédio, pois sempre que conseguimos o que queremos ( seja trabalho, bens materiais ou vida amorosa ) nos deparamos com o desencanto que leva ao tédio. Um homem, ou uma sociedade que satisfaça todos os desejos será uma sociedade desencantada e entediada.
Mas Comte-Sponville diz que algo não bate aí. Existem casais que permanecem em constante desejo. Existem amores ( ao trabalho, a arte, a vida, aos amigos ) que não morrem, embora sejam raros. O que os explica? Que amor é esse?
Surgem Aristóteles e Espinoza dizendo que o amor é "regozijar-se". O amor não é um vazio que ansiamos por preencher, ele é antes uma potência, uma força que nos leva ao prazer, ao usufruto da vida. Não somos seres desesperados, incompletos, que sem livre-arbítrio algum, correm em busca de um amor que será sempre uma decepção. Somos sim seres que nascem com uma potência amorosa, uma vontade de amar, e livremente, partimos em busca desse amor pleno. Ao ser encontrado podemos gozar essa potência, podemos nos realizar como seres potentes. Esse é o amor Philia, amigo.
Comte-Sponville alerta que principalmente para jovens adolescentes, esse amor descrito lhes parecerá decepcionante. Estamos condicionados ao sofrimento romântico e pior, ao eterno mercado da atualidade. Um amor Eros consome sem parar, um amor Philia usufrui do que já possui. É um amor que dá todo o tempo, se doa, pensa no prazer do outro. Nele existe a chance de se livrar do Ego ( e Sponville cita a terrível frase de Pascal : "Odeie seu Ego", e a explica. Todo o inferno do mundo vive no ego. Matar o ego, que é o que ocorre em Philia, é viver o outro, se dar, livrar-se de si. ), é um amor que aumenta com o convívio, que procura mais no que já se tem.
Por fim, e estou condensando bastante o texto, há o amor Agape, amor a Deus. André é ateu, mas ele explica algo que me intriga: Como é possível que pessoas que se dizem "cultas" possam ignorar a religião? Nada pensar e nada saber sobre religião é como estudar medicina sem querer entender de biologia. Nosso mundo, nossa filosofia, nossa arte, nossa mente, nossos sentimentos são todos consequencia de um mundo de religião. Nada saber sobre isso é optar pela cegueira.
O que seria então esse amor Agape? André confessa que nunca o viu. O que não o invalida. Seria um amor que existe como ideal, como meta máxima a nos guiar. É o amor que se retira, o amor que dá espaço, que dá vida. Explico. André usa como exemplo o amor de mãe. A mãe ama seu bebê. E provávelmente não é amada do mesmo modo. Primeiro fato: Agape é um amor que existe por si-mesmo, não precisa de reciprocidade. Segundo: a mãe, que ama seu filho, poderia sufocá-lo de amor. Fazer dele seu brinquedo, ser para ele TUDO. Mas, e essa é a maior prova de amor possível, ela lhe dá espaço, afasta-se para que ele possa crescer, para que ele possa SER. Esse é o amor de Agape, amor que não é comentado entre os gregos e que nasce com o cristianismo. O amor da potência que se nega, da força que se torna conscientemente fraca, da auto-anulação. É o amor que se retira. Entre homens e mulheres é um amor que André jamais viu. Mas entre mãe e filho ele ocorre a toda hora. Amar e abrir mão. Sponville cita então a mais perfeita filósofa moderna do amor, Simone Weill: "Amar um estranho é transformar a si-mesmo num estranho". Esse é o caminho de Agape, o ego deixa de ser o centro, o outro é o que importa.
Leiam. Amorosamente.

QUANDO LONDRES CONHECEU O ARRASTÃO ( TÁ DOMINADO!)

Jamais eu escreveria sobre esses arrastões londrinos. Londres não me interessa. E tudo que eu queria dizer já foi escrito ( Patricia Mello escreveu que nenhum livro foi roubado.... Bingo!). Mas o texto que Calligaris publicou é tão ruim, tão medíocre, que preciso dar um pitaco!
Existe um certo tipo de tiozão que tenta ser simpaticão às novas moçoilas jogando ao lixo tudo aquilo que ele fora um dia. Há já algum tempo Calligaris caiu nesse engodo. Seus textos têm sido justificativas sobre seu passado "maio 68". Ele tenta ser agradável ao que ele imagina ser o leitor jovem de hoje. Se perde: as moçoilas sentem desejo pelos tiozões de 68 que continuam acreditando em 68. O ancião que aceita e compreende tudo o que lhe parece "de agora" não está se renovando, está às portas do ridículo.
Mas porque tanta ira, ó Tony Roxy??? Porque neste momento sério, em que temos a obrigação moral de tomar partido contra a barbárie, ele, Calligaris, defende a "profundidade" do "movimento". Como bom terapeuta, que tem o dever de tudo aceitar e absolver, ele se coloca ao lado dos ladrões. E pasmem, os compara aos esfaimados da revolução francesa!!!!
Ninguém morre de inanição por falta de I Pod. Se morre por falta de pão. Só isso basta para marcar a diferença. Negar como ele faz, vulgarizar a fome, relativizar, é imoral. Ele compara a falta de pão com a falta de bens de consumo, legitimiza os ladrões, passa a mão sobre suas cabeças ocas. Mas vai mais longe.... Diz que na revolução de Robespierre e Marat não havia também uma ideia, que tudo era questão de querer. Então toda a preparação iluminista nada teve a ver? Voltaire e Rousseau jamais existiram? A independência da América nada influenciou? Existiam ideias desde antes do movimento, ideias conhecidas, explícitas, flagrantes. O populacho precisava de pão, mas também sabia que a velha ordem morria ali. Eles não roubaram comida apenas, mataram os donos da comida. Em Londres alguém gritou palavras de ordem contra os donos das fábricas dos I Pods??? Algum jovem ladrão deseja a morte de Steve Jobs??? Revolução seria a destruição do poder, e o que se viu foi o contrário, o desejo por aquilo que o poder produz.
Londres é o futuro. A imoral barbárie, o vale tudo, o eu quero-eu posso. Um arrastão. Por ter sido na outrora relevante Londres, as pessoas tentam encontrar algo que dê nobre ressonância ao fato. Necas! Arrastão como numa praia do Rio ou em centro paulista. Só isso. Ato que anuncia o fim da virtude. Não é uma revolução, é a morte da ideia revolucionária.
Pobre tiozão....

A VERDADEIRA VIDA DE SEBASTIAN KNIGHT- VLADIMIR NABOKOV

Nada é pior que um livro frustrante. Podemos perdoar um livro ruim, afinal, a expectativa que tínhamos não foi jogada ao lixo; mas um livro frustrante é uma brochada. É o caso deste livro do grande Nabokov, autor que é um dos maiores do século XX e que tem LOLITA e FOGO PÁLIDO entre os monumentos das letras universais. O que acontece com este livro é trágico, principalemte porque ele começa em muito alto nível e então despenca para o nada.
O irmão mais novo de um refugiado russo, nobre, procura escrever uma biografia fiel sobre esse irmão, irmão que foi um escritor de talento. Uma biografia mentirosa, rancorosa, recém lançada, é que o motiva a essa empreitada. Até aí tudo funciona. Nabokov esparrama prosa saborosa em cada sentença. Há uma complexidade de múltiplos espelhos e melhor: toques de humor cáustico em frases inesperadas. O livro cresce e voce fica absorvido pela busca de pistas desse irmão misterioso. Mas de súbito o humor se torna drama pesado, pior, inconvincente. Quanto mais o irmão, que jamais é nomeado, se aproxima da verdade, mais o livro naufraga. As coisas se atropelam, os novos personagens parecem ocos, Nabokov se esvai em nada.
Uma pena, pois o assunto é fascinante. O irmão poderia ser o próprio autor e o livro que lemos pode ser a própria biografia, que assim se faria uma auto-biografia. Mas o que parece é que Nabokov perde a mão, talvez o interesse em seu livro, perde o amor ao personagem central.
Vladimir Nabokov foi filho daquelas famílias nobres russas que fugiram ao ocidente com a revolução de 1917. Ele acabou adquirindo um inglês perfeito e se tornou um mestre das letras americanas. Lolita é eleito desde que saiu ( 1955 ) um dos melhores livros do século XX. E é, sem dúvida. Hoje Nabokov está um pouco fora de moda, não só por seus temas amorais, mas principalmente por sua escrita quase barroca. Ele escreve muito, fala bastante, tem o que dizer e não se censura. Embeleza, enriquece, é um anti-minimalista.
PS: Um dos charmes da década de 20 eram os refugiados russos. Em Paris era normal ser servido em cafés por garçons que foram condes em St. Petersburgo, e contratar um chauffeur que fora um rico proprietário de terras na Ucrânia. Nabokov não passou necessidades, seu pai as passou por ele. Sua prosa sempre tem um jeito snob, refinado, bastante conservador. Ou seja, não é para hoje, não é?