CAMINHANDO NA SUMARÉ COM UM AMIGO ( E "A DOCE VIDA" )

Um helicóptero leva uma estátua de Cristo pelos céus de Roma. No ar, Marcello, um jornalista, vai sorridente, e paquera algumas moças de bikini em terraço ensolarado. Não se deixe enganar, neste filme, que marcou época e criou toda uma moda de paparazzi e azarações, o que Marcello irá testemunhar é um apocalipse.
O filme, três horas de caos, é dividido em blocos. Marcello e um bando de fotógrafos ( o filme criou o termo paparazzo ), andam pelas noites romanas. Sabemos que ele sonhava em ser "um escritor" e que agora se conforma em viver de noticias. Então uma atriz americana chega a Roma, bebe em boate, anda bêbada pela cidade e toma banho numa fonte ( uma das mais famosas cenas do cinema, e que sexy o decote de Anita! ). A desilusão de Marcello começara antes, sua namorada, ciumenta, tentara se matar. Com a estrela americana ele tenta ficar, conhece seu namorado decadente ( um ex-Tarzã ) e conhece a tolice das estrelas.
Depois, e só então, o filme começa a atingir sua grandeza. Duas crianças dizem ter visto Nossa Senhora em descampado periférico romano, sobre uma árvore. A imprensa vai para lá, os paparazzi fotografam os pais das crianças em poses de "milagre", doentes fazem oração, o povo invade tudo. Um circo é armado e as crianças apontam onde a aparição está. Mas chove e todos se vão. Um dos doentes morre, as luzes são desligadas e Marcello parte para outra. Que milagre?
Ele vai a casa de intelectual seu amigo. Lá estão artistas e a familia feliz do amigo. Esse amigo ama seus filhos e é calmo, correto, a imagem que Marcello gostaria de ter. Há uma linda cena desse pai ao berço de seus filhos, amoroso. Mas, mais ao fim do filme, esse homem assassinará seus dois filhos e se matará. Marcello, em cena fortíssima, irá lá reconhecer os corpos, e verá os livros, a sala, a casa de seu amigo sendo profanada pela policia e pela imprensa. O corpo do amigo ao canto, sob um lençol. Quando a esposa volta a casa, há uma cena maravilhosa, dúzias de paparazzi a cercando e fotografando sua dor. O patético em seu auge.
O pai de Marcello vem o visitar. Se encontram na via Appia ( Roma nunca foi tão bela e fútil ), carros, vespas, paqueras. Ele leva o pai a cabaret e o apresenta a moça da noite. Mais tarde ela o chama, o pai passou mal no quarto. Marcello o encontra à janela do quarto, humilhado, impotente, velho...
Ele sai então com Nico ( sim, é a cantora do Velvet Underground, quando ainda era modelo e atriz ). Vão a casa de nobres romanos. Nesse palácio, vemos filhos esquisitos, gays, matronas, travestis, velhos loucos, e uma excursão às ruínas da casa dos fundos do palácio. Em cena de terrível beleza, adentramos a escuridão vazia dessa casa mofada. Lá está uma mulher que Marcello talvez ame, mas ela beija outro, longe de seus olhos, isso logo após dizer que o ama.
Vem então a morte de seu amigo e Marcello vai a orgia. Invade a casa de milionário e com "amigos", bebado, tem noite de violência, ridiculo, gratuidade, vazio. Marcello encontra o nada.
Todos vão para praia, onde magnifico ser marinho é achado morto. A câmera insiste em mostrar seus olhos de vidro. Todos se vão e Marcello vê ao lado uma menina loura que o chama com um aceno. Ele não a entende. O filme termina.
Ontem eu andei por ruas da cidade, de tarde, com um amigo. De certa maneira nosso assunto foi todo o tempo o mesmo: onde encontrar sentido. Comprei um livro que abre seu texto com frase que espelha este filme: Platão podia escrever sobre justiça, beleza e ética porque ele é de um tempo em que o sentido e a existência eram plenas. A preocupação desses filósofos arcaicos era então o estudo da vida cidadã. Hoje, tempo em que nada mais fazemos que destruir todos os mitos, passamos todo o tempo tentando criar sentido, criar razão. Não podemos mais filosofar sobre a beleza, o bem ou a moral, porque não temos o minimo para começar a pensar nesses temas nobres: sentido.
E numa carta a Einstein, Freud diz: " Voce me acusa de tentar criar mitos. Não o nego. Não é isso que sua física também faz? Vivemos tempo que precisa de novos mitos."
A Doce Vida demonstra de forma exemplar o esvaziamento da vida. A jornada de Marcello é perda de inocências, de mitos, de belezas. Sua última chance é a menina que o chama. Mas, infelizmente, Marcello, como nós, não a entende mais. O que lhe resta são orgias de sexo e drogas e o sensacionalismo de eventos vazios. Fellini cria um filme tão rico ( que não é seu melhor ) que poderíamos ficar dias a falar sobre seus símbolos.
Se hoje ir ao cinema é gritar e ter sensações ( o que não deixa de ser legal ), em filmes como este, ir ao cinema equivalia a adentrar uma catedral. Tentar encontrar um mito na morte dos mitos. Procurar sentido na falta de sentido. Não deixa de ser uma jornada heróica. Mas o ser marinho é morto e a menina-anjo nos acena em vão....
Que Bello Federico!!!!!!!

Roxy Music -04- For Your Pleasure [BBC TV '72].mov

E TODAS AS DORES DE AMOR NASCERAM PARA QUE ESTA CANÇÃO FOSSE OUVIDA....

leia e escreva já!

FOR YOUR PLEASURE.... ROXY MUSIC. A BELEZA DA TRISTEZA INFINITA.....

A tristeza é bonita. E não me venham falar de seus porques. A tristeza é bonita se voce souber olhar, ouvir e sentir. Não há motivo. Não é culpa cristã ( quando voce irá crescer. óh tolo infante ), não é repressão ( quando jogarás tuas frases prontas no lixo, óh pequeno inteligentinho ). Eu digo: a tristeza é bela, mas a beleza não é triste. Entendeu ?
Quando a bateria dá alguns toques no silencio absoluto ela anuncia a voz de mr. Ferry. E a voz vem com teclados esparsos que ecoam do fim dos tempos. E tudo aquilo é for your pleasure.
O disco é o segundo do Roxy. 1973. Ano chave em que eles lançariam dois discos da banda e mais um album solo de cada componente. For your pleasure, que é o último com Eno, e Stranded, o primeiro da ditadura Ferry. Os dois são históricos. E escutar aos dois juntos dá uma ideia de tudo o que foi feito desde então no tal pop-rock inglês.
Eu poderia falar da caleidoscópica do the strand. Música que inaugura o atemporalismo premeditado. Música enigma, alegre e rodopiante. Poderia falar de the bogus man, a canção que é simbolo do que é soturno. O gótico, o clima de medo, a tarada voz de Bryan. Eu ainda falaria de editions of you, um hit de coloração matisseana, uma festa de ansiedade rosa-choque. E ainda falaria sobre as canções de névoa branca, os ecos medievais que exalam merlineanos de todo o disco. A profana mistura de rock puro com Sinatra em alma, de rock cabeça alemão com glitter adolescente.
Mas o que faz a coda fatal é a última faixa: for your pleasure é compromisso de amante calejado. Que morre em palavras repetidas e confusão de sons noturnos. Canção que vem de antes que se inventasse a canção. Inumana.
E cada lágrima que derramei um dia por cada mulher adorada fica vingada.
Toda dor de amor existiu para que canções como esta nascessem....

GARGANTUA - FRANÇOIS RABELAIS, UM MALOQUEIRO.

Gargantua nasce filho de rei e cresce como gigante. Come, come e bebe vinho. E tudo no livro de Rabelais se resume a isso: vinho. A lei é: bebamos!!!!!
Dizem que o francês cartesiano é uma farsa. Que Montaigne e Racine não são a alma francesa. Que a verdadeira França está em Rabelais e em Villon. ( E consequentemente em Asterix ). Comida, bebida e escatologia, isso é o que define o francês real. Gargantua tem como palavra mais usada "cu" e há um capítulo sobre a arte de limpar o olho do cu. Rabelais escreveu no inicio do século XVI um livro que é uma das obras capitais do começo da moderna França. O espírito gaulês está todo lá. E ele é anárquico, sujo, glutão e bêbado.
Gargantua cresce, e come 13000 bois, bebe 800 barris de vinho e ao mijar afoga 20000 parisienses. Tudo nesse livro é assim: imenso, exagerado e despudorado. Bebês são fazedores de bosta, reis vivem a peidar, e nas batalhas os soldados morrem com paus enfiados no cu. Rabelais desconhece a palavra pudor e vai desabaladamente contra o tal bom gosto. O livro fede. E é divertido. Escrito antes da divisão da literatura em alta-literatura e baixa-literatura, ele escreve o que o diverte.
Bons tempos em que escritores eram mais que "empurradores de canetas". Eram soldados, navegadores, nobres perseguidos ou ladrões. Nas horas livres, escreviam. O romantismo ainda não criara essa imagem maldita do "escritor como ungido de uma missão". Montaigne ou Machiavel até poderiam se ver como "escritores", mas jamais como "autores". E Rabelais, que teve vida aventurosa e cheia de altos e baixos, escreveu um sucesso: Gargantua, que foi seguido por Pantagruel. Lê-lo é adentrar o fim da idade média. E o que define esse fim é o esculacho.
Marcelo Coelho escreveu nesta semana que Heine às vezes parece brasileiro. Pois Rabelais parece um maloqueiro. Se maloqueiros desejassem ser autor central, todos seriam Rabelais.
No mais vale dizer que o livro é engraçado, ainda, e que seus palavrões ainda causam espanto. A alma francesa tem aqui sua sombra. E veja bem: uma nação que se destaca por seus perfumes, roupas, finésse e que tais, com certeza é porque tem em sua sombra muito cu e muita merda para esconder. Aquilo que mais exibimos SEMPRE revela o que queremos esconder. A França nos exibe Montaigne e Descartes, e esconde as almas ( mas não as obras, pois ambos são clássicos ) de Villon e Rabelais. Tá dito.

MÚSICAS NOVAS....

Simon Reynolds escreve no New York Times: Houve um tempo em que a música pop era algo com o qual voce podia identificar uma época. Assim, os 60 eram identificados pelo soul, pelo folk e pelo psicodélico. Os 70 pelo heavy-metal, o punk , o disco e o rock-progressivo, os anos 80 pelo rap, o tecno e o gótico, os 90 pelo grunge e o eletro. Bom.... Simon continua, e diz que no pop de hoje nada há que identifique este tempo. Tudo é xerox de algo já feito N vezes. Daí vem o fato de que a tecnologia seviu na verdade para estancar o avanço e criar o conceito de ATEMPORALIDADE. Tudo ao mesmo tempo agora. Assim, a molecada se liga em blues dos anos 30, soul dos 60 ou tecno alemão dos anos 70 e apenas recicla o que já existe. Simon ainda fala da mania de se comprar teclados de 1965, ampli valvulados de 1970 e guitarras de 1955.
Engraçado....
Uma das coisas que mais comprovam o tal inconsciente coletivo de Jung é essa coisa com a qual vivo me deparando: voce acha que só voce sente e pensa tal coisa, e aí percebe que existe uma onda mundial pensando exatamente o mesmo que voce. A tal ATEMPORALIDADE da internet, coisa com a qual me pego refletindo todo o tempo. Coisa deliciosa, mas que além de sua delicia tem o poder de destruir toda a espontaniedade em arte. Como?
Primeiro digo que Simon tenta ser otimista. O grunge e a música eletrônica dos anos 90 já não eram tão anos 90 assim. Na verdade vinham dos anos 80. E se voce pensar que os grandes nomes dos anos 90 eram Beastie Boys, Smashing Pumpkins, Oasis, Radiohead ou Pearl Jam, voce vai notar que nenhum deles trouxe algo de realmente novo. O que eles faziam era fazer de outro modo o que já havia sido feito antes. O que acontece então?
Como sou do tempo pré-informação, posso arriscar uma chave. A gente ouvia falar de novas bandas, e lia sobre grupos maravilhosos do passado, mas não tinha como os escutar. Eu fiquei dois anos lendo sobre o Velvet Underground sem ter escutado nada. Até encomendar no Museu do Disco o White-Light e finalmente o escutar ( e pirar ). Ao mesmo tempo lia sobre um tal de punk rock acontecendo, mas também sem poder ouvir disco nenhum ( só os Pistols ). O que essa condição de ilha humana fazia comigo? Fazia com que o vazio de não poder ouvir criasse a imagem do que deveria ter sido o Velvet. Ou do que era o Buzzcocks. Então eu pegava minha banda ( eu tinha uma ) e fazia um som furioso, tipo Velvet ( e que nada tinha de Velvet ). Quando os escutei, finalmente, percebi meu erro. E daí? Tentando criar "meu Velvet" eu fizera meu som.
Hoje um garoto de 12 anos pode escutar tudo o que existe agora e antes ( atemporalidade ). Nada resta para ele imaginar "como teria sido" ou "como deve ser". Ele é esmagado pela ousadia do Velvet, pelo poder do Led ou pela arte de Eno ainda na infancia. Ou pior que isso, é afogado por milhares de suas cópias, milhões de clones e cria a ideia de que "o rock e o pop são isso mesmo". Ele sabe tudo, ouve tudo, vê tudo, onde o espaço para imaginar/criar/errar?
A música de hoje nada cria de novo porque ela está ocupada descobrindo coisas como bossa-nova da letônia, punk das ilhas Fiji ou tecno da Croácia. Gente "nova" fazendo coisas velhas. Vejo ( e olhe que eu procuro...) N bandinhas novas inglesas e TODAS se parecem com Jam/Small Faces/Buzzcocks. Ou, quando piores, vão na linha Roxy/Eno/King Crimsom. Tudo com uma produzidinha à anos 90, claro. Na música negra a coisa é ainda pior. Marvin Gaye e Aretha Franklyn são as únicas referências. E tome Madonna clones.
Voce, menino, talvez não saiba, mas houve um tempo em que o hype não era por um novo nome, era por um novo estilo musical. Kraftwerk ou Mc5 criaram algo de diferente a partir de quase nada. E lembro do que era estranho ouvir Run DMC e Public Enemy em 1986. O que te pergunto é: existe hoje algum som que choque um cara de 30 anos? Não falo de músicas que revoltam por serem ruins, falo que causem reação por serem realmente jovens, inéditas e que ROMPAM com todo o passado. Que joguem Bowie, Dylan, Thom Yorke, Morrissey e Neil Young no lixo. Alguém tem essa ousadia? Como ter, se um moleque um dia vê no YouTube o grupo Love em 1967 fazendo aquilo que ele sonha em fazer?
Eu só consegui conhecer o Love em 1999. Sinal dos tempos. O Love se tornou minha "nova" banda favorita no começo do século XXI. No mundo atemporal, Beatles/Stones/Led e Dylan serão para sempre o máximo. E Velvet/ Stooges/Sabbath e Clash os exemplos a serem seguidos.
PS: No cinema a coisa é ainda mais grave. Ter tudo de todos os tempos, com boa imagem, a disposição, amassa as ambições de todo estudante de cinema. A cópia se torna uma imensa tentação. E Bogart/Brando/Kate e Audrey se fazem mais mitos que nunca.

ELIA KAZAN/ WARREN BEATY/ TOTÓ/ PAUL GIAMATTI/ GAINSBOURG/ MICKEY ROURKE/ RENE CLAIR/ BERGMAN

TOTÓ PROCURA CASA de Mario Monicelli e Steno com O Grande Totó
Que humorista foi esse tal de Totó!!!! Que rosto! Não espere elaboração dele. Não espere "humor sofisticado". Totó é um palhaço, como Mazzaropi, como Renato Aragão, como Buster Keaton e o Jim Carrey dos bons tempos. Seu humor é infantil, direto, simples, e portanto corajoso. Aqui o objetivo é o riso, só o riso, se seu público não ri o humorista falhou, daí sua coragem. Neste filme ( dos primeiros desse fenômeno chamado Monicelli ) ele é um pai de familia sem casa. O filme mostra ele tentando achar lugar para morar ( tenta uma escola, cemitério e até no Coliseu ele se aloja ). Uma chanchadona que é de um doce saudosismo. Totó foi um graaaande comediante! Nota 7.
CLAMOR DO SEXO de Elia Kazan com Warren Beaty e Natalie Wood
Crítica abaixo... É mais um belo retrato da América feita por esse tão importante diretor. Warren está muito bem como o jovem aluno inocente e rico ( é seu primeiro filme ). Natalie não está a sua altura na primeira parte do filme, depois ela cresce e acaba por nos comover. Drama de primeira. Nota 8.
FAY GRIM de Hal Hartley com Parker Posey e Jeff Goldblum
Talvez um Alphaville? Uma brincadeira de Hartley que lamentávelmente não dá certo. Parker está muito sexy ! Mas que roteiro é esse???? Nota 2.
NINHO DE COBRAS de Joseph L. Mankiewicz com Kirk Douglas, Henry Fonda e Warren Oates
Pois bem... este é um filme muuuuito errado! Explico o porque. Temos David Newman e Robert Benton, os dois mais brilhantes roteiristas da época. Eles escrevem uma história sobre um cowboy ladrão e uma prisão de desajustados. O roteiro, típico da época contracultural, atira em xerifes, racistas, mulheres, westerns etc. Mas, chamam para dirigir o filme Joseph L. Mankiewicz, o diretor, excelente, de A Malvada. Um grande nome, mas um estranho no ninho!!! O que acontece então? Nada. O roteiro, cheio de boas ideias, é asfixiado numa direção acadêmica. O resultado é morno. Kirk é perfeito para esse tipo de perverso/espertinho e Fonda brinca com seu tipo de americano/Lincoln. Mas é Hume Cronyn, fazendo uma espécie de debilóide que mais impressiona. Não é uma grande comédia, mas é ok. Nota 6.
PASSION PLAY de Mitch Glazer com Mickey Rourke, Megan Fox e Bill Murray
A capa do dvd promete: Rourke como um trompetista de jazz decadente. O ambiente é Utah. Fox é uma angelical esperança de redenção e Murray um empresário sacana. Atraente né? Pois é um drama risível de tão ruim. Deve ter sido escrito por algum fã de cinema com 8 anos de idade ( o roteiro macaqueia Asas do Desejo e um monte de filmes noir dos anos 40 ), o diretor, é flagrante, pensava estar fazendo um bom filme, deve ser um nerd de 11 anos e quem o produziu crê que o público de cinema é imbecil. Megan Fox é um anjo ( ela tem asas )..... e na última cena Mickey Rourke voa com ela rumo ao céu.... se aqui descrito parece ruim, creia-me, é bem pior na tela. Chega a ser cretino. Sem nota. Faz de conta que jamais o vi.
SLOGAN de Pierre Grimblat com Serge Gainsbourg e Jane Birkin
Um publicitário conhece em Veneza Jane Birkin. Ele é casado. Se amam, mas Jane o abandona. Pois é.... eu gosto muito de Serge e este é o filme em que ele conheceu Jane. Mas que lixo é este? Serge é péssimo ator e Jane chega a rir em cena !!! O filme é constrangedor de tão amador!!! Não é um filme, é muito mais um documentário sobre um flerte. Nota 1.
PORTE DE LILÁS de René Clair com Pierre Brasseur e Henri Vidal
Em favela francesa ( sim, são barracos em ruinas ) um assassino se esconde. Fica no porão de um cantor fracassado e é ajudado por um tolo ingênuo. O filme tem belas imagens, mas se perde em sua excessiva glamurização da pobreza. Clair funciona melhor em fantasias puras, onde ele pode "levantar vôo". Nota 5.
ATRAVÉS DE UM ESPELHO de Ingmar Bergman com Harriet Andersson, Max Von Sydow, Lars Passgard e Gunnar Bjorsson
Uma obra-prima, devastadora. Retrato de uma personalidade em crise ou retrato de nossa condição desde sempre? Bergman nada enfeita, nada exagera, nada dramatiza. Faz o que ele pensa dever ser feito, sem jamais mudar de rumo. É um filme de tristeza polar, mas também de uma beleza profunda, seca, perturbadora. Nota DEZ.
A MINHA VISÃO DO AMOR de Richard J. Lewis com Paul Giamatti, Dustin Hoffman e Rosamund Pike
Uma coleção de clichés. Acompanhamos a vida de um mala por 3 décadas. Cliché: a década de 70 e suas drogas, a esposa doidona, a vida como irresponsável flerte. Segundo cliché: a segunda esposa é uma chata judia à woodyallen... Já a terceira esposa é dos tempos atuais, mais cliché: gente que só pensa em saúde e equilíbrio. No final, supremo cliché: violinos e pianinho enquanto ele sofre de doença incurável.... Os críticos gostaram? Pobre crítica! Paul Giamatti imita Jack Nicholson. Faz exatamente o tipo que ele faz desde 1983. Mas é bom ator. É imitação de bom nível. Dustin nada tem a fazer. Fica lá, como um tipo de velho tarado. A direção é franciscana: pobre. O filme já nasce velho e com cheiro de reprise do SBT. Nota 3.

OS MOEDEIROS FALSOS- ANDRÉ GIDE

Dizem que Aldous Huxley leu este livro antes de escrever CONTRAPONTO. Estranha sina a de Gide. Até os anos 70 ele era tão grande/famoso quanto Mann ou Joyce. Agora, em 2011, há quem goste de livros e não o conheça ( como desconhece Malraux, Claudel ou Colette ). Porque? Eu não sei.
Os Moedeiros é seu grande livro e vale dizer que em 1948 Gide ganharia seu Nobel. O livro é de 1926.... O que havia com a década de 20? Se pensarmos que entre 1921 e 1929 foram lançados os melhores livros de Heminguay, Fitzgerald, Faulkner, Joyce, Eliot, Lorca, Yeats, DH Lawrence, Dos Passos, Stein, Cocteau e ainda as pinturas de Picasso e Matisse, Chagall e Miró.... Que década! E ainda Bunuel, Lang, Murnau, Buster Keaton, Chaplin, Jean Renoir e René Clair... e o jazz, e Cole Porter, Irving Berlin, os Gershwin... Paul Klee e Kandinski.... Murilo Mendes e Oswald, mais Mario de Andrade e Fernando Pessoa... Como seria viver em mundo com tanto talento vivo e produzindo? Thomas Mann e Hesse, Proust e Valéry, Ezra Pound e Kafka. Bem...
Mas o livro....
Gide é moderno. Seu livro não tem enredo. Tem vários personagens que vivem. Gide os segue e cria algo de muito dificil de se fazer ( e o faz bem ) livro dentro do livro: um dos personagens escreve o livro que lemos. Enquanto a história corre, Edouard descreve o livro que prepara, o livro se chama OS MOEDEIROS FALSOS. Assim, enquanto lemos o livro, um dos personagens o comenta. E nos fala aquilo que dá certo, o que foi um erro, que personagens merecem mais espaço, quais devem sumir. Essa técnica, que poderia ser pedante ou hermética, funciona por ser natural em Gide. Não nos chóca, nos surpreende.
A base do livro é Edouard, um escritor que se apaixona por seu sobrinho, um adolescente brilhante. Há ainda Laura, amiga de Edouard que fica grávida de Vincent apesar de casada com outro. Vincent é irmão de Bernard, adolescente amigo de Olivier ( o sobrinho de Edouard ). Bernard foge de casa e prega a anarquia. Mas ao se apaixonar por Laura muda de opinião e seu crescimento espiritual é a melhor coisa do livro. Ele percebe que sua raiva era uma convenção, que ser rebelde pode ser um hábito, uma moda. Sua mudança é maravilhosamente bem escrita. Muitos outros personagens habitam o livro: condes decadentes e sórdidos, escritores vaidosos, putaines bem sucedidas, crianças desequilibradas... O mundo gay é mostrado sem bandeirices ou exageros, há inveja, há paixão, há timidez. André Gide foi militante, seus livros eram abertas confissões sem culpa ( e não vamos esquecer que André Gide, que morreu em 1951, ainda teve tempo de conhecer e ser amigo de Oscar Wilde, o que mostra como Wilde poderia ter vivido mais e o quanto deveria ter produzido ). Há um fato no livro que irritará meus amigos psicólogos. Gide mostra o quanto a psicanálise tem de "otimismo cristão". A fé na compreensão, na ajuda, no descobrimento do bem, na confissão, no "bom espírito". Ele diz que o trabalho desses profissionais é útil como consolo a almas atormentadas, mas não diferente de qualquer outra fé. Se o paciente não possuir a fé cega em seu guia, adeus ciência.
Mas não pense que Gide é um anti-freudiano. Ele usa essa dúvida em relação a tudo. Inclusive as paixões. O quanto não escolhemos aquilo que gostamos, aquilo que desejamos, e mais, o quanto nossos sofrimentos não são papéis que escolhemos seguir. Gide nos joga essa dúvida no meio de seu livro, para ao final demonstrar que pode não ser assim. Talvez não tenhamos poder algum sobre sentimentos, vida, destino, gostos, afetos e repulsões. A vida como escolha de explicações, sempre falhas, consolos, falsas teorias. O que sabemos?
Ah.... esses franceses! É o mesmo tipo de escrita de Camus, Malraux, Sartre ou Lolita Pille. Uma montanha de pensamentos, tudo analisado a exaustão, derrotas e medos, dúvidas, e aquele enorme EU no centro de tudo. Esse tipo de narrativa não conta uma história, ela analisa e reanalisa os personagens, os disseca, os explica, e os faz perder. Me cansa. Nos cansa. É febril.
André Gide pode um dia voltar a moda. Georges Bernanos voltou. E Bernanos e bem mais árduo. Ler Gide não nos faz felizes. Mas pode abrir algumas portas. Vá lá....

AMY WINEHOUSE, EXPLICA-SE?

Terminei um livro de André Gide. Interessante. Ele diz em certo momento que tudo em nossa vida depende de querer acreditar. Voce acredita no que voce escolhe, nunca na verdade. Damos explicações estapafúrdias para aquilo que não tem explicação. Mas, como não suportamos um mundo irracional, criamos crenças para consolo de nossa consciencia. Dito isso....
Amy Winehouse morre e iremos crer que foi "a pressão da fama", que a matou. Que foi o vazio de ter muito jovem "chegado ao topo". Ou que foi "a solidão da fama".... Voce escolhe crer no que preferir engolir. Mas saiba, nada explica. Nada. E é isso que voce teme, ver que a vida não tem razão, ela é feita além de nosso entendimento.
Se a pressão da fama mata, então Os Beatles teriam se matado. Se a chegada ao topo muito rápido mata, então Marlon Brando ou John Travolta teriam se matado. E se a solidão da fama é fatal, bem, Mick Jagger deveria ser um melancólico suicida. Mas não. O que une Morrison a Keith Moon, Gram Parsons a John Bonham ou Hendrix a Kurt Cobain? Nada. Considerar a idade como um sinal é computar só os que morreram aos 27 e esquecer o resto. Amy, uma bela voz, morre porque as pessoas morrem. Morrem de acidentes, de cancer, de droga ou de tédio. Morrem aos 12, aos 30, aos 88. Morrem.
O que me enoja é tratar esse mortos como heróis simplesmente por terem morrido. Hendrix é maior que Jimi Page não por ter morrido. Mas Keith Richards é um herói num nível que Jim Morrison jamais poderia ser. Keith sobreviveu. Ousou ficar velho. E jamais pagou por sua loucura. Não se arrependeu, não se sacrificou. E NUNCA chorou seus erros num disco. Como Iggy, Ozzy, Lou.
Amy deveria ter conversado com os sobreviventes. Só isso.

ATRAVÉS DE UM ESPELHO-INGMAR BERGMAN, O OLHAR IMPASSÍVEL DE DEUS.

Não há maior prazer em arte que ver um mestre dispor de seus elementos e exibi-los a nosso olhar. O que temos aqui é a radiografia de uma crise, e também a questão que funda nossa civilização.
Sven Nykvyst fotografa o filme. Temos a ilha, o universo limitado, o isolamento. Horizonte sem fim. Temos uma familia. Moradores únicos daquele mundo. Últimos ou primeiros seres. O filme, como tudo em Bergman, começa expondo seus personagens, sem apelação, sem atropelos, com musical crescendo.
Karin é a filha. Ela acabou de voltar de hospital. Seu caso psiquiátrico é incurável. Karin está em um de seus bons momentos. Aparentemente. Com ela vem seu namorado, que realmente a ama e sofre com ela. Há um irmão mais jovem, assustado com aquela situação e o pai, escritor famoso e distante da familia. Bergman em 80 minutos nos mostra esse drama cósmico, de quebra ganha seu segundo Oscar e modifica o alcance do cinema para sempre.
O filme é dedicado a esposa de Bergman ( uma das várias ) e é fácil perceber que o pai distante é Bergman. Mas na verdade ele é também Karin e sua loucura, o namorado amoroso e o irmão que odeia as mulheres ( e é fascinado por elas ). O filme em primeira visão é retrato de uma alma ilhada em conflito consigo mesma. Fosse apenas isso seria um ótimo filme, mas sendo muito mais alcança uma estatura de obra-prima ( isso se voce possuir a mente capaz de ver o que lhe é mostrado. Não indico o filme a meninos e inteligentinhos. Fiquem com a tola obviedade pornô de Cisne Negro/Anticristo e que tais ).
Karin começa a voltar a seu mundo dividido. E em quarto da casa "tenta entrar na parede". Alguma coisa a chama. A sutileza impera. Bergman não grava vozes a chamando, não usa trilha sonora de suspense, não exagera coisa alguma. Karin parece "normal", não somos invadidos por sua loucura, somos convidados a compreender e observar. Começamos então a sentir um incômodo imenso, vazio, começamos a sentir, suavemente, a loucura de Karin.
Há uma cena brilhante dentro de um barco encalhado. Chove, e os dois irmãos se escondem lá dentro. A água escorre pela madeira, eles se abraçam e se encolhem. Eis uma das mais belas cenas da história do cinema. O que vemos ali é toda a condição humana, desamparo,crise, e então voce começa a perceber o alcance do filme. A partir daí ( em seus vinte minutos finais ) o que temos é superlativo. Como gênio que é, Bergman traz a tona, sem estardalhaço, a questão fundamental de nossa civilização.
Karin volta ao quarto. A voz que a chama é Deus. E ela quer ir a seu encontro. Uma porta se abre e Ele vem a seu encontro. Karin grita, foge, se apavora. Ela é levada por sua familia e medicada. E diz: Eu vi Deus e Ele é como uma aranha, um terrível animal que me olhou com seu impressionante olhar frio, ausente, vazio. Karin optará por voltar ao hospital. No conflito de seus dois mundos, ela escolhe a loucura.
Mas o filme continua. E é nesse final que o toque do mestre se faz. Mas antes um comentário.
Deus seria uma aranha, a vida a teia em que Ele nos captura. Somos insetos em sua teia, presos. Mas não é apenas isso. O pai, numa cena crucial, diz que observa Karin, sem se envolver em seus problemas. Eis outra imagem de Deus, alguém que nos observa, indiferente, rompido com os homens. O filme tange a ideia de que somos um tipo de experimento que não deu certo, Deus nos virou as costas.
O irmão reclama logo no inicio que o pai não fala com ele, o ignora. Após Karin ir embora, rumo ao hospital, o irmão pergunta ao pai se Deus existe. O pai diz que não sabe, mas que o amor existe, com certeza o amor existe. O irmão pergunta se Deus não seria esse amor. O pai responde que isso não importa, o que interessa é que Karin está cercada pelo amor de sua familia. Esse diálogo, breve, é feito à luz de uma janela. O pai sai de lá e o filho, sózinho, diz com um quase sorriso: "Meu pai falou comigo!" Imediatamente o filme se encerra. Sem música, sem The End, sem nada, simplesmente vem o final. Seco.
Quem já tentou produzir arte, seja romance, pintura ou música, sabe o quanto é dificil chegar a simplicidade plena. Como é árduo conseguir dizer muito falando pouco. Impressionar sem chocar e despertar emoções sem violência. Quando o rapaz diz sua fala final, todo o drama de pais e filhos, de mestres e discípulos, de fiéis e Deus, cai sobre mim. Cubro meus olhos com a mão e choro. E peço a meu pai que fale comigo. Fale comigo como jamais falou. Fale comigo. Eis o drama central de toda a nossa civilização, esse pungente pedido de que alguém fale conosco, nos olhe, preste atenção, afirme que existo.
Karin foi sacrificada ( auto-sacrificada ) para chegarmos a esse encontro de pai e filho. E o mar, liso, vasto, magnífico, a tudo assiste sem se importar. A ilha permanecerá a mesma, mas aqueles quatro seres terão chegado perto de um sentido.
O que mais algum filme pode dizer?

ADMIRÁVEL MUNDO NOVO- ALDOUS HUXLEY

Nesse mundo a velhice não existe. Fisicamente e mentalmente, voce é o mesmo dos 19 aos 60 anos. Pensar e agir aos 60 como aos 19, eis uma conquista de feliz realidade. Mais, nesse mundo voce deve se portar como adulto no trabalho, e ser uma criança no resto do tempo. Ser uma criança por toda a vida, uma conquista a ser conseguida.
Ser promíscuo é a regra. Quem não possuir cinco ou seis pessoas diferentes por semana será considerado estranho. Pior, uma ameaça ao bem comum. Transar muito e não se apegar, jamais. Saber então que voce e eu somos cambiáveis. Mais que isso: entre o desejo e a satisfação não pode haver um buraco. Ao querer, ser imediatamente satisfeito. Desejo que se demora faz pensar, faz sofrer, faz questionar. Faz com que voce seja diferente.
O passado não existe. O que é velho deve ser esquecido por ser velho. Pois conhecer o passado faz com que tenhamos como comparar e avaliar o presente. Poesia e religião são abolidos então. A realidade é o visível, o não-perceptível não existe. O real pode ser vendido e controlado, o subjetivo não.
A solidão é odiada. Tudo é feito em grupo. Introspecção e silêncio são temidos. Existir é estar em grupo. Quem ama a solidão é defeituoso. Música incessante, ruídos, gente, espaço preenchido.
Todo contato social tem apenas um objetivo: transar. Sai-se para fazer sexo. Qualquer outra coisa seria surpreendente. Conversar, flanar ou fazer nada seria excêntricidade.
As mulheres são todas magras e os homens altos.
A liberdade é plena. Voce é livre para se divertir todo o tempo. O prazer é ilimitado. Para que mais serviria a liberdade?
Nada pode ser arrumado, remendado, construído em casa. Tudo deve ser jogado fora e comprado de novo. Coisas, seres e vidas são trocadas com alegria. A alegria é o único objetivo da vida.
Joga-se, vai-se ao cinema e ingere-se Soma. A vida é isso.
Aldous Huxley não escreveu em 1932 uma obra-prima. O livro não é perfeito. Não é sequer bem escrito ( e ele sabe disso. A leitura da introdução escrita em 1946 é muito reveladora ). Mas é um livro forte, objetivo e de leitura obsessiva. Li-o em poucas horas, com prazer e ao mesmo tempo impressionado pelos acertos de Huxley.
Ele erra ao prever um sistema de castas. O mundo tem uma tendencia contrária: a abolição de diferenças e a absorção de todos os grupos diferentes. Desde que se tornem uma coisa só. O que vemos é a destruição de diferenças, aristocratas, proletários, tendem a sumir. Uma imensa classe média e meia dúzia de donos-do-mundo. E só. Fora disso, vácuo.
Mas não há como não se impressionar com seus acertos. A eterna juventude mental negando o amadurecimento da idade. O passado jogado ao esquecimento ( e tudo isso já é fato. Conheço quem leia apenas a literatura de Salinger pra cá e assista só o cinema de Spielberg em diante. Há quem pense que a música começou com os Beatles. Arte sem passado é arte sem comparação, arte fácil de enganar e de vender, ignorância bem-vinda, onde toda a cópia-pobre parecerá sempre rica-original ).
A poesia, assim como a religião ( verdadeira ), faz das pessoas seres pensativos/distanciados, que não dão coragem-alegria aos outros, e pior, deixam de desejar- consumir. Descobrem que há outra coisa além da matéria. E é o sexo desenfreado que ocupa o vazio deixado pela arte e pela religião. Tudo é o corpo. E o corpo deseja, deseja coisas que podem ser avaliadas, vendidas, estragadas.
No livro surge um selvagem: John. Uma de suas melhores tiradas é essa: tudo o que existe nesse "admirável mundo novo" é destrutível. Muda, se esvai, acaba. Nada é feito para durar, e ao homem nada pode restar a não ser um gozo efêmero. Ele também percebe que a vida pode não ser "busca de felicidade", mas talvez "busca de algo mais".
John conhece textos de Shakespeare. As pessoas riem com Shakespeare. Não conseguem entender mais seu mundo e riem do que não entendem. Têm horror a palavra família e acham a palavra "mãe" pornográfica. Pois em mundo de bebês de laboratório, sexo com procriação é pornografia, coisa de bestas.
Huxley vai fundo em sua raiva. E um dos momentos mais interessantes é quando uma mulher "civilizada" se apaixona pelo selvagem. Como os poetas e a Bíblia, a paixão também foi banida. Mas essa moça sente essa coisa esquisita pelo fato de que o selvagem é "estranho". Ele não a pega e satisfaz logo seus desejos. Ele demora, fala coisas complicadas, sente veneração, culpa. Essa demora, essa não-praticidade desperta nela a paixão. Que logo morre pela incapacidade de ser vivida. O selvagem, cheio de culpa, se refugia em martírio e ritos mal compreendidos.
Na introdução Huxley diz que se reescrevesse o livro faria diferente. Como está, ou o selvagem aceita a loucura da Utopia, ou volta ao barbarismo de onde veio. Huxley crê ser possível uma terceira via, a sanidade, onde a ciência se adapta ao homem e a religião existe para levar a consciência ao limite do conhecimento. Se o reescrevesse faria do livro algo mais filosófico...
Mas do jeito que está, da maneira seca, breve, compacta que está, ele obriga a que nós façamos mentalmente sua parte filosófica, ele nos instiga a pensar e pensar melhor.
Esse futuro de drogas para ser feliz, de imagens para sentir "uma nova sensação", de viagens para transar e de alegria "infinita" é nosso conhecido. A liberdade para ser consumido, as novidades que são vazias, os entorpecentes.... A estranheza que já nos causa quem fala em amor familiar, fidelidade absoluta, tradição artística, deveres e pecados... Ler o livro dá uma perturbadora sensação de que o mundo-pesadelo de Huxley está próximo demais.
Afinal, se meu avô estivesse aqui ele acharia loucura um mundo onde pessoas ficam trancadas em frente a tv vendo pessoas em casa trancada, onde se paga para ver gente em tela grande ser destruída, violada e torturada, mundo em que amigos se encontram para jogar jogos em tela e ficam calados em sua amizade fria, mundo em que lunáticos abrem um lap-top e se absorvem numa virtualidade passiva, e em que espertamente tudo é logo permitido e assimilado, desde que não ponha em risco o consumo e o movimento incessante da roda do futuro.
Admirável mundo novo!!!!

CLAMOR DO SEXO- ELIA KAZAN ( EXEMPLO DO MAIOR DOS PECADOS )

William Inge, no auge do teatro dramático americano, foi um dos grandes. Se Tennessee Willians e Eugene O'Neill dominaram a cena, ele e Arthur Miller vieram logo após. Edward Albee surgiria na sequencia e Thorton Wilder merece um lugar à parte. Neste filme de 1961, Inge consegue tocar num dos mais dificeis temas de qualquer drama: o mal sem intenção, o maior dos pecados: o sofrimento imposto a inocentes.
Estamos em 1928, nos cafundós do Kansas. Bud é o filho bacana do líder local. Dean é sua namorada. Os pais concordam com o namoro, os dois se amam, ninguém tem qualquer doença ou problema econômico e mesmo assim o sofrimento do dois é insuportável. Porque?
O pai de Bud é um ex-jogador de futebol, agora aleijado. Um macho milionário que deseja o "bem" do filho. Eis o primeiro problema: seu ego amassa o amável ego de seu favorito. Segundo problema: Dean é boa aluna e ama seus pais. Mas sua mãe vê nela um bebê e seu pai deixa tudo a cargo da mãe. Dean luta para ser sempre uma "dama", uma lady, o orgulho dos pais. Vem daí um terceiro e atroz problema: o casal se ama, se adora, mas não pode fazer sexo. Bud quer, Dean não. Depois, ao final, Dean quer, mas Bud não pode, afinal, ela não é uma puta...
A conselho do pai, Bud arruma uma amante, "para se aliviar". Bud detesta fazer isso, pois ela "não é Dean ", mas se conforma. Isso destrói Dean. O longo caminho da inocente garota rumo ao inferno, a forma desajeitada como ela tenta se tornar "fácil" é de cortar o coração. ( Confesso que chorei muito... ). Ao fim do filme, sem final feliz, mas doce a seu modo, fica uma terrível lição: nada temos de controlável na vida. Bud e Dean nasceram um para o outro, mas terminam com outras pessoas, distantes, conformados. Tudo dá errado.
Mas o que me emociona no filme não é isso. É o modo como é demonstrado o maior pecado humano ( sim inteligentinho, pecados irremediáveis existem. E são imperdoáveis. ) O pecado da difamação da inocência. O amor dos dois é real, é inocente, é forte. E todos, sem saber e querer, destroem esse amor. Cada palavra da mãe e do pai, sempre bem intencionados, é uma facada, um pecado irremediável. Dean enlouquece e é internada. Bud empobrece e se casa. Nosso coração é cortado ao meio.
Warren Beaty faz Bud. É seu primeiro filme. Quem leu o livro "Sex, drugs e rocknroll" de Peter Biskind, sobre a revolução em Hollywood, sabe o quanto Warren foi/é importante para o cinema que se faz agora. Seu Bud é correto, mas nas cenas finais, na fazenda, é brilhante. Natalie Wood faz Dean. E a partir das cenas de enlouquecimento ela nos dá uma atuação emocionante. O modo como ela olha e conversa com o psiquiatra e a maneira como ela corre e pula nos jardins do hospital são inesquecíveis. Para quem conhece a triste sina que Natalie viveu na vida real, ver o filme é ainda mais cortante.
Mas todo o elenco é superlativo. Não houve diretor de elenco como Kazan. O homem que lançou Montgomery Clift, Brando, James Dean e Warren Beaty, faz um filme de pungente beleza e emoção que se acumula até explodir. Belíssimo!

HISTÓRIAS MEDIEVAIS- HERMANN HESSE

Na década de 1920, Hesse traduziu e comentou uma série de contos medievais de Cesarius Von Heilsterbach, escritos originalmente por volta de 1240. Leio esses contos e me assombro com aquilo que um dia fomos. ( Fomos? )
Todos são contos de feroz moralidade. Não há neles a menor dúvida: o pecado existe e quem peca sofrerá no inferno para sempre. Essa verdade é verdade completamente aceita ( como hoje nos é aceita a evolução do macaco ou o big bang ), nada é questionado. Essa certeza leva então o homem medieval a se preocupar acima de tudo com sua alma, com o possível castigo, com suas culpas e sua vida no além. Tudo é pesado em face do que será, da eternidade. Todo ato, toda obra, toda ação é PARA SEMPRE. Não existe o esquecimento.
Um marxista moderno dirá simploriamente que isso se ajusta ao jogo de poder da classe dominante. Mas o que esse inteligentinho não dirá é que essa classe dominante também sofre essa culpa e esse medo. Montanhas de nobres arrependidos se enfiam em mosteiros, partem para a mendicancia, vão lutar nas cruzadas. O cerne da questão é bem mais complexo.
Um inteligentinho do tipo "numa boa", dirá que tudo era questão de liberdade sexual, que a igreja reprimia a sexualidade, e que essa repressão se tornava culpa. Esquece o inteligentinho que hoje, na era do sexo numa boa, continuamos criando culpas, medos, dores e doenças. E então?
Hesse foi um escritor do tipo mais perigoso que existe ( e que mais falta nos faz hoje ), o escritor que prova de tudo, que procura o que é oculto, o verdadeiro peregrino. Ele sabe que não se explica a idade medieval, o que se faz é se penetrar nela e perceber não seus porques mas seus comos. Como é essa culpa, como é esse pecado, como é essa visão de vida.
A época medieval durou mil anos. Nossa época tem pouco mais de duzentos ( começamos em 1789 ). Não estaria em toda mente européia, reprimida e latente, toda essa imensa história de trevas e de vida? E quanto mais voce, ó doce menino inteligentinho, reprime essa memória, não estaria mais a mercê dela? Pois o que voce vê no cinema, seja Batman, Harry Potter ou Von Trier, não são imagens e mitos medievais pobremente e envergonhadamente reelaborados?
Desconfio muito de todo mocinho anti-medieval. É como alguém de sapatos novos que nega seus pés sujos. E desconfio mais ainda do puro ser racional. Esse tem o fanatismo de monge travestido em objetividade vã. É preciso ser um homem completo, sem amputações. É preciso ter antiguidade, era medieval, renascença e modernidade vivas em si. Negar uma delas é fanatismo, cegueira, e pior, é se fazer refém dela.
Hesse andou por todas essas vias. Se encontrou no hinduismo, no budismo... provou sua vida, abriu suas ideias, tentou ser si-mesmo. Este pequeno livro é parte de seu caminho.

TRÊS CONTOS- HENRY JAMES

OS QUATRO ENCONTROS. James, dentre outras coisas, é o grande autor da impotência, dos planos que dão em nada. Neste conto, o narrador encontra moça que sonha em conhecer a Europa. Isso é uma obsessão para ela. No segundo encontro ela está na Europa e os outros dois encontros prefiro não os contar. James, mestre supremo, leva a história com sua costumeira sutileza, logo visualizamos o narrador, a moça, o ambiente e os outros três personagens decisivos. Uma frase de James exibe sua argúcia: " As pessoas viajam, a maioria, não para encontrar algo de novo, mas apenas para confirmar o que já sabiam."
O DISCÍPULO mostra o lado quase gótico do genial autor anglo-americano. Um professor se envolve afetivamente com jovem aluno e acaba por ser explorado pela decadente família "nobre" do tal aluno. Aqui surge outro aspecto de James, o enredamento da vida, o modo como nos vemos em situações insolúveis sem saber como entramos nessa cilada. Sentimos grande desconforto ao ler esse conto, nos revolta a mansa passividade do professor. Mas é o menos memorável conto do livro. O mais perfeito é O MENTIROSO, uma curta obra-prima de elegante prosa. Fala de um famoso pintor, que em jantar reencontra uma ex paixão. Ela está casada com simpático coronel, homem famoso por seu vicio: a mentira. O narrador passa o conto tentando descobrir se a esposa do mentiroso partilha seu vicio. Aqui é demonstrado outro talento de Henry James, o estilismo, a escrita refinada, bem pensada, cuidadosa. Essa habilidade do autor se transfere ao leitor em prazer de ler. Ninguém me dá maior prazer em leitura.
Bela introdução para novos possíveis leitores desse mestre das letras. Usufrua.

KIAROSTAMI/ BINOCHE/ DEPARDIEU/ BECKER/ GROUCHO/ SCORSESE/ CLAIR/ DASSIN/ ROSSELINI

CÓPIA FIEL de Abbas Kiarostami com Juliette Binoche e Willian Shimell
Eric Rhomer ( de quem gosto ) fez filmes em que as pessoas falam e "nada acontece". Mas Rhomer tem um segredo: seus personagens são gostáveis. Torcemos por eles. Um americano ( quem? Linklater? ) fez um filme em que um casal conversa. É uma versão teen de Rhomer. Aqui temos Kiarostami fazendo uma versão adulta de Linklater ( se não for Linklater, sorry... ). Binoche continua bonitona. Shimell é ok. Mas o filme é um pé no saco! Motivo: os dois são detestáveis! O crítico de arte é de uma frieza nojenta e Juliette faz a típica divorciada amarga. São reais? Sim, são. O jogo de ocultamento/revelação é bem sacado? Sim, é. Mas e daí? Tudo se perde ( inclusive uma atuação perfeita de Binoche ) numa antipatia, uma chatura insuportável. Quando o personagem feminino desaba ao fim do filme, tudo de pior num relacionamento e num certo tipo de cinema cabeça vem a tona. É duro! Mas vale uma notinha pela atuação de Juliette. Nota 3.
DUCK SOUP de Leo McCarey com Margaret Dumont e os Irmãos Marx
Após o porre de sentido, de relevância e de seriedade vazia de Kiarostami, nada como a falta de senso de Groucho, Chico e Harpo para nos salvar. Este é o filme "politico" dos Marx. Freedonia que é governada por Groucho e entra em guerra "porque o campo de batalha já foi alugado". Amar os Marx é saber que viver é não fazer sentido. Nada neles faz sentido, nada. Seus filmes são carnavais sem enredo e comissão de frente. Duca! Nota DEZ!!!!!!!!!!!!
QUEM BATE A MINHA PORTA? de Martin Scorsese com Harvey Keitel
É o primeiro filme de Martin. Começou a ser filmado em 1965, e foi encerrado só em 68. Todo o seu estilo já está aqui: câmera em movimento, retrato de jovens perdidos, música pop. Impressiona o fato de que é um filme ainda moderno, lembra o estilo de Tarantino, Ritchie e vasto etc. Como todo novato Scorsese erra ao dar mais valor às imagens que ao roteiro, o filme às vezes se perde em sua história. Mas é uma refrescante visão de um imenso talento em seu nascimento. Nota 6.
O CÍRCULO VERMELHO de Jean-Pierre Melville com Alain Delon, Bourvil e Gian Maria Volonté
Por falar em Tarantino... Mais um dos filmes vigorosos de Melville. Mundo de ladrões, policiais e cabarets baratos. É um filme frio, duro, com uma contida violencia sempre latente. Delon é perfeito nesse papel de bandido sem alma. Melville foi um gigante, seus filmes jamais envelhecem. Virilidade em dose cavalar. Nota 7.
A BELEZA DO DIABO de René Clair com Gerard Philipe e Michel Simon
Finalmente vejo um filme em que o talento de Philipe me é exibido! Para quem não sabe é ele o grande mito do teatro e cinema francês. Morreu jovem... Aqui ele faz Mefistófeles, numa adaptação, em ritmo de farsa, do mito de Fausto. Simon é outro ator de gênio e é um prazer vê-lo em seus pulinhos de diabo bem-humorado. Clair, um dos cinco gigantes da França, tem o amor sincero pela poesia onírica do cinema. Sabia filmar sonhos e delirios. É uma obra invulgar, solta, febril e irreverente. Mas às vezes ela se perde em sua ambição. Clair era maior quando mais simples. De qualquer modo, é maravilhoso que filmes como este sejam lançados em dvd. Nota 6.
MINHAS TARDES COM MARGUERITTE de Jean Becker com Gerard Depardieu e Gisele Casadesus
Gerard Depardieu quando quer é um grande ator! A prova está aqui, neste filme que passou em nossas salas em Abril e que quase ninguém viu. Porque filmes tão bons quanto este são tão pouco vistos? Porque são adultos? Ou porque não são sensacionais? Não apelativos? É um filme discreto, elegante, simples, solar e muito feliz. Tudo o que hoje não dá ibope. Depardieu é um "burro", um homem de inteligência limitada, um bronco. Ele conhece uma velhinha que ama ler e os dois se tornam amigos. Nesse processo ele não se torna mais inteligente, mas adquire confiança em si. Tudo no filme funciona. Os amigos do bar, a namorada jovem, e principalmente a relação de Depardieu com a mãe não-maternal, mostrada em flash-back. O modo como Depardieu fala e se move, suas mãos imensas e suas hesitações são trabalho de gênio. Eu não gostava muito dele, mas este filme mudou meu conceito. É também um dos raros filmes de agora que consegue mostrar a verdadeira França e o verdadeiro francês. Espero que os americanos não o refilmem. Fariam do personagem central um viciado ou um caso psico, e da velhinha uma louquinha tarada. Fariam desta pequena jóia um filme "sensacional". Jean Becker é filho de um dos meus diretores favoritos, Jacques Becker. Os filmes que ele tem feito ultimamente são todos assim: maravilhosos. Veja!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Nota 9.
O RETORNO A CÂMARA 36 DE SHAO LIN de Lau Kar Leung com Gordon Liu e Johnny Wang
Produção do mitico estúdio Shaw Bros. Liu, espetacular, faz comédia como um mentiroso que se torna mestre de Kung Fu e salva trabalhadores de patrão cruel. Kill Bill é dedicado a Liu, um mito chinês. Lutas fantásticas num filme que dignifica o cinema pop. Os chineses viam o cinema como circo, como festa. É isso que temos aqui, uma festa. Nota 7.
ALEMANHA ANO ZERO de Roberto Rosselini
Em 1947, em ato de coragem, Rosselini foi a Berlin, filmar a vida na cidade vencida. O filme sempre irá impressionar: Berlin é um imenso lixão, onde pessoas esfomeadas vendem o que possuem. Temos aqui um ex-nazista, moças prostitutas, ex-professor pedófilo, velho agonizante. E principalmente um menino perdido, retrato da Alemanha de então, que rouba, foge, tenta se comunicar e acaba por matar seu pai. É um dos filmes mais tristes já feitos. O cinema de Rosselini continua a ser influência num certo tipo de cinema de hoje ( os iranianos, os palestinos, os africanos ), é cinema da pobreza, da crueza, e da ausência de emoção. Rosselini tenta ficar a distância, observa e não se envolve. O que salta aos olhos hoje é o absurdo de destruição que se fez em Berlin, creia, a cidade ficou completamente destruída. Nota 7.
PROFANAÇÃO de Jules Dassin com Melina Mercouri e Anthony Perkins
Primeiro: Dassin é um super diretor! Seja em policiais ou em dramas, seja em comédias ou em noir. Aqui ele pega a história de Fedra e a coloca na Grécia moderna, no mundo dos milionários armadores ( Onassis? ). Melina é a esposa de rico armador que se apaixona por seu enteado. Perkins, o jovem e frágil ator de Psicose, faz o enteado. A trilha é de Mikis Theodorakis, maravilhosamente trágica. Dassin vai fundo na tragédia grega, sem medo e sem pudor. O que vemos é a destruição de todos pela força da paixão cega. Mas a habilidade de Dassin é tanta que o filme nunca perde ritmo, suas imagens e sua edição dando suspense ( e nervosa beleza ) ao todo. Melina nasceu para esses papéis: seu rosto é máscara de tragédia. Anthony Perkins traz o desamparo de menino mal amado. O filme é poderoso. Nota 8.

SOBRE A PORNOGRAFIA ( O TAL LIXO SÉRVIO )

George Lucas disse em 1973 que é muito fácil criar Sensação: basta filmar um gatinho sendo esmagado ao vivo. Criar emoção é bem mais complicado.
Isso explica, à perfeição, o que é o cinema de hoje e para onde caminhamos. Esse filme sérvio de horror que a Folha reporta hoje ( 18/07 ) é, na verdade, exemplo de nosso futuro. Cenas de sexo misturadas com horror. Tira-se do sexo seu lado bom: sensualidade, prazer, libertarismo; e rouba-se do horror aquilo que ele pode ter de bom: suspense, emoção, surpresa.
O mundo está se reduzindo a grande bazar onde vale tudo para ser o camelô da vez. Se transar com feto ou matar um bebê "funciona", então é válido. Dar à isso um verniz de denúncia política é papo furado para captar a atenção dos meninos inteligentinhos. Na tese de George Lucas podemos dizer que o gatinho esmagado "representa o esmagamento das inocências". Bláaaaah!
O mundo globalizado, onde todos os cinemas são americanos, todos os times jogam à italiana e todas as músicas são novaiorquinas, traz a apatia e o tédio. Para tentar vencer esse estado mineral se usa o caminho da sensação sensacional: porradas e choques elétricos na letargia.
Triste civilização que precisa de cacetadas para se sentir viva.

CONSIDERAÇÕES SOBRE DEZ MINUTOS DE TV EM 1982.( FUTEBOL, CARROS E CIGARROS )..

Tento não falar sobre o futebol, minha intenção é falar de um momento do país, momento em 1982, demonstrado pela propaganda. Mas não resisto e falo: um time de homens que não se preocupa com cortes de cabelos e sobrancelhas lapidadas. Turma de gente que ainda se parece com os caras do buteco ou da esquina... Era um time mais bonito...
Em 1982 a ordem no Brasil, saindo da repressão, era só uma: hedonismo. Politicamente demos com os burros n'água, Tancredo morreria em 85 e Sarney instituiria o vale tudo. No futebol o jogo ingênuo seria enterrado e a época do jogo de resultados valeria para sempre.
É engraçado ouvir Luciano do Valle ainda com voz e é fantástico observar o jogo destravado, sem tosqueira. Vêm as propagandas:
Bamba, tênis. Dançarinos. Nada de esporte radical. Eles rodopiam em disco. Hedonismo puro. Hedonismo de desbunde. Depois o Fusca. Um desenho infantil, corações. Nada de futurismo, nada da fria eficiencia do mundo cinza, apenas corações e infantilismo. Coca-Cola. Na praia. Praia que tem uma abundancia de sorrisos. Hedonismo de sorrisos, ainda não se fez a ditadura dos tanquinhos. Continental mostra um jogo. Aí o contraste se exarceba. Em 2010 se falava em TIME DE GUERREIROS, neste anúncio de 1982 todo o destaque é dado ao drible e ao jogo de pés. Caráter do Brasil. El Gol, é anúncio que marcou época, carro que é um touro. Nada de jovens frios com seu jeito de robot, apenas emoção quente e solar. Hollywood: esportistas fumando???? Eu sei o mal que havia nesse tipo de propaganda. Mas o que quero dizer é que me parece estranhamente saudável um mundo que exibe o esporte como um grande foda-se... Hedonismo de novo, velejar é um prazer, nada competitivo aliás.
É necessário repetir uma giria antiga que é usada na peça da Coca: curtição. Curtição é usufruir com prazer, usufruir com o espirito do foda-se. Nossos anúncios não pregam mais a curtição, eles pregam a hiper-eficiencia, e pior, nosso futebol não é feito para ser curtido, é exibição de egos eficientemente propagados.
O mundo da curtição jamais voltará. Mas caraca! Um pouco menos de seriedade e eficiencia!
PS: e não deixa de ser interessante uma copa sem o patrocinio de um banco e de cerveja.

Intervalo Copa 1982 - Brasil x Argentina (RBS - Rede Globo Porto Alegre ...



leia e escreva já!

Handbags & the Gladrags - Rod Stewart



leia e escreva já!

SERIA UMA PENA SE VOCÊ NÃO ESCUTASSE....HANDBAGS AND GLADRAGS, ROD STEWART, SIM! ELE JÁ FOI GRANDE!

Entre 1969 e 1975, todo ano, a crítica inglesa elegia alguém como o "futuro do rock". Se em 1975 esse futuro se chamava Bruce Springsteen, em 1969 seu nome era King Crimsom. Assim como nos outros anos foram Bowie, Roxy Music e Sparks. E durante todo esse tempo, a molecada proletária de Newcastle, Bristol ou Manchester tinha ouvidos apenas para dois nomes: Slade para as bebedeiras e Rod Stewart para ficar no quarto ( e beber às vezes ). Esqueça o Rod Las Vegas de agora, creia-me, até seus trinta anos ele foi O Cara.
Foi jogador de futebol e coveiro e em 67 tirou a grande sorte, entrou para o Jeff Beck Group. Estouraram, ele, Jeff ( estrelaça ) e Ron Wood no baixo. Mas a banda terminou às vésperas de tocar em Woodstock ( chamaram o Ten Years After para os cobrir ). O disco AN OLD RAINCOAT WONT EVER LET YOU DOWN é o primeiro solo de Rod. Vendeu pouco, hoje é um clássico. Porque?
Leio uma velha crítica da Rolling Stone que entrega o motivo: Rod foi nessa época o único compositor/cantor que realmente sabia cantar o MOMENTO DECISIVO. O momento em que um garoto mata aula pela primeira vez, em que uma menina divide seu lanche no recreio, um velho penteando o cabelo e se lembrando do passado, um cego cruzando a rua e sendo ajudado por um estranho, o flagrante de um bandido, o primeiro porre, a dor do primeiro chute na bunda...Rod cantava todos esses temas, e o principal, sua voz tinha o dom para cantar isso a grande altura. Era uma voz que chorava, que se lamentava, que seguia avante e principalmente, dava coragem a quem o escutava. Se houvesse uma voz HERÓICA, essa seria a voz do jovem Rod.
Mas em 1975, milionário, ele sai da Inglaterra e vai morar em LA. Loiras e carros passarão a ser seu único assunto. Muitos dizem que a mudança de Rod, ao deixar seus fãs proletários desiludidos, abriu o caminho para o punk rock. Pois é...
O disco de 69, seu primeiro, com Ron Wood no baixo e guitarras, começa com uma versão lenta de Street Fighting Man, e o que posso dizer é que ela NÂO é pior que a original. Ela é enevoada, mais inglesa, mais contida. Em seguida vem Man Of Constant Sorrow e aí a coisa pega. Numa de minhas crises essa foi um hino. Ela realmente te tira do poço. E dá a certeza de que se o rock precisasse de um Keats, esse seria Rod. Blind Prayer é quase um blues e dá pra ver o que Ron seria se jamais tivesse ido aos Stones. Handbags vem agora, mas falo dela no fim.
An Old Raincoat se tornou depois um hit em shows de Rod. É uma celebração. Change a Thing é uma ambiciosa tentativa de progressivo e Cindys Lament continua a saga. O disco fecha com Dirty Old Town, que é dirty e não ficou old. Weeel... é hora de falar de Handbags.
Ela se inicia com um oboé e entra um piano. É uma canção. Uma das coisas que não consigo entender é como um cara de 16 anos pode hoje viver sem canções de amor no rádio. Canções, não falo de R and B mela cueca, não falo de choradeiras de meninos ao piano, nem de mocinhas e seu violãozinho, falo da canção de amor sem neurose, da canção doce, viril, de voz potente e alta, a canção de menestrel, exaltando o amor, a canção que dá vontade de amar, que desperta a saudade de amores idos. Handbags é isso e é mais.
O período 1969/1979 é considerado o momento auge da canção de amor. Não por acaso é a época de Paul MacCartney, de Roxy Music, de Elton John e de Stevie Wonder. Tempo de Paul Simon, Eagles, Queen e um monte de one hit makers. Rod foi rei nesse universo, Handbags é de seus cumes ( mas não o único ).
Ouço essa canção e vejo diante de mim todas as meninas que amei um dia. E as manhãs em que acordei com a certeza desse amor. A canção rola por dentro de nossas veias e não nos dá o desespero de amores falidos, mas sim a saudade do mel do amor de verdade. Rod tinha isso: a dor vinha, mas sua voz sempre fazia tudo valer a pena. Nunca foi voz pequena.
Ouvir essa canção hoje é um privilégio. O tempo passa, Rod fica cada dia mais Dean Martin, mas seu lugar em meu coração é reservado.

O MOINHO SOBRE O RIO- GEORGE ELIOT ( REVOLUÇÃO INDUSTRIAL X ROMANTISMO )

Ser mulher em 1840. Mulher possuidora de inteligência viva e de ansiosa energia. Assim foi Mary Ann Evans, nome verdadeiro de George Eliot. E assim é Maggie, heroína deste monumental romance. A autora foi criada em forte ambiente religioso. Passou a duvidar de tudo e tornou-se escritora. Na vida afetiva precisou enfrentar a má fama de se unir a um homem casado e pai de duas filhas. Evans/Eliot não é uma artista do estilo, seu brilho é o do pensamento, da criação de tipos. Como Maggie, menina pela qual todo leitor irá se apaixonar.
Pois Maggie nasce "com pele e cabelos de cigana", em mundo onde ser pálido e louro é a lei. É o interior da Inglaterra, mundo de moinhos e da classe média ascendente. Mais que pele e cabelos morenos, Maggie é uma força da natureza. Ela é curiosa, ela é viva, ela está sempre em movimento. A primeira parte do livro, centrada na infância de Maggie, e em seu irmão Tom, teimoso e corajoso, no pai desastrado que a adora e na mãe tola e ingênua, é forte e poética como poucas coisas já lidas. As primeiras 200 páginas voam, passam em amor pelos personagens de Maggie e Tom, mas também em encantamento pelos parentes sovinas, invejosos, moralistas, dogmáticos. O pequeno mundo movido a negócios, a dinheiro aplicado, a rendimentos.
O centro do livro é a terra. Todos lutam por ela. O homem, pela primeira vez em toda a história, percebe que seu mundo não mais lhe pertence. As coisas mudam, são destruídas, paisagens se vão. Não existe mais a continuidade, e esses seres, agitados e saudosos, se movem nesse mundo incerto, que teima em negar o passado, em se transformar. O trauma que a Europa viveu então se faz notar pela violência de suas revoluções, guerras e movimentos mentais. E neste livro se nota pela destruição de todos os sonhos de Maggie.
George Eliot é cruel com Maggie? Como poderia ser se Maggie é ela mesma? Mas nada dá certo para aquela adorável menina. Seu tempo é tempo feito para gente que não é como ela é. Maggie nega o amor, se perde e passa toda a vida ansiando pela volta a infãncia. Eliot traduz assim o romantismo de seu tempo: saudades da infância européia, onde todo recanto era sem dono, toda árvore era sua companheira por toda a vida e cada estação seria sempre exatamente como fora a anterior. Maggie sabe que esse mundo fora destruído. Mas ela passa pela vida crendo em sua volta.
Há um momento em que George Eliot se deixa perder. Quando Maggie se divide entre dois amores o livro perde originalidade e se torna mais um romance de amor sofrido. Mas isso logo é resolvido e o final é de trágica e bela verdade. Eles tinham de terminar assim, não poderia haver outro fim.
Mary Ann Evans sabia, e diz isso várias vezes, que a grandeza da Inglaterra estava firmemente construída sobre a teimosia dos compromissos familiares. Famílias negociavam com famílias e lutavam pela manutenção de seus bons nomes e de sua fortuna. O inglês era um ser de pensamento sólido, imutável, limitado e sem temor. Esse modo, sem imaginação, de avançar sempre e de manter a palavra dada, segundo Eliot, levaria o país ao poder mundial. Mas faria de Maggies e Toms vítimas de um mundo feito pelo e para o dinheiro.
Seiscentas páginas que poderiam ser mais. George Eliot foi uma grande mulher.

BRASILIA, UM LUGAREJO DE ALTAS BANCADAS

Numa sala imensa, um homem "especial", fala para seus camaradas. Esse discursante está longe deles, bem longe, detrás de uma imensa bancada, ao alto, em posição "superior".
Os outros estão lá embaixo, escondidos detrás de imensas poltronas, perdidos no vazio de um salão imenso. Impossível haver lá um "olho no olho", um cara a cara.
Esse é nosso congresso. Sua disposição arquitetônica já traindo o espírito da casa. Aliás, desenho feito por arquiteto bem pouco democrático. Espaço feito para discursos ao vazio, para conchavos detrás de sombras, imensamente oco.
Em outro lugar....
O ministro discursa em posição "inferior". Ele fica em piso mais baixo que seus companheiros. Se coloca ao centro, todos os outros estão quase encostados nele. Fala cercado, de pé, e escuta apupos, vaias, perguntas feitas por quem está "acima" e próximo.
Me causa admiração sempre que vejo o congresso inglês. O ministro tendo de enfrentar os congressistas no olho a olho, cotovelos quase encostados, o ministro de pé em meio aos companheiros. Vaias e adendos, perguntas feitas a todo momento, com educação, mas na proximidade.
Só irei acreditar no Brasil no dia em que o congresso for reformado. Em que se derrubar aquela ridícula e ditatorial bancada. Precisamos dessa "Bastilha".

PARA ENTENDER UM ROMANCE, O TEMPO E UM LIVRO

Primeiro a lenda. Começamos a nos tornar civilizados com lendas cantadas à fogueira. Mistura de religião com fato, cantos. Depois os épicos, feitos de heróis que dão orgulho ao povo e ensinam como ser cidadão. E vem a escrita.
Revelador o fato de que começamos pela poesia. É em verso que nossa consciência se revela ( ou inconsciência? ). Poesia que fala de deuses, depois de história e só então se cria o Ego.
O ego se firma e reafirma no drama teatral. No palco nós vemos o outro e tomamos ciência de nós-único. E muito tempo depois, a poesia provençal terminará o trabalho, nos dando a certeza de que o ego é feito para o amor.
Observe: já estamos em Dante, cinco mil anos de cultura ocidental, e nada de romance. Escreve-se poesia, filosofia, história, lenda, canção, conto picaresco, mas o romance como o conhecemos, não.
Vem a prosa, Boccaccio e depois Cervantes. Mas não são romances. A trama não é romanesca, os personagens não evoluem, a ação não leva adiante, resumindo: o tempo ainda não é linear.
Lendo o Quixote, o Decameron ou Canterbury Tales, percebemos que a história narrada não vai adiante, não corre. Os personagens nascem como se "fora do tempo". As coisas não mudam, acontecem aventuras, mas nada anda. Não é o romance. Mas é a prosa. Prosa com alma de poesia, atemporal. Quase nada é descrito, as coisas estão e permanecem como são.
Mas, na Inglaterra, por volta de 1740, textos começam a falar de homens que nascem e se modificam ao correr do enredo. Não se escreve sobre um herói extra-temporal, se conta uma linear saga no tempo. Começo-meio e fim. Personagens e ambiente. Forças sociais. Tempo que tudo modifica. Robinson Crusoe, Tom Jones, Clarissa. Defoe, Fielding e Richardson, no centro do capitalismo nasce o romance.
A paisagem muda sem cessar. As relações mudam. As cidades matam o atemporal. Os recantos familiares são destruídos. O homem se torna cão sem dono. O romance procura dar um sentido a esse terremoto. Ele dá linearidade ao que é irracional.
O século XIX é o auge do romance. E não por acaso é também o auge da ilusão racionalista. A maestria do romance mora toda neste século ( como também, e não por acaso, o apogeu da sinfonia ). Flaubert, Balzac e Stendhal na França; Eça e Camilo em Portugal; Hawthorne, Melville e James nos EUA; Turgueniev, Dostoievski e Tolstoi na Rússia; e principalmente Hardy, Dickens, Bronte, Thackeray, Stevenson e essa magistral Eliot na Inglaterra.
Tudo o que entendemos por "um bom livro" reside nesses autores. De Jonathan Frazen à Naipaul, passando por Harry Potter e Paulo Coelho, o que sentimos ser "um romance" é criado aqui. Bellow, Updike, Amis, Ellroy, todos têm a visão da narrativa como linha no tempo, modificações, personagens que crescem, desfechos.
O pesadelo do século XX desacredita o romance. A dúvida se faz e o sentido se esfacela. Joyce, Proust, Borges, Calvino, Sebald, tentam ir contra a linearidade, o enredo, o tempo. Para eles a questão é: como crer em romances se a vida é irracional? Balela! A vida deles é um romance. Eles escreveram romances sobre alguém que tenta sair do "grande romance do tempo". Falharam. Mas que bela falha!!!!!
Estou lendo George Eliot. Apesar do nome ela é uma mulher. Mary Ann Evans. Muitos a consideram a maior autora inglesa. Concordo. Lê-la é um prazer. Voce mergulha no ambiente, se apaixona pelos personagens e pensa estar vendo a vida mais viva que a própria vida. O segredo do grande romance está aqui: os personagens. Eles devem nos conquistar. Lendo Eliot voce se vê em amores com eles. E há aqui a melhor e mais bela descrição da infância possível.
Quando o mundo chega em George Eliot há um apogeu de uma longa saga. De Homero à Eliot. O que vem depois tem de ser diferente. Porque?
Um professor da USP me disse que após Victor Hugo é impossível para um francês fazer poesia. O fim da rima se deve a incapacidade de se tentar ser melhor que Hugo. Pois é isso. Após George Eliot ( e Tolstoi e Stendhal e Henry James ) é impossível se escrever um romance linear melhor que os deles. O romance se torna então farsa ou crítica, se torna uma outra coisa: best-seller diluidor, crítica modernista ou quebra-cabeça pós-tudo. Mas o grande romance, a história que cria seu próprio universo, e criando dá sentido a vidas sem sentido, esse romance é coisa do século XIX.
É uma benção ainda podermos os ler.

É BOM SER HOMEM ! É BOM PRA #@%##$!!!!!!

André Barcinski nos traz uma matéria com James Ellroy. Não sei se é verdade ou tipo, mas Ellroy diz não saber nada de facebook ou internet ou o diabo a quatro. Justo! Ele diz que para se escrever bem não se pode ficar conectado. Verdade. Tenho amigos que deixaram de escrever após o facebook. Escrevem suas besteirinhas na rede e esquecem de seus sonhos do "grande livro que vou escrever". A internet é um anti-deprê, um consolo para escrevinhadores frustrados. Como eu.
Eu escrevia muito melhor antes de meu blog ou do facebook. Me concentrava mais, elaborava melhor, tinha menos ansiedade. A caneta e o papel não são SIMPLES saudosismos. Eles são calmos, quietos, não elétricos. Na internet voce acaba se dispersando entre amigos, noticias e correspondência. A inspiração se vai. Não há espaço morto, silêncio interno, atemporalidade.
Ellroy diz não ler nenhum autor vivo. Na verdade não lê mais nada. E nem vê filmes. Sua narrativa ele a deve a Beethoven e Bruckner. Bom.... Todo bom autor escreve musicalmente. Stendhal era puro Mozart e Tolstoi é Beethoven. Mas acho dificil um escritor não ler. Todo autor é um viciado em letras, em texto, em palavras.... Mas é um prazer ver um autor tão pouco intelectual. Show.
James Ellroy é um homem homem, e esse texto casa com o texto de Pondé, texto que fala do homem homem, o homem não feminino, raça em vias de desaparecimento.
O homem compreensivo ( conheço alguns ) daqueles que ama a mulher "enquanto gente", é brochante. Mulheres com homens assim são poços de frustração. Pondé diz que a mulher deseja sim, embora às vezes envergonhada, ser um objeto ( de vez em quando ), ser tratada como ser desejado, ser diferente do homem, ser-fêmea, que deve ser protegido, tomado, cercado, dominado.
Meninos criados por pais de rabo de cavalo, que meteram em suas cabeças coisas como : "mulheres são como nós", "Respeite-as enquanto humanos", podem fazer o que? Tratá-las como irmãzinhas. Esses meninos têm aquele rostinho inofensivo, aquela voz suave-sonsa que tanto enxameia as ruas de toda cidade. As mulheres inteligentes, liberadas, se envolvem com esses tipos democráticos, e depois de dois anos se vêem, coitadinhas, ansiando pelo cafa da padaria ou o jogador de futebol da praia.
E o menino, que tolinho, se vê trocado pelo quarentão de barba suja ( " Porque? Porque?" ), ou pelo adolescente tapado caiçara.
No meio da beijação noturna, das azarações de verão, tudo o que elas querem é uma mão suja de graxa, uma boa pegada e o olhar de quem as vê como objetos magníficos para serem roubados.
O resto é consolo....

NICOLAS CAGE/ DORIS DAY/ COCTEAU/ BERGMAN/ MANOEL DE OLIVEIRA/ JOE WRIGHT/ GABIN

FÚRIA SOBRE RODAS de Patrick Lussier com Nicolas Cage e Amber Head
Barulho e corpos decepados. Mulheres nuas em cenas não-sensuais. Machismo a enésima potência. E Cage no meio daquilo tudo. Adoro filmes de ação sem cérebro. Sou fã de Jason Statham e fui de Bruce Willis/ Mel Gibson. Mas filmes de ação precisam de leveza, de algum humor. O que vemos aqui é grosseria pura e nada de emoção. Video-game em que voce não joga, assiste e engole. Estamos no ponto mais baixo do cinema. Nota ZERO.
A TEIA DE RENDA NEGRA de David Miller com Doris Day, Rex Harrison e Myrna Loy
Um elenco superior para um filme comum. Doris é esposa aterrorizada por telefonemas anônimos. Rex é seu marido e Loy uma amiga. Tem classe, mas o roteiro não se distingue por nada de especial. Serve para fãs de Hitch que gostam de conhecer suas imitações ( meu caso ). Doris, uma atriz sempre subestimada, segura o papel. Nota 5.
INVERNO DA ALMA de Debra Granik com Jennifer Lawrence
Por entre toneladas de entulho, bando de zumbis esfomeados e drogados vaga sem destino e sem nada para se ocupar. Uma menina deprimida vai à procura do pai em meio a esse mundo lixo ( que não é o meu ). É só isso. Um filme perfeito para quem confunde arte com depressão, ou que mostrar a verdade é mostrar gente zumbi. Se voce viajar grandão no filme, voce até pode imaginar que há ali a constatação do fim da figura paterna/deus e dos restos de coisas tentando ocupar esse vazio. Vazio que é inescapável. Mas o filme é realmente tão rico? Ou ver isso é empurrar sentidos que ele não merece ter? A atriz não atua, apenas fica zanzando pelo set. Foi dificil ficar acordado. Nota ZERO.
A BELA E A FERA de Jean Cocteau com Jean Marais e Josette Day
Para se avaliar um clássico é preciso vê-lo mais de duas vezes. Na primeira vez em que vi este filme ( 1991 ) chamei-o de obra-prima. Na segunda vez ( 1999 ) apenas de um excelente filme. Agora o considero um filme interessante, bonito ( a foto é de Henri Alekan ) mas nada de tão grandioso assim. Nosso gosto se apura com o exercicio do olhar e do escutar. Em 91 o que eu conhecia de cinema? Bom..... A história é aquela do desenho Disney. Claro que numa chave mais adulta. Cocteau, para os meninos que não sabem, foi poeta, coreógrafo, pintor, diretor de cinema e escritor. Bom em todos esses ramos, genial em nenhum. Amigo de Picasso, Matisse e toda a turma boêmia da Paris 1920/1940, seus filmes sempre possuem um visual rico, sonhador, poético. Mas também apresentam sempre algo de flácido, suave demais. É o caso. Nota 6
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA de Manoel de Oliveira com Ricardo Trêpa
Se Clint Eastwood viver mais vinte anos terá a idade que Manoel tem hoje. Um milagre! E tomara que Clint ( e Woody ) consigam. Manoel de Oliveira é pouco apreciado em Portugal. Seu sucesso vem da França e da Espanha. Fácil saber o porque: ele expõe aquilo que os portugueses não gostam em si-mesmos. Aqui ele pega um conto de Eça e faz um filme de uma hora, apenas. E que filme é esse? Uma radiografia sobre a facilidade com que um amor nasce dentro de uma pessoa, e a mortal capacidade que esse amor tem de se escapar. Se amar é fácil, perder um amor é mais fácil ainda. O filme nada tem de trágico. Aliás, nada tem de emocionante. A paixão é exposta como coisa fria. E o fim é ainda mais frio. As cenas nunca são bonitas, são precisas, simples, naturais. É um tipo de cinema diferente, distante, de cenas longas, nada espetaculares. Em meio a tanta bobagem é um alivio. Mas por outro lado, há uma ostentação cultural, um pedantismo que chega a irritar. De qualquer modo, quando um ator recita um poema de Fernando Pessoa ( Alberto Caieiro ) faz-se a luz. É uma cena maravilhosa. Manoel de Oliveira não é de nosso tempo. Seu filme parece ter sido feito por um contemporâneo de Machado de Assis, Proust ou Thomas Mann... E ele o é. Nota 6.
O SÉTIMO SELO de Ingmar Bergman com Max Von Sydow, Bibi Andersson e Gunnar Bjorson
Quando temos diante de nós um filme como este, tudo o que podemos fazer é ajoelhar e bater palmas. O prazer em assisti-lo é inenarrável. Se voce não compartilha desse prazer, sorry, voce não sabe o que perde. Morte, história, coragem, jogo, estes os temas do filme. Bergman constrói cenas sobre cenas que nos ficam gravadas na cabeça como sonhos acordados. É, como diz Pauline Kael, o único filme medieval que parece ter sido feito na época. Bergman compreende o que foi aquele tempo. De certa forma, ele viveu seus conflitos em termos de culpas medievais. Foi um homem que enfrentou o dragão. Inescapável marco do cinema. Nota DEZ.
ARDIDA COMO PIMENTA de David Butler com Doris Day e Howard Keel
Doris está adorável como Calamity Jane, a heroína do oeste, com jeito e roupas de homem. Keel é um cowboy seu amigo. O filme, musical, mostra sua transformação em mulher atraente. É um musical de sucesso, mas não é um dos grandes. Em que pese o talento de Doris e de Keel, o filme tem uma encenação comum, pouca ousadia em seus números. È apenas uma diversão ligeira, da época em que se produziam filmes às toneladas. Nota 6.
GAINSBOURG de Joann Sfar com Eric Elmosnino, Laetitia Casta e Lucy Gordon
Um bom filme sobre um ícone. Sfar surpreende: caso raro de bio que não sente pudor em amar seu objeto. Serge é tratado como personagem de lenda, de conto de fadas. A encenação é rica, e suas canções estão lá ( La Javannaise é a melhor ). Bacana terem lembrado de France Gal, mas bem que podiam ter dado um jeito de colocar Anna Karina. A terceira parte, quando ele encontra Birkin, é a melhor. O encontro com BB é o pior resolvido. De qualquer modo, é obrigatório para fãs, para francófilos e para quem gosta de boa música. Para o resto será uma surpresa. Eric tem atuação de gala, mas Serge não era tão feio! Lucy é uma Jane convincente ( sim, se usavam saias tão curtas ) e Laetitia está longe da beleza de BB. Pena Claudia Schiffer não ser mais jovem.... A atriz que faz Grecco nada tem da esquisitice da musa existencialista. No mais, é um filme sobre um homem muito sexólatra feito de forma estranhamente pudica.... Sinal dos tempos.... Nota 7.
HANNAH de Joe Wright com Saoirse Ronan, Cate Blanchet e Eric Bana
Ainda não passou aqui este novo filme do excelente diretor de Desejo e Reparação e de Orgulho e Preconceito. Do que trata? Saoirse ( excelente ) é uma menina criada pelo pai ( Bana ) para saber se defender. Na verdade ela é parte de uma experiencia que não deu certo. Blanchet é a agente governamental que fez parte do projeto e que agora quer eliminá-la. Sentiram o drama? É HQ das mais banais. E o filme é esquizo até o osso. Wright, um talento enorme, trabalha com esse roteiro banal e faz misérias com as cenas. Não há um excesso de cortes, não há violência demais. Mas há a criação de um clima angustiante e principalmente, Wright consegue fazer um filme de hoje que se parece com futuro distante. Vemos aquele mundo sórdido, à Blade Runner, e percebemos que é nosso mundo, é agora. Um filme cheio de erros ( o pior é a trilha sonora vulgar ) mas que deixa se perceber o talento, grande, de seu diretor. Nota 6.
A TRAVESSIA DE PARIS de Claude Autant-Lara com Jean Gabin e Bourvil
Demorou mas virei fã de Gabin. Acho que precisamos de uma certa idade para gostar de seu jeito lento, duro, seco e mal-humorado. O chapéu de lado, o cigarro em toco, as mãos gordas. O maior mito francês em cinema. Aqui ele é um pintor bem sucedido que se envolve com o contrabando na segunda guerra só para ver como é. Ele ama a vida e quer conhecer esse lado de viver entre contrabandistas desesperados. Seu camarada é um apavorado e afobado pobretão, sempre nervoso e quase estragando tudo. O que eles contrabandeiam é carne de porco ( há a morte de um porco no começo que pode ofender alguns ). O filme, filmado nas ruas escuras de Paris, é uma diversão deliciosa. Assistimos com interesse a caminhada desses dois perdidos pela cidade tomada pelo medo e por soldados nazistas. E é lindo ver a Paris escura, fria, suja, pobre, da guerra. Nota 7.

Serge Gainsbourg & Mireille Darc - Comic Strip (1967)

O CARA! ( e Mireille Darc, a maravilhosa..... ) Penso em voltar a fazer francês......

leia e escreva já!

GAINSBOURG, HERÓI, um filme de JOANN SFAR

Existem 3 modos de se ver o filme-homenagem de Joann Sfar. O primeiro é vê-lo como alguém que conhece e ama Gainsbourg. É meu caso e ver este filme tem algo de frustrante. O cinema é por natureza um simplificador e Sfar fez um filme que torna a vida turbulenta, rica, perigosa de Serge, uma vida quase linear. Pior, é um filme com o rosto de 2011, puritano. Sfar consegue o milagre de fazer um filme sobre Serge sem uma cena de sexo. Nada se fala sobre seu filme provocante de 1976, e se mostra o homem alcoólatra que ele se fez, sem jamais se exibir uma garrafa de bebida. Para o Gainsbourg fã, o filme é bastante não-gainsbourgiano.
O segundo modo de vê-lo é como alguém que nada sabe sobre Serge e que quer descobrir quem ele é através do filme. Esse é o típico personagem-alvo do cinema para inteligentinhos do cinema atual. Aquele cara que nunca leu Tolstoi e que tenta conhecer o gênio russo através da "Última Estação", ou o cara que não ouve Bob Dylan mas acha que conhece Dylan pelo filme genial de Todd Haynes. O inteligentinho irá agora conhecer Serge via Sfar. E que Serge é esse? Um cantor/compositor francês que fazia músicas bacaninhas ( e que antecipavam o som bacaninha de pessoas fashion de hoje ). Um feioso que namorou BB ( e chega a ser humilhante para Laetitia Casta o quanto ela é menos bonita que a diva BB ), um chato que teve a sorte de ser casado com Jane Birkin. Fica a imagem de um cara meio perdido, levado pelo destino, solto, e sempre com seu Gitanes aceso. Um cara simpático, e eis o erro: Serge nunca foi simpático! Voce o amava ou o odiava, simpático jamais! Mas estamos em 2011, a ditadura da simpatia...
O terceiro modo é vê-lo como cinema, sem se preocupar com Gainsbourg. Fazendo de conta que tudo aquilo é ficção. E é então que o filme cresce. Como cinema em si, é um filme encantador. Joann Sfar ama tanto a Serge Gainsbourg que lhe fez uma fábula. Jogou fora a pretensão de exibir sua caleidoscópica e labiríntica persona e se concentrou em dar de presente à Serge e a seus fãs um poema de amor. O filme exibe suas canções, ama seu rosto de rato, apaixona-se por seus cigarros e cresce muito na parte final, ao mostrar a relação com Jane Birkin. O ator, Eric Elmosnino é mais feio que Serge ( e menos viril ). Gainsbourg era muito mais rouco e bruto. Atraía pela virilidade explícita. Joann suaviza isso, mas homenageia seu herói mostrando seu lado mais suave, engraçado, "simpático" então.
É um belo filme, léguas à frente de biografias tolas como RAY. Quando o filme se encerra sentimos um imenso respeito pelo homem Gainsbourg e reside aí o segredo do filme.

RAGA, LIVRO DE J.M.G. LE CLÉZIO

Primeiro ele narra uma viagem. Uma familia de ilhéus numa das maiores aventuras da saga humana: piroga no oceano, perdida, indo de ilha a ilha. E a nova terra, a praia.
O livro, curto, eu o li em uma manhã de frio, é delicioso. Deliciosamente interessante, porém é de dor que ele fala. Crimes cometidos pela Europa sobre a Oceania. Hediondos.
Mas antes Le Clézio anda pela ilha. E percebe a angústia sempre presente nessas ilhas que turistas tolos chamam de "paradisíacas". Nunca foram um paraíso. Nunca. A história desses mundos é de fugas: fugir da fome, fugir dos vulcões, fugir dos inimigos. Se aventurar ao mar, descobrir nova ilha. E depois a maior da dores, a chegada de navios brancos, a captura de seus filhos, de suas mulheres, a escravidão. Le Clézio anda pela ilha com uma missionária católica, e vê nela a primeira pista de um novo mundo num novo século... Qual mundo?
Antes do novo ele narra as lendas. A fertilização do mundo, a sexualização da vida. Lendas que são surpreendentes. Terra que nunca foi de ninguém, ilhéus que sempre viram a terra como dona da vida, o homem como companheiro da terra, parte dela e não seu dono. Mas a vela branca do navio europeu é vista ao largo, e a fuga se faz. Para dentro da mata. Os europeus tomam posse da terra, dos corpos e dos deuses, é a chegada do eu.
Homens que se jogam fazendo "o gol " ( o nome é esse, nós o chamamos de bugee jump ), mulheres que trançam esteiras. Pássaros que anunciam a vida. Estrelas. E o mar, sempre o mar.
Mas agora é hoje e Le Clézio sempre narra de hoje, não se perde no passado. E constata o futuro das ilhas, o futuro da Terra, deste planeta. Um novo cristianismo mestiço, uma nova forma de ver a vida.
E é pela língua que a coisa se anuncia ( meu professor de linguística adoraria este livro ). Línguas miscigenadas, criolas, que são não um erro mas sim uma vingança. Línguas como o foram um dia o francês e o português, línguas que eram reações de tribos contra o opressor romano ( o latim culto ). O final do livro é uma antecipação desse futuro: eles são hoje a vitalidade que fomos um dia. Eles têm a curiosidade de quem é novo. Tudo querem ver, tudo provam, e principalmente, tudo misturam. Misturam músicas, adicionam temperos, fazem uma sopa de línguas. O futuro é mestiço ( sempre foi ). Porque o francês é um mestiço ( de romanos, celtas, normandos, bretões ), o português é um mestiço ( de romanos, íberos, celtas, suevos e árabes ), mas são mestiços já esquecidos de suas origens, o sangue impuro acomodado em não-memória, em não-sonho. Mas nas ilhas, na Oceania, como no Caribe e como na África, a mestiçagem é viva, é agora, nasce. E eles se espalham pelo mundo, porque têm viva na mente a dor da opressão, porque têm a violência na alma, porque precisam vingar a injustiça.
Sim, há uma violência latente nesses lugares. Que é uma reação e nunca uma ação. Seus avôs foram massacrados, raptados, estuprados, sua cultura foi apagada, seus deuses ofendidos, sua cara foi amordaçada. Nunca houve dor maior no mundo. Não foi a dor ( terrível ) da guerra, pior, foi a dor da aniquilação. Exemplo: em 1910 na África do Sul ainda se organizavam expedições de caça ao negro. Na Austrália, de caça ao aborígene. Forma européia de vencer o tédio...
A reação violenta está na língua, cheia de termos crús, estúpidos, agressivos. A reação está no modo como eles viajam, viajam com o intuito de voltar, de explorar o explorador. Eles foram dizimados, são violentos e resistentes. Pois seus deuses voltam e o que desejam é lembrar.
Mestiços, povos que amam provar tudo e que assim amam a tecnologia, as novidades, a moda, mas que ao mesmo tempo impregnam tudo de deuses, de manhas, de ritos e de mistérios. Lêem as linhas do tempo. Resistem.
Franceses e portugueses foram massacrados um dia. Foram escravos e perderam sua religião, sua terra. Mas não souberam resistir, se renderam. Essa dor nos foi roubada. Mas não eles, sua dor é deles, é mantida e é celebrada. Identidade.
O futuro de toda nação passa pelo saber ser mestiça. Os aborígenes, ( assim como os negros e os outros povos misturados ), quem diria, são o futuro da vida. Se eles deixarem de resistir estaremos mortos.
Pequeno grande livro.

O sétimo selo - diálogo de Antonius Block com a Morte



leia e escreva já!

O SÉTIMO SELO, UM BERGMAN FEROZ ( RELIGIÃO X ARTE ).

Ingmar Bergman tem raiva. A repressão sofrida na infância ( como mostra Fanny e Alexander ) lhe deixou a marca da dúvida, da angústia e da dor. Nenhum cineasta tratou melhor desses temas, e nenhum cineasta foi mais independente. Bergman fez sempre o que desejou fazer. Na arte e na vida. O Sétimo Selo fez dele uma estrela intelectual, no ano em que além desse filme-marco, ele lançou Morangos Silvestres e preparou O Rosto ( meu favorito ).
De qualquer modo, para o bem ou para o mal, aquilo que conhecemos como "cinema de arte" nasce aqui. Antes de O Sétimo Selo, lógico, existia arte em Dreyer, Ozu ou Renoir, mas a relação do cinéfilo com tal tipo de filme se dá aqui. Desde este filme, "filme de arte" se tornou um gênero à parte.
Ninguém entendeu melhor a idade média ( opinião que compartilho com N críticos ). E neste filme estamos em momento chave da psique humana: a volta das cruzadas e a peste negra. Vários autores relatam que é no retorno da cruzada que se faz a crítica primeira ao cristianismo. Os horrores cometidos e a visão de reinos mais evoluidos que os europeus, fez com que a dúvida se entravasse na mente dos cavaleiros. Porém, mais importante que isso é a peste.
Uma de cada quatro pessoas morreu na peste. Seria como se hoje 2 bilhões de pessoas no mundo morressem em dois anos. Corpos jogados nas ruas apodrecendo, cidades sendo evacuadas, gente gritando pelas ruas, a certeza de que o mundo iria terminar. Psicólogos e filósofos que admiro dizem que foi momento de tamanho horror, que a angústia moderna perante a morte tem sua origem nesse momento. O idílio do paganismo/cristianismo primitivo morre com o horror da peste, com o medo sem fim. O europeu se torna grave, sisudo, angustiado, covarde.
Dois homens acabam de voltar da cruzada e encontram a Europa em terror. A morte acompanha um deles e os dois jogam xadrez. Essa morte nada tem de religiosa. Ela acontece, ceifa vidas, mas nada sabe do que faz. O cavaleiro que joga com ela ( um enigmático Max Von Sydow, que voce viu no filme recente de Scorsese ), é um questionador. Ele quer saber porque Deus não fala com ninguém. O outro que o acompanha já é um homem da renascença, ele tem suas respostas e todas são negações: Deus não existe, o Diabo não existe e os homens não são livres.
Os dois andam e encontram um casal de atores. Eles criam um filho e são muito simples em sua arte mambembe. O ator tem visões e numa bela cena ( que remete a Morangos Silvestres ) ele vê a Virgem Maria com um bebê. O cavaleiro se faz amigo dos dois enquanto um terceiro ator se envolve com mulher casada. Há uma bela cena em que o casal se apresenta cantando e são interrompidos por uma procissão religiosa. Bergman mostra a oposição entre a leveza criativa vital da arte e o peso mortal e tétrico da igreja. Mas ele não é um criador simplório e voce deve sempre duvidar do que Bergaman parece dizer. Pois a pergunta que essa cena traz ( e todo o filme ) é: Onde está a verdade? Se o masoquismo da procissão é ato de histerismo e cegueira, na arte há também algo de ilusório e falso. Ou não?
Uma das mais belas cenas é de uma jovem bruxa sendo queimada ( que remete a Carl Dreyer ). O cavaleiro quer saber se ela, naquele momento final, consegue ver o demônio. Aturdido, ele percebe que os olhos dela nada vêem, apenas o medo e o horror ( ou não? ).
Como todo gênio, Bergman não responde, pergunta. Tudo o que ele sabe é que viver dói. E que existem momentos de alivio que compensam a dor. O casal de atores sobrevive. Mas o outro ator, que fugiu com a mulher casada, em cena de humor cruel ( o filme tem humor quase todo o tempo, humor medieval ) tem sua árvore derrubada pela morte. Morte que trabalha sem cessar.
A cena final é uma das mais conhecidas, os mortos dançando atrás do ceifador. Mas não é esta a cena derradeira, há ainda uma breve tomada do casal partindo. Mais vida e arte irá nascer. Para então morrer.
Porque Bergman, mesmo falando de morte, me faz feliz? Fácil responder: minha alma vibra ao presenciar talento verdadeiro. Por mais triste que seja o tema, eu me alegro ao ver como um homem de gênio lida com essa dor. Nada de falso, nada de artifício, nenhuma apelação. Filmes simples e que jamais se esgotam. O Sétimo Selo seria tema para infindáveis conversas. Penso no jovem Woody Allen vendo esse filme em NY-1956 e pirando para sempre. Vejo-o hoje, em 2011, Brasil, e mais uma vez sinto uma coceira mental, uma vontade de pensar e de perguntar.
Ingmar Bergman é um gênio, seu talento está além do cinema.

LUIZ FELIPE PONDÉ E EU, MEDIEVAIS OU BARROCOS? ROMÂNTICOS?

Que Pondé é um meu irmão espiritual todos que me lêem sabem. E neste texto de 4 de julho ele só confirma isso. Do cacete!
É hilária a forma como ele chama os "meninos" ( meninos são seres anódinos, felizinhos e fofos, que adoram tudo o que é moderninho e ousadinho ), de "inteligentinhos". Inteligentinhos, devo dizer, é melhor que meninos. Mas, como não sou plagiador, continuarei a chamar esses fãs de festivais de cinema e de festinhas louquinhas de meninos. Afinal, assim como os inteligentinhos, os meninos pensam estar livres da Idade Média. Passam pela vida dormindo em caminhas de seda azul.
Não sei se sou medieval ( para quem não leu, o tema de Pondé é Bernanos, o pecado e a era medieval. Pondé, como eu e Jung, sabe que a idade média é para sempre. Que quanto mais voce a nega e renega, mais ela fica louca e forte em seu sub sub sub ).
E que frases de Pondé!!!!!
A salvação dos meninos é como a salvação da Bela Adormecida.
O pecado é nossa substância.
Dois minutos na companhia de um inteligentinho é morrer de tédio.
A liberdade é um tormento.
O pecado é uma paixão pela aniquilação do ser.
ESSES BONS MOÇOS NADA ENTENDEM DA VIDA, E POR ISSO TIRAM DE NÓS NOSSA ÚNICA DIGNIDADE: A LUTA INTERIOR CONTRA NÓS MESMOS.
Sou um medieval graças a Deus. Não acredito no homem e muito menos em mim mesmo.
Eu sei que sou feito do mal, e voce, inteligentinho, se acha do bem, eis sua miséria. Voce é uma folha de alface, eu sou um réptil.
Todas essas frases estão no texto de Pondé. Mas ele fica ainda mais terrível ao dizer que são os pecados que fazem com que nos conhecemos. Penso eu mais que isso: são eles que nos fazem homens.
A avareza, com seu culto ao dinheiro e ao corpo perfeito ( que Bernanos chama de câncer da alma ); a luxúria e seu culto ao gozo, luxúria que nos faz mudos; ambição que traz a cegueira e a inveja que ao desejar tudo dos outros destrói tudo o que temos. Pecados que são de todos e que os inteligentinhos, belas adormecidas, pensam não ter. Eles pensam que pecado é invenção cristã, culpa inculcada para dominar os outros... tolos meninos, quem já leu textos pré-cristãos sabe que toda civilização tem pecado e castigo.
O que me surpreende é saber que existe gente que nega o pecado. Absurdo sofista, relativismo vazio, síndrome de avestruz! Então não existe pecado? Somos todos seres puramente biológicos sem conceito de moral que vivem numa boa? Ao contrário do que o muito perdido Nietzsche percebia ( queria perceber ), a força não está na amoralidade, a força heróica está na consciência da falha, do pecado e da falta. Ser um bicho nada tem de heróico. E Nietzsche queria apenas isso: absolvição para seus pecados negando o pecado e o castigo. Coisa de menino inteligentinho.
Mas Pondé a horas tantas diz ser niilista. Descrê em tudo, inclusive nele mesmo. Seria então ainda um medieval? Ou esse conflito não faria dele um barroco, época de dúvida e da união de opostos inconciliáveis? O medieval tem certeza em seu pecado, mas crê na igreja e em seu rei. Não seria então Pondé um barroco, com suas dúvidas e medos? Romântico, talvez seja essa a resposta. Um ser solitário e revoltado, uma pedra no caminho dos meninos.
O que me importa é o bem e o mal, a dor e a dádiva, a alma e a carne.
Amor sem preço? Prazer sem dor? Vitória sem dilaceramento? Isso existe?
Sirvo a reis e procuro pelo deus que não conheço ( e duvido ). Creio em palavras medievais como missão, paixão, maldição, azar, benção e abnegação. Se elas, assim como o pecado, são invenções culturais, pouco muda, somos seres de cultura.
Pecadores entre névoas de maldição, almas sombrias divididas entre medo e desejo, heróis lidando com egos ditatoriais, e um Deus, quer exista quer não, regendo as idéias que nos atormentam.
PS: no RODA VIVA de ontem ( dia 4 de julho ) um escritor angolano, jovem, amigo de Mia Couto, cujo nome me fugiu. Em dado momento ele fala do mistério da escrita, da inspiração como posse, mistério..... um entrevistador sorriu e balançou a cabeça. Eis a imagem do inteligentinho ( estéril e beladormecida ), e o artista xamânico/medieval, seu oposto.
Eis tudo.

AMAR OU SER AMADO

Um amigo me pergunta se é melhor amar ou ser amado. Digo, de primeira, que é melhor amar. Pois não tem valor algum ser amado por quem não se ama. Se ser amado por quem não se ama fosse felicidade nenhum casal se separaria. Mas... será?
Quando amamos, quando conseguimos amar, tudo ao nosso redor se faz amoroso. Passamos a sentir afeto e carinho pela vida. Mas e se esse nosso amor for repelido? Amar sem ser amado....
Tenho então duas coisas a dizer.
Primeiro: Falo de Amor e não de casamento. Sentir que se ama não significa realizar esse amor. Me parece que as pessoas confundem muito isso. Muitas não conseguem sentir Amor. Sentem desejo, carência, medo e solidão. Falo do dom de se sentir o calor do amor, o querer bem, o torcer pela amada, a constância do afeto. Amor nobre, que acaba se expandindo para amigos, bichos, ambiente. Amor que faz com que quem o sente torne-se caloroso, expansivo, sorridente, bonito, em resumo: Amável. E reafirmo então, mesmo que esse amor não se faça carne, é dele que guardamos nossas mais ricas lembranças. Mais, é o que faz a vida valer a pena.
Segundo: Tragédia do homem: para ser amado é preciso ser amável e para ser amável é preciso amar. Converse com alguém que está amando. Faça-o falar desse amor. Repare em como voce sente estar diante de alguém realmente vivo e em como voce deseja estar perto dessa vida calorosa. E não é preciso ser o Amor do tipo cupido. Ouvir alguém falar com amor, com entusiasmo, de seu hobby, de seu trabalho, de sua cidade favorita, de qualquer coisa que ele ame, faz com que essa expansão aconteça diante de nossos olhos. A pessoa começa a brilhar e seu rosto fica expressivo. As mãos se movem em vida, o peito se enche de ar, a voz se afirma. O amor pela vida nasce e voce quer estar ao lado daquele que Ama.
Mas há o ser que foge do amor. O Vampiro que nega a luz e o calor e pensa no amor como tola ilusão, armadilha, futilidade diante da morte. Não percebe que ele ama a morte e amar a morte é também amor. Amor pra dentro, rancoroso, travado, secreto e doído. Para esse tipo de ser, ter alguém que o ame é indiferente. Normalmente ele sabe ser amado, mas pouco importa, ele não quer, esqueceu de amar.
Ser amado é uma dádiva maravilhosa. Mas saber, querer, ousar amar, isso é estar vivo.

JOHN DONNE E O DIABO DA TASMÂNIA

Concordo com John Donne. Mais que isso, sinto na carne e no osso aquilo que ele diz. Cada ser que morre na Terra é parte de mim que morre junto. Falo ainda, há uma agoniante sensação de pobreza e de fracasso quando sabemos que um componente do teatro terrestre pode estar se indo. Para sempre.
Vida interior é alma. Vidas externas que se refletem dentro de mim mesmo. Elas dançam e repercutem em meu interior e se fazem componente desse eu. Quando um desses eus deixa de existir é meu eu que morre. Um pouco, e muito.
O encanto do filme de Woody Allen é o de se ver um homem que por amar outros seres fora de si-mesmo, ama a vida e amando a vida ama Paris e o mundo. Disso bem entendo, pois sei, muito, o que é amar Londres por Thackeray ou Ferry, Paris por Proust e Gauguin e o sul dos EUA pelo jazz e pelo blues.
Só que mais forte é amar a Serra do Mar por seus micos e seu verde sombrio, é amar a Austrália pelos dingos e pelos cangurús. E se os tigres estão por um fio, se o mar deixará de ter golfinhos, é evidente que a vida, nossa vida, será de um vazio abissal. O homem que ama Tokyo porque Tokyo tem aparelhinhos e luzes não percebe que ele ama coisas mortas. E hoje se ama Nova Iorque e Amsterdam por coisas sem vida. Não por Cole Porter ou Rembrandt.
O Diabo da Tasmania está se indo. Um fungo que se torna cancer facial destrói a espécie. Inteira. Quando ele estiver vivo apenas em memória de tolos como eu, saiba, e tenha a certeza, de que a Vida neste planeta estará ainda mais pobre e mais futil. Porque voce e eu somos ele também.
John Donne sabia.