OLHO DE GATO-MARGARET ATWOOD

Melhor que "Lago Sagrado" ? Talvez.
Para Atwood, o tempo é questão central da vida, e aqui ela nos mostra que a dor da infância é a única que permanece. Elaine cresce no subúrbio de Toronto, viaja com seus pais, felizes e pouco convencionais, para as matas canadenses, tem um admirável irmão e amigas como todas as amigas aos nove anos são : cruéis. Cordelia é a mais amada e a pior das três amigas, uma líder egoísta e narcisista. Lendo a primeira parte deste longo volume, nos pegamos apaixonados por Elaine. Ela é um patinho manco, uma desaptada selvagem, uma menina. Somos testemunhas da terrível dificuldade que é a de se crescer, existir, escolher, conviver. O texto é poético, leve, belíssimo em sua descrição de lugares, objetos e roupas antigas, mas o desespero é constante, a solidão abissal.
Ela cresce e acompanhamos sua adolescência e sua vida na faculdade. Vem o primeiro casamento, a filha, a maturidade. Elaine se torna uma pintora, uma insegura mulher madura, uma viajante entre pensamentos e resquícios. Vaga pelo feminismo sem nunca chegar a ser feminista, como não se sente confortável no meio da arte. Percebe que jamais deixou de ter nove anos e que jamais deixou de ser atormentada e seduzida pela melhor amiga daquele tempo : Cordelia.
As primeiras duzentas páginas, que tratam da infância, dos 7 aos 13 anos de Elaine, são simplesmente magníficas. Cada parágrafo brilha como as bolinhas de gude que ela adora, cada capítulo é cheio de vida, de encanto, nos conduzindo a nossas próprias lembranças de nossa própria infância. Apesar dela ser menina, canadense e criança dos anos 40, me peguei em comunhão profunda com toda lembrança, toda alegria e todo medo de Elaine. É magia total.
O livro se banaliza conforme ela cresce. Nunca se torna fraco, mas sentimos falta do mundo do início. Mas tinha, precisava ser assim ! Pois o personagem sente, de forma nunca assumida, o mesmo que o leitor : um fascínio, difícil de ser aceito, pelas coisas da meninice.
No final o livro volta a crescer, e Elaine percebe que o que ela sempre tentou foi deixar os nove anos para trás, esquecer. Mas num avião, finalmente, ela entende. Que a velhice pode ser uma benção, que ela pode nos conceder a paz de não mais se preocupar com aparência, boa educação, sexo. Que ela pode nos dar a liberdade de dar uma banana para o mundo. Mas que essa velhice só seria completa se Cordelia estivesse a seu lado.
Eis a grande melancolia : é preciso completar o círculo, levar algo ou alguém com você, uma testemunha de quem você realmente é, um companheiro de trajeto. Elaine perdeu Cordelia, e Cordelia se foi para sempre.
Uma dor fina, incômoda, constante, se desprende desse livro. È a dor que ela sente. A dor de quem vê demais e questiona muito. Elaine é menina/moleque, moça/desajustada, senhora/esquisita; tudo nela é vazio, e a vida nela é plena. Amamos aquela criança que jamais muda dentro da mulher. Torcemos por ela. E terminamos a leitura entendendo melhor nossas mães, nossas namoradas ou nossas irmãs. Não é pouca coisa o que Atwood nos dá. Sua mente é gigantesca.

PATTON/MASTROIANNI/DELIVERANCE/KATE E CARY GRANT/

CRY OF THE CITY de Robert Siodmak com Victor Mature e Richard Conte
Siodmak foi um dos vários alemães que emigraram para os EUA e que criaram o estilo noir do cinema americano. Este é um belo exemplo. Filme muito forte, sobre bandido italiano que usa todos para tentar escapar da lei. Mature está ok, como o policial que cresceu no mesmo bairro e tenta incriminá-lo. Mas é Conte quem impressiona, mais uma vez dando show. O filme tem um clima realista, sujo, feio, que o torna muito absorvente e emocionante. nota 8.
SIROCCO de Curtis Bernhardt com Humphrey Bogart, Lee J. Cobb e Marta Toren
Conhecido como um dos piores filmes de Bogey, ele incomoda por ser seu personagem um fraco. Ele nada consegue e tem um fim nada heróico. Mas tem seus méritos, nesta história onde franceses colonialistas tentam domar revolta na Siria. nota 5.
PATTON de Franklyn J. Schaffner com George C. Scott e Karl Malden
Grande vencedor do Oscar de 1970, este filme representa bem uma das melhores safras do cinema americano ( 66/74 ). Trata-se de uma bio como não se faz mais : completamente verdadeira, mas sem jamais perder o caráter de espetáculo. Caramba ! Porque não se fazem mais filmes como este ??????????? Patton, feito por um Scott endiabrado, é fascista, egocentrico, homossexual enrustido, cruel, vaidoso ao extremo. Mas o admiramos, e depois o odiamos e voltamos a admirar. Na história deste gênio da guerra, que amava ópera e acreditava em reencarnação, assistimos a um filme perfeito em seu gigantismo. Gigantismo que jamais se torna frio, falso, impessoal. Tudo nele é belo e cruel, verdadeiro e mitológico. Foi este filme que deu o primeiro Oscar à Coppolla ( é dele o roteiro ) e deu a Scott um Oscar merecido. Aliás, bem de acordo com o clima político desse tempo, Scott não aceitou o prêmio e nunca foi o buscar. Disse que atores não são esportistas para concorrer entre sí, e que o único modo de se julgar dois atores seria dar a ambos o mesmo papel no mesmo filme em condições iguais. Ele está errado ? Tudo neste filme é superior : a música de Jerry Goldsmith, a fotografia de Fred Koenekamp, e esse absoluto extase que é assistir à Scott como este magnífico e inesquecível general. Apesar da concorrência fortíssima de 1970, o filme mereceu cada prêmio ganho. Trata-se de cinema de primeira, de arte e diversão, de política e emoção. Assistir este filme é compreender o que o cinema popular pode e deve ser. nota Dez.
THE LOVE PARADE de Ernst Lubistch com Maurice Chevalier, Jeannete MacDonald e Lilian Roth
Envelheceu muito este filme do importante Ernst. É um tipo de filme realmente morto, ancião, enterrado. De bom, os cenários luxuosos e Lilian, uma maliciosa atriz de beleza sapeca, que teve a carreira destruída pelo alcoolismo. Seria uma estrela. O que encanta é a malicia do filme, feito antes da criação do código de censura. nota 4.
UN FLIC de Jean-Pierre Melville com Alain Delon, Richard Crenna e Catherine Deneuve
John Woo, Guy Ritchie e Tarantino adoram os filmes de Melville. Neste, que é seu último trabalho, dá pra se notar o porquê. É cinema policial durão, nada simpático, árido, cool, muito cheio de coisas dúbias, onde o bandido é tão ruim quanto o policial e tudo cheira a corrupção e existencialismo crú. Melville adotou este sobrenome como homenagem ao autor de Moby Dick. Amava tudo o que era americano, se vestia como Bogey, ouvia jazz e acima de tudo, assistia os noir de Huston, Wilder, Wise, Preminger e Dassin. Alain Delon, com sua cara de absurda beleza gelada, nasceu para fazer este papel. nota 7.
O BELO ANTONIO de Mauro Bolognini com Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale e Pierre Brasseur
Em toda a história do cinema de qualquer nação, ninguém fez tantos filmes bons em tão pouco tempo quanto Marcello. Entre 55/75, a quantidade de filmes eternos que ele fez é impressionante. Mesmo tendo de concorrer com Gassman, Tognazzi, Manfredi e Sordi. Nesse período o cinema italiano era o melhor do mundo e Marcello seu rei. Este foi um de seus maiores papeis : um homem da Sicilia, lugar de machismo absoluto, que não consegue consumar seu casamento, pois ama demais sua bela esposa, que vê como um anjo. Este poderia ser tema de comédia, mas aqui, graças a sensibilidade de Bolognini, discípulo de Visconti, o que seria riso se torna melancolia. Marcello tem uma interpretação digna de um deus. Seu olhar na cena final é coisa para se guardar para a eternidade. Seu personagem, que tem fama de comedor, se torna a piada da cidade. Claudia brilha, com sua transformação de belo anjo para mulher rancorosa e Brasseur, como o pai orgulhoso e maschio, passa toda a patetice desse garanhão de meia idade. Em destaque a bela cidade de Palermo, cheia de vielas, varandas e varais. Rica de gente. Um filme belo, vivo e muito triste. nota 8.
DELIVERANCE de John Boorman com Jon Voight e Burt Reynolds
A coisa de uma semana assiti um filme de Boorman feito antes deste. Um filme em que Lee Marvin e Mifune duelam numa ilha deserta. Agora me cai em mãos este Deliverance. Outra prova da maestria desse inglês Boorman, cineasta ainda na ativa, poeta da violência e da sobrevivência. Este filme é, em seu gênero, uma pequena obra-prima da crueldade. Poderia ser feito hoje ? Com certeza não. Sua violência é real demais, seu sangue não é glamuroso, seu horror é adulto, nunca infantil. Sua história : quatro amigos partem para a mata. Irão remar num rio que será eliminado, transformado em lago de represa. O que acontece com eles ? O absoluto horror. O filme nos mostra todo o tempo o ridículo de cada um deles. Como nos tornamos seres desajeitados, anti-naturais, desconfortáveis em meio a mata, e em como tentamos crer em nossa " pureza". Eles erram em tudo e todo o tempo, e pagam caro por todo erro. Cada passo que dão é um passo de aliem num planeta que nunca é o deles. A mata os repele, e os caipiras são de um mundo distante, além do que eles podem ver. Nada neste filme é bonito. Ninguém é heróico. Não há poesia: a mata é o que é, mundo fechado, inescrutável. Surpresa : o filme não tem trilha sonora, apenas o som de pássaros, da água, de gemidos e gritos, de conversas tolas. É uma obra-prima feita por um corajoso. Cineasta que se queimou nos anos oitenta com dois filmes muito ruins ( inclusive um deles feito no Amazonas, com Sean Connery e José Wilker ). Mas Boorman é invulgar, original, forte e difícil. Este Deliverance ( grande sucesso na época ) é para se guardar e rever. nota Dez.
SYLVIA SCARLETT de George Cukor com Kate Hepburn, Cary Grant, Edmund Gwenn, Brian Aherne.
Maior prazer que ver Kate na tela ( minha atriz favorita ), só o de ver Grant na tela ( meu ator favorito ). Cukor, que apesar de grande diretor, não é ousado ou muito criativo, faz aqui um filme completamente doido. Sua primeira parte ( 40 minutos ) é deslumbrante ! Pai e filha fogem da França endividados. Na Inglaterra se envolvem com malandro cockney ( Grant fala, pela única vez, com seu sotaque de origem. Uma delícia!!). O que vemos então são os hilários golpes dos 3, e o filme, de 1935, se torna um milagre : um filme dos irmãos Coen, o melhor deles, feito mais de meio século antes. Kate se faz passar por menino e o filme brinca com travestismo, roubo, trapaça, egoísmo, pai infantil, tudo isso com imensa alegria e em cenas curtas e meio improvisadas. Kate, de paletó, cabelo de menino, leve como um Peter Pan, se mostra alegre, se diverte com seu papel, e vemos o mais bonito menino da história do cinema. Cary Grant começa neste filme a chamar a atenção do mundo sobre sua figura. Vemos o nascimento do mais adorável dos comediantes, do mais elegante dos malandros. E vendo este espetáculo pela primeira vez, penso : que fantástico show ! será meu filme favorito!!!! Mas... Kate se apaixona, larga as roupas de menino e se assume mocinha... e o filme, esquizofrenicamente, se torna outro, drama de amor. O personagem de Grant desaparece, e sentimos saudade de sua saudável malandrice. São 40 minutos de romance inconvincente, empolado, sem motivo. Nunca ví tal sucídio de expectativas na tela. Quando o filme acaba, parece que assistimos dois filmes totalmente diferentes : um que nos mostrou a verdadeira Kate, rapazinho bissexual, leve, alegre, linda; e o verdadeiro Cary, ambicioso malandro inglês, palhação, acrobata, charme de gigolô. Mas toda essa maravilha é morta pelo covencionalismo, pelo romance banal. Você se entristece com o filme, cai na razão, esmorece. O filme, em seu tempo, foi imenso fracasso. Hoje é um cult de primeira. É tão estranho que não pode ser julgado. Toda nota seria injusta.
EFEITO DOMINÓ de Roger Donaldson com Jason Statham e Saffron Burrows
O velho Roger continua filmando ( nunca vivemos uma era com tanto diretor velho. No cinema, até os anos 90, diretores eram encostados aos 60 anos. Hoje filmam até morrer. Bergman, Minelli, Ford, Hawks, Wilder, Donen, Capra, Stevens, Renoir, todos pararam aos 60, 62. Hoje, Lumet, Chabrol, Scorsese, Donner, Resnais, Spielberg, Penn, Boorman, De Palma, Eastwood, Woody Allen, filmam e filmarão até o fim. Como filmaram Altman, Pollack e Kubrick. Bom ou mal sinal ? ) Bem... eu gosto de Jason. É um Bruce Willis atual ( eu preferia Bruce. Mas Jason é ok. ) O filme, delícia de filme de assalto, é muito agradável, ágil, divertido. E tem Burrows, uma bela atriz. nota 6.

EU SOU MINHA LÍNGUA

Todo francês ama sua língua. Vem daí o cuidado que eles têm com as letras em suas canções e o prazer masturbatório em ouvir sua voz nos filmes. Eles adoram se ouvir falando. Continuam fazendo questão de chamar John Wayne de Jean Vaine, Brad Pitt é Brrrade Pí e Grace Kelly é Grrrrasse Quelí. Não subjugam sua língua. MTV é emetevê.
Em Portugal cd é dc, pois é um disco compacto, assim como pc é cp, computador pessoal. Todos os países latinos chamam aids de sida, pois aids nada significa em nossa língua. Celular é fone móvel. Me parece que nessa adaptação da língua, que franceses e portugueses fazem, além do orgulho por se ser quem se é, existe algo de mais nobre por detrás : a democratização da informação. Quando uma loja escreve sale, além de demonstrar falta de senso de ridículo, ela demonstra o desejo, tolo e perverso, de não ser entendida pelo povinho que não sabe o que significa sale. Se todos os termos da informática tivessem sido bem traduzidos em sua origem, ela teria sido democratizada com muito maior facilidade.
Me parece que esse hábito de se colocar em blogs e orkuts frases em inglês ( existe palavra mais feia que blog ? Sim, orkut ! ), esse hábito recorda aqueles "doutores advogados" que adoram falar termos jurídicos que a plebe não entende, aqueles médicos que amam escrever receitas que ninguém pode ler, enfim, é um hábito antigo como a poesia ruim, uma mania de se diferenciar pelo tolo esnobismo da língua.
Como os nobres russos que só falavam francês.
Uma língua deve estar aberta a influências. Esnobe é uma palavra inglesa. Como metrô é francesa. Mas essa palavra só pode ser usada quando não há equivalente em sua língua. Chamar rede de net ou mercado de market é pura caipirice. Negar a língua em que você pensa e sonha, é afirmar de forma burra, que seus sonhos e seus pensamentos nada são, que eles devem ser traduzidos em linguagem mais civilizada, mais moderna, mais pop. ( Pop é boa palavra. Coincide com popular ). Pare de se rebaixar e readquira o orgulho de sua fala. Amando é bem mais bonito que In love.

DEREK AND THE DOMINOS- sol, desespero e amor

ATENÇÃO:
ESTE TEXTO NÃO DEVE SER LIDO POR MENINOS ( MENINA PODE ). ELE FALA SOBRE SENTIMENTOS VIRIS. PODE CAUSAR DOR, MEDO E INSEGURANÇA.

A Rolling Stone disse uma vez que existe um certo tipo de disco que consegue passar aquilo que seria um ato de sucídio por amor. Música que é um abismo de dor, mas não de neurose. Ao contrário da neura, é dor verdadeira, inteira, assumida, é a completa e abismal paixão. O autor do texto cita "Darkness on the edge of town" de Bruce e "Tonight is the night" de Neil Young como exemplos desse momento de dor e de inspiração, e cita " Derek and the dominos" como o momento maior, onde o autor se mata de amor em nossa frente, e ao ouvir o disco, se estivermos apaixonados, nos sentimos morrer com ele.
Mas o que é Derek ?
Você sabe, é o Eric Clapton da heroína, o cara que em 1970 todos diziam ser o próximo morto. O que não sabiam é que ele já estava no inferno. ( E è sintomático de sua situação o fato de Keith Richards ter dito numa entrevista que trabalhar com Clapton era barra-pesada demais !!!! ).
Eric acabou com o Cream ( no auge da fama ) por dois motivos : por ter escutado a The Band e querer fazer aquele som, e por estar entupido de heroína. Mas, como tudo que é ruim pode ficar pior, ele se apaixona pela esposa do melhor amigo : Patty Boyd Harrison, esposa de George, aquele George...
Clapton vai, cheio de culpa ( não foi platônico e George perdoou os dois ) para a América e se mistura com uma gang de muito talento e de muita droga, os tais Dominos. Disfarçado então, ele lança um disco onde canta ( grita ) seu amor por Patty. Ouvindo o disco ( que nada mais é que uma carta de amor ), ela escolhe continuar com George, mas dois anos depois opta por Eric ( com quem ficaria mais de dez anos ). Clapton lança o disco, pira de vez e desaparece por quatro anos. Quando retorna, limpo de heroína, bebedor compulsivo, ele se apresenta como o cara que conhecemos desde então : acomodado, calmo, pop. Com a morte, por sucídio amoroso, daquele poeta do blues, nasce o guitarrista pouco ousado, clean e elegante, boa praça. Quem assistiu o show em homenagem a George ( excelente ) sabe do que falo : Clapton é um gentleman. Mas quem ouviu e sentiu os Dominos sabe mais : o disco é um berro de desespero amoroso.
Como devo deixar bem claro, o disco é de dor e desespero, mas nada tem de neurótico. O amor que ele passa é a paixão visceral de um homem de coragem por uma mulher especial. Apesar de ter sido gravado por um bando de junkies, nada em seu som trai qualquer tipo de viagem ou de pesadelo drogado. É um disco de blues. Para ser entendido por quem se perdeu numa estrada, para quem sabe o que é estar onde não se queria estar, para quem acordou e se viu no blues.
Nunca duas guitarras soaram tão fortes e tão cheias de sangue. Clapton chamou Duane Allman para tocar com ele. Duane, na época não muito conhecido, morreria em acidente de moto dois anos mais tarde, no estouro da Allman Brothers Band. Eric, com a modéstia que nele parece ser verdadeira, deu para Allman os melhores solos e passa boa parte do disco fazendo base para os solos de slide do americano. E que solos ! Tudo o que uma guitarra pode fazer em termos de emoção é feito pelo slide de Duane e pelo dedilhar de Eric. Os solos não são colocados nas músicas, eles explodem, sempre em desespero, sempre em lamentações dobradas, numa espécie de hiper saturação do blues. O efeito sobre aquele que já se apaixonou pela mulher errada e pagou por isso, é devastador. As duas guitarras, faixa após faixa, trazem uivos e gemidos que revivem toda a dor de uma emoção destruída e destruidora. Após estas faixas não há como outro guitarrista os superar, a linguagem do instrumento é esgotada.
As faixas falam de toda a história dessa paixão. Começando com " I Looked Away ", com solo soberbo de Eric, caminhando por "Bell Botton Blues", faixa que já estraçalha seu pobre coração aniquilado, tudo no disco conta a história da sua/ da minha/ da paixão de todos. Mas veja bem, paixão com P gigante, paixão louca de total entrega e total desfalecimento. Clapton se suicida nestes sulcos, dá sua alma à musa e renasce outro ser, anos depois. O cara que gravou isto, o louco deus da guitarra do Cream e do Yardbirds desaparece neste album. Album que continua com a festa de Keep on Growing, prossegue pela soberba Anyday- que tem vocais de morrer de dor, e deságua na música das músicas de estrada, Key to Highway, que tem os melhores solos já gravados. Quando Have you ever loved a woman surge, só resta entregar tudo à música, o que foi gravado alí é algo precioso demais para ser explicado. É música pura, superior; explicá-la é tão dificil quanto explicar uma paixão.
Dos músicos que tocaram neste disco, dois se mataram, um enlouqueceu e Duane morreu no acidente. Eric Clapton sobreviveu. E acima de Hendrix, Cobain, Morrison ou Curtis, eu valorizo o sobrevivente, o que viu a besta e voltou para continuar. Clapton viu. O demonio que ele viu tem o tamanho deste emocional disco. Era um demonio feito de amor, de desejo e de aventura. Ele soube domá-los. Não fez pouca coisa.
Ao final ele sobreviveu a Patty e a George. E melhor, manteve a amizade dos dois. O que fica disso tudo ? Este disco... e penso que ao final tudo se resume ao blues........

DAISY MILLER / INCIDENTE INTERNACIONAL - HENRY JAMES

Um imenso prazer ler James. É o melhor escritor dos últimos 150 anos ? Talvez Tolstoi e Proust sejam tão bons quanto ele, mas desde Stendhal eu não conheço quem escreva tão bem, tão "bonito", de modo tão claro, refinado, prazeroso e profundo. James esgota os vários angulos de cada sentimento, nos dá o personagem inteiro, complexo em todo matiz, cria com exuberância.
Daisy Miller é uma noveleta de 80 páginas. Compara americanos à ingleses. Sabemos que James nasceu na América, mas muito cedo emigrou para a Inglaterra. Sua descrição é imparcial, mas notamos, surpresos, que na época desta história ( 1875 ) a América já era a América. Vejamos :
Toques cômicos animam todo o relato. Desse modo, vemos Daisy, em Londres ( e depois em Roma ), uma americana rica ( James só fala do que conhece, as altas classes ), se divertindo como uma americana se diverte : falando tudo o que pensa. Isso deixa os britânicos alarmados ! Falar tanto, falar tudo, fazer confidências, expor sentimentos... quanta falta de educação ! Pior, Daisy anda sozinha pela cidade ! E se aproxima dos homens, sorrindo, sem ter sido apresentada à eles ! Tudo nela é ação ingênua, tudo nos ingleses é convenção estudada. Nada pode ser natural na Europa, lugar antigo e pouco selvagem. Para Daisy, viver é falar e fazer. Ingleses não se preocupam em fazer, seu ideal é a nobreza, e um duque passa a vida na inutilidade.
Na segunda história, são dois nobres ingleses que visitam Nova Iorque, e o tom cômico é maior. Basta dizer que eles temem não compreender a língua americana e morrem de calor no verão, pois para eles Nova Iorque está muito próxima do Equador !!!
Neste relato, os dois são ponto de atenção da sociedade de Newport, sociedade que se irrita ao constatar que um nobre inglês jamais comparece ao parlamento e nunca demonstra interesse por suas próprias ruínas históricas. Eles nada têm a dizer sobre nada. As americanas, por seu lado, fazem aquilo que as americans fazem todo dia e toda hora : compras ! Sim meus caros, em 1875 a grande atividade americana já era o consumo. E elas andam de lá para cá, toda tarde flanando, e comprando sedas, jóias, luvas, sombrinhas, botinhas, perfumes, quadros, flores, móveis, tapetes, vestidos, vasos, talheres e um imenso etc. Os homens trabalham e trabalham, mesmo os milionários, que não conseguem parar de fazer dinheiro. São todos terrivelmente ingênuos. Acreditam na democracia, na missão americana e em Deus. Pior, acreditam que a Europa é aquilo que leram em livros europeus. Sempre se decepcionam, e descobrem, como caipiras que são, que nada é melhor que Richmond.
A salientar a figura de Raymond, uma criança americana na Europa, que reclama todo o tempo da Inglaterra. Para ele o céu é nublado, as pessoas são feias, as casas pequenas e a comida sem sabor. Lugar bom é Poconotsy, onde existe o bom doutor Taylor, que tudo cura, e onde as estrelas brilham de verdade. Para ele, a Oak street é muito maior que Trafalgar e Picadilly juntos.
Assim como é hilário o modo como os dois nobres estranham o chuveiro do hotel ( imenso, a América é a terra dos hotéis e dos transatlânticos ) e ficam horas tomando banho.
O que notamos é que nada mudou na América. E é fascinante ver o nascimento do gigante, em seu auge de otimismo e juventude. Era óbvio o fato de que seu estilo de viver seria dominante no século seguinte, que toda cidade seria Nova Iorque e que toda mocinha seria Daisy Miller. Já os ingleses sumiram. Tornaram-se apêndices da América, pseudo americanos com a pose de nobres, ou cockneys que pensam estar no Harlem.
Além de mestre da psicologia, Henry James se revela aqui ( nestes seus primeiros sucessos ) um humorista digno de Wilde e um observador agudo daquilo que realmente importa. Ler estas novelas é prazer e informação, o que mais se pode querer ?

FREARS/CLAUDETTE COLBERT/BOORMAN/HITCHCOCK

OS IMORAIS de Stephen Frears com John Cusak, Anjelica Huston e Annete Bening
Entre 1990/1998 foi moda o filme de malandragem. Aquele tipo de filme que mostrava gente desonesta ( e muito charmosa ) em seu "trabalho" diário. Era um tipo de filme delicioso e este é dos primeiros ( e dos mais amargos e cruéis ). Frears, grande e irriquieto diretor, dirige com sua costumeira correção e apesar de Cusak não ser o ator ideal para o papel ( e aqui começa a amizade dos dois, que os levariam a fazer juntos " Alta Fidelidade" ) o filme sobrevive muito bem, graças ao excelente roteiro de Westlake e as perfeitas Anjelica ( um fenômeno ) e Anette ( linda e maldosa ). Diversão de alto nível. nota 7.
O GENERAL MORREU AO AMANHECER de Lewis Milestone com Gary Cooper e Madeleine Carrol.
Passado na China ( soberbo cenário labiríntico ) é uma aventura sobre americano que luta contra tirano chinês ( tirano de direita ). Impressiona o carisma do elenco conhecido, a fotografia expressionista cheia de sombras e um clima de suspense absorvente. O tipo de filme pop que justifica a existência do dvd e o resgate dos filmes dos anos 30. nota 7.
A OITAVA ESPOSA DO BARBA-AZUL de Ernst Lubistch com Gary Cooper e Claudette Colbert.
O roteiro de Billy Wilder e Charles Brackett é, talvez, o mais perfeito roteiro alegre já escrito. E quem dirige é Lubistch, o mais admirado dos diretores de comédia. O tema : na Paris da Paramount ( ou seja, é a Paris que deveria ter existido ), um americano muuuuito rico e muito ocupado, conhece numa loja, uma francesa de sangue azul, porém, falida. O pai dessa francesa é um malandro de marca maior. É lógico que os dois irão se apaixonar, é lógico que se detestarão no começo. E é lógico que o filme é maravilhoso ! Tudo funciona : Cooper está no auge do carisma, faz um americano como todo americano desde então pensa ser- bonito, esperto e educado. Claudette está belíssima e com um jeito de malicia ingênua exuberante. Todos os coadjuvantes brilham e as falas têm o cinismo alegre que Wilder sempre exibiu. Não tem um só momento arrastado, jamais parece forçado e corre leve como espuma. Se um filme fosse champagne, este seria um Dom Perignon. Nota DEZ !!!!! É uma obra-prima.
UMA HORA COM VOCÊ de Ernst Lubistch com Maurice Chevalier, Jeanette MacDonald e Genevieve Tobin.
Não tão bom. Mas bastante amoral : o marido ama a esposa, mas a trai alegremente com sua melhor amiga. A esposa dá o troco. É um musical de opereta, bastante austríaco, e isso quase estraga o filme. Chevalier, que foi super estrela, fala com biquinho. Os franceses até hoje pagam o pato : todos pensam que falar francês é fazer bico. Chevalier fazia bico, os franceses na verdade falam soprando fumaça ( como Jean Gabin ). È um filme antigo como carruagens ou valsas. Nota 5.
UM BOM ANO de Ridley Scott com Russel Crowe e Albert Finney
Um horror !!!!! O livro de Peter Mayle ( que me fez adorar todos os seus livros. Eu lí todos eles. ), é uma alegre e saborosa ode à Provence, terra de prazeres sensoriais. O personagem, no livro, é um homem meio insípido, que d escobre o prazer na mesa provençal. No filme ele é um hiper-yuppie, hiper ambicioso, hiper-chato. O filme é uma bomba!!!!! Scott e Crowe se tornaram amigos ao fazer Gladiador. Ambos adoram a Provence e seus vinhos e comidas. Tal região merecia algo melhor. nota 2.
REGEN de Joris Ivens
A vida transcorre na Holanda. ( Amsterdã ? Rotterdã ? ). Chove na cidade. Volta o sol. O filme ( 30 minutos ) é apenas isso. A chuva caindo e gente se abrigando. Água nas telhas e nas ruas, nos rios, no chão. Mas há tanta poesia aqui que chega a comover. Ivens foi um dos criadores do cinema holandês; este pequeno filme é mitológico. Merece sua fama. Nota 9.
JUAREZ de William Dieterle com Paul Muni, Brian Aherne e Bette Davis
O roteiro é de John Huston. Eis um fato raro : o filme é sobre Juarez, libertador do México, mas ele exibe seu rival, Maximiliano, como um homem tão fascinante quanto ele. Ambos erram, ambos têm boas razões. O filme é exemplar em sua visão multi-facetada da história. Faz o que CHE não faz, olha com coragem e isenção. Nota 7.
SALOMÉ de Ken Russell com Nickolas Grace e Glenda Jackson.
Russell foi diretor famoso nos 70/80. Famoso por sua ruindade e sua pretensão. Todos os seus filmes fazem força para chocar, para serem esquisitos. Se tornam "Joãozinho Trinta". Aqui vemos Oscar Wilde assistindo em sua sala a uma apresentação de sua peça Salomé. O ator que faz Oscar está ótimo, mas o filme é lixo oitentista da pior espécie. É afetado, metido, fake luxuoso, hiper gay e muito chato. Nota Zero!!!!!!
INFERNO NO PACÍFICO de John Boorman com Lee Marvin e Toshiro Mifune.
Atenção !!!!! Este filme mostra tudo aquilo que um diretor deve saber ! Dois soldados, um americano e um japonês, estão sós numa ilha do Pacífico. Brigam por água, por comida, por tudo. Conhecem o inferno máximo e acabam se aceitando ao tentar fugir da tal ilha. O filme é só isso : sem nenhum diálogo, os dois atores grunhem, brigam, sofrem e enfrentam o mar. Boorman, diretor inglês da brilhante geração de Anderson, Richardson e Schlesinger, dá uma aula de movimento de câmera, de ação, de clima. São duas horas que nunca cansam, que emocionam. Ele faz tanto com tão pouco !!!! Quanto aos atores... repito o comentário de Pauline Kael - " Um filme cheio dos lamentos de Lee Marvin e dos grunhidos de Mifune é como algo parecido com o paraíso de todo fã de cinema. " O filme é cheio de Lee e de Toshiro. Não precisa de mais nada. Viril, belamente fotografado ( Conrad Hall ) e com boa trilha de Lalo Schifrin. Nota 9.
DISQUE M PARA MATAR de Hitchcock com Ray Milland e Grace Kelly
O mestre pega uma peça de sucesso e a filma. Simples, sem ambição. Ele precisava de um sucesso e o conseguiu. O filme é perfeito em seu tom. Milland esbanja maldade elegante, Grace está linda e assustada e a câmera de Hitch desliza pelo cenário único sem nunca nos cansar. Entramos na trama, torcemos por Ray, depois por Grace, por Ray de novo e afinal aplaudimos o mestre por sua alegre genialidade. Alfred Hitchcock, como aqui, dirigindo sem esforço, só pra relaxar, coloca 99.999999% dos outros diretores no bolso do colete. Um filme para se ver, rever e sorrir de prazer. Nos extras, belo comentário do fã M. Night Shyalaman. Nota 9.
A VERDADE NUA E CRUA de Mike Chadway com Katherine Heigl e Gerard Butler
O roteiro poderia ter sido escrito por qualquer semi-analfabeto do Arkansas ( e creio que foi ). Tudo é falso, tolo, forçado e o pior, sem graça. Esse tal de Butler é tão mal ator que chega a ser cômico seu esforço para fazer alguma expressão. Não consegue. Tudo o que consegue é posar como se um anúncio de desodorante fosse o tema do filme. Para quem se dirige esta coisa ? Com certeza para aqueles que vivem em anùncios de desodorantes e de cervejas. O filme tem o valor de um copo de cerveja quente e passada. A atriz é bonitinha mas inócua. Nota menos mil.



O VIRUS DO TEMPO

Retirando a frase de seu contexto, e lhe dando outro sentido, um cara que escreve na Folha cita Nick Hornby : " este é o melhor tempo para quem gosta e se interessa por música". Sem dúvida que é ! Em nenhum outro momento eu teria acesso a tanta coisa ! De Cameron de la Isla à Marie Laforet; do blues mais obscuro ao pop mais despudorado, tudo pode ser conhecido, escutado e consumido. E lógicamente, prontamente esquecido.
Uma coisa muito estranha, e que jamais esperei, está ocorrendo : um vírus se espalhou entre pessoas com menos de vinte anos e com algum grau de informação e inconformismo ( os meninos não contam- tudo para eles é informação conformista ). Esses jovens são ferozmente saudosistas. Mas, ingenuamente, sentem saudade do que nunca conheceram. Idealizam.
Usam óculos grandes tipo Carnaby Street, calças modelo 70's e camisetas tipo rock'n'roll. Dançam como se dançava no Soho em 1967 e usam drogas que "expandem a mente", tipo Ken Kesey ou Ginsberg. Seus gurus são Che, Gandhi, Reich e Jung, e falam de Nietzsche como se ele fosse novo. O principal, escutam Led, Velvet, Sabbath e Iggy...
Desse modo, uma amiga minha de 20 anos adora Keaton e Murnau, e uma de 21 sente pena por não ter sido jovem em 1922. Outra queria ter sido fotógrafa de Warhol e outro queria ter pintado na Paris de 1900. Nunca o jovem foi tão saudosista ! O que aconteceu ?
Eu adoro Led ( embora não consiga mais o escutar. O Led só faz sentido enquanto vivemos no auge da euforia juvenil, depois é uma triste lembrança morta ), e ainda me emociono com Iggy e Velvet ( que são atemporais ). Mas eu vivi isso. Eu recordo deles alternativos, incompreendidos, como lembrança viva e maldita. Porém, quando um garoto de 15 anos tem por Dylan uma relação de guru e discípulo... bem, é como se nos meus 15 anos eu tentasse ser como Louis Armstrong ou Bing Crosby. Não dá !
Mas é aí que nasce o problema. O jovem informado vai escutar White Stripes, Primal Scream, Franz Ferdinand ou Artic Monkeys, e se tiver um pouco de senso perceberá que entre eles e o que se fazia quarenta anos atrás a diferença é quase nenhuma. Do primeiro disco dos Stones em 1964 para Sticky Fingers, seis anos mais tarde, a diferença é brutal. Mas entre algo gravado em 2003 e algo gravado hoje... onde a evolução ? Os Stooges de 1969 são tão diferentes de uma nova banda sueca de 2010 ? Iggy Pop, com 18 anos, em 2010, quarenta anos depois dos Stooges, seria um garoto em seu tempo. Mas Iggy em 1929 ( quarenta anos antes de sua época ) é impossível !!!!!
Quando eu era moleque me decepcionava com cada disco ( raro ) que conseguia comprar dos distantes anos 60. Eram cheios de chiados, mal gravados, não se ouvia a bateria. Ouvir o Cream, Yardbirds ou Kinks era um sacrifício. Mas veio o cd, e então veio o grunge que revitalizou as velharias. A molecada podia ouvir rock antigo com som de música nova. No cd dava para se comparar Ginger Baker com novos bateras, se podia finalmente ouvir direito Small Faces e Them. Tudo se reviu. Começaram então a compor novas músicas velhas e a montar modernas bandas retrô. O cd foi injusto com quem faz uma banda hoje : a informação mata toda novidade, o cara precisa concorrer com seus contemporâneos e ainda ser comparado com o passado que se tornou presente. É desumano. Cínicamente, o artista entrega os pontos. A repetição da repetição se refaz.
No cinema, com o dvd, a coisa é ainda pior. Um novo diretor podia chupar Renoir e Bresson à vontade. Onde assistir Renoir e Bresson ? Mas agora, nesta abençoada era de revivências, qualquer leigo conhece Renoir e Bresson. E esse jovem amante de cinema, que ao contrário de seu pai, pode ver TUDO e quantas vezes quiser, se torna um saudosista. Pois Renoir era antes um monte de manchas e riscos na tela, e hoje é, que bom!, um brilhante preto e branco. Mas a coisa é ainda mais complicada...
Harry Potter vive numa escola vitoriana cercado por magia medieval; a saga dos anéis já era coisa velha quando Plant gravou Stairway to Heaven; o Shreck é um ogro e Titanic é de um romantismo rosado típico da pior ópera dos idos de 1820. Se essa geração não é saudosista... e ainda vem Batman, com seu clima gótico/Alemanha, o Homem-Aranha, herói típico de 1964 e o eterno Bond, que teve como grande evolução diminuir o sexo e aumentar a violência ! Que moderno!!!!!
Leio que Paul Thomas Anderson, enquanto filmava Sangue Negro, assitia O Tesouro de Sierra Madre todas as noites. Foram sessenta vezes. Sierra é de 1948...
Tim Burton fez refilmagens de filmes velhos ( Planeta dos Macacos e Fábrica de Chocolate ), filmes de época ( Cavaleiro sem Cabeça e Sweeney Todd ), ficção científica antiquada ( Marte Ataca ), um poema de amor ao cinema antigo ( Ed Wood ) e outro a magia do tempo ( Peixe Grande ). Alice é a "nova" idéia.
Um filme sobre piratas, uma refilmagem de série de tv antiga, um filme independente gracinha que nada mais é que um filme hippie careta. Onde a novidade ? Mais um western que não dá certo, mais uma bio sobre alguém que viveu nos "bons tempos", mais um samurai...
Todd Haynes fazendo mais um filme sobre o passado, mais um Tarantino com cara de 1972.
Um filme inglês que imita o Scorsese do começo dos 70's, mais um musical fora de hora, um novo Bergman e um novo Cassavettes ( são os dois mais imitados hoje ). Um novo James Dean e uma nova Audrey. E Kane continua ganhando...
Que louco : as novas tecnologias trouxeram o passado para o presente e consequentemente sufocaram o futuro ! Se em 1959 existisse o dvd, as pessoas saberiam que Acossado de Godard era uma refilmagem "esperta" de velhos policiais baratos americanos. Com essa informação as pessoas veriam "Acossado" como o que ele é : excelente diversão, mas não como nova revolução.
A revolução acontece nos buracos negros da não-informação. No mundo onde o jovem sabe e olha tudo, a revolução se torna impossível, a originalidade torna-se inviável, a ingenuidade morre. A saudade daquilo que jamais existiu se faz rainha.
A minha foi a última geração "moderna". E falo isso com vergonha. Pensávamos que nunca mais haveriam bandas com guitarras, que ninguém nunca vestiria jeans e que tudo o que fora gravado antes de nossos vinte anos seria jogado ao lixo do esquecimento. Acreditávamos realmente que éramos a mais brilhante geração, os mais ousados, os mais doidos, os heróis do futuro. Queríamos zerar o mundo, começar de novo, esquecer. Sinto vergonha por termos sido tão pretensiosos e por termos desprezado tanta coisa boa ( odiávamos bandas que não mereciam ser odiadas ). Mas o tempo passou, rápido, e o que veio...
Suprema ironia : Nós e nossos filhos, hoje, idolatramos tudo aquilo que matamos. Eu não esperava...

DIAMOND DOGS- DAVID BOWIE. vocês são todos filhos disto!

O japão tentou se firmar no ramo de grandes magazines com as lojas Yaohan. Na inauguração até disco com o hino da loja eles deram. Tinha 3 andares e um playground no teto. No melhor Natal da história, meu irmão, um precoce, aos 9 anos ( inacreditável ) comprou Diamond Dogs. Eu, careta radical/ romântico melancólico, fui de Caribou, do Elton John, disco que tem ainda, a pior capa da história.
Uma criança de 9 anos escolher Bowie é fantástico. Mais fantástico é adorar o disco ! E na verdade, até o romântico/ caretão adorou mais os Dogs de David que o Don´t let the sun go down on me de Elton. Velvet Goldmine é biografia de uma estranhíssima geração.
Primeiro a capa. A primeira vítima do cd foi a capa de disco. Antes pensada em termos de pintura, de poster, de tela. Com o cd, tornou-se embalagem, maço de cigarros, envelope de carta. Como aconteceu com o cinema, que com o vhs deixou de ser pensado imenso e se tornou tela de tv, cheio de closes, uma pessoas filmada por vez e com poucos planos gerais. Pequeno...
Pois a capa de Diamond traz Bowie, muito andrógino, travestido de homem-cão, homem-besta e pelado. A capa é em sí um manifesto, mas o mais inteligente astro da história do pop, o mais culto e o maior dos aproveitadores, traz aqui um disco pesadelo, uma ópera do apocalipse, um disco dark e gótico, mas acima de tudo : muito rock'n'roll.
Sons absurdos de synth e o artista narra um futuro onde cães de diamante comem pessoas. Uma platéia fake ( tirada de um show de Gary Glitter, logo quem...) anuncia : isto não é rock'n'roll, isto é genocídio ! _ _ Pois em 1974 Bowie já anunciava a morte do rock, coisa que ele reafirmou pelos anos, muitos, seguintes. Só não acreditou quem não desejou saber.
A primeira é Diamond Dogs. A música, um rock tipo Stones, porém com guitarras fora de tom, barulhos dissonantes de fundo e letra de fim do mundo, não entrega o que será o disco. Pois a segunda faixa, Sweet Thing, é que mostra a que veio : melancolia glitter, arranjos que são de uma riqueza sinfônica, e Bowie cantando como nunca cantou. A música cresce como fogo entre ruínas, tem uma outra melodia dentro de sí-mesma, e volta num fim que é de uma complexidade espantosa. Após um minuto de ritmo sem sentido e hipnóticamente sexy, vem Rebel. Rebel.
Eu poderia escrever um livro sobre o que essa Rebel, Rebel significa. Ela anuncia as décadas seguintes. Tem um riff digno de Keith Richards, mas não faz parte do mundo de pirata cigano do deus stoniano. Rebel, Rebel é o que Oscar Wilde faria se nascido cem anos mais tarde, ou o que Lou Reed teria feito se fosse ´fã de Wilde. Na letra a frase : " quando você nasceu seu pai não sabia se você era menino ou menina... rebel, rebel, eu amo quando você dança... " A música anuncia a geração ( simbolista, bando de Wildes, Pessoas, Rimbauds ) que não se definiria mais. Os indefinidos, que jamais saberão ( e não querem saber ) se são caretas ou loucos, homens ou mulheres, idiotas ou geniais, bons ou maus. Felizes por serem tristes ou infelizes pela alegria.
A segunda parte do disco enterra de vez o rock'n'roll.
Rock'n'roll with me não é um rock. É uma melancólica balada de amor onde Bowie entrega uma de suas referências : Jacques Brel. Pois Bowie ama o pop romântico nada rock de Brel, de Dietrich, de Piaf e de Gainsbourg. Depois...We are the Dead. Tétrica e linda, com arranjo de sutileza imensa ( o disco todo é rico. Sons de synth, saxes mal tocados, percussõa que vem e desaparece e as vozes, afinadíssimas, de Bowie, triplicadas por mil ). We are the Dead é a filosofia de David : o que na voz de outro seria dor e desespero, com Bowie, inteligente demais para levar algo a sério, é comentário frio- discreta descrição.
1984 descreve, em ritmo de dança, o futuro. Que veio, acabou vindo, com vinte anos de atraso.
E nasce então Big Brother. Bowie foi acusado de nazista por falar a verdade na letra : " Você precisa de alguém para te liderar/ de alguém para seguir/ alguém que te domine/ você quer um big brother..." Melhor retrato de nossa era é impossível. Hoje, as pessoas pagam para serem comandadas, dissecadas, expostas, ridicularizadas, vendidas, desumanizadas. O som é de pesadelo de zumbidos, synths em sonho barroco, apocaliptico desbunde. O disco se encerra em frenesí de umbanda branca. Voodoo.
Diamond Dogs foi o primeiro objeto de arte com o qual tomei contato. Como os macacos em 2001 diante do monolito, em Dogs se anunciava tudo aquilo que eu iria amar por toda minha vida. Mais que um disco, Diamond Dogs é retrato de um mundo de absoluta confusão, de loucura. E é manifesto da genialidade do maior dos "gênios" do rock'n'roll. Bowie sempre soube tudo. Diamond Dogs é completa genialidade erudita.

JOHNNY GUITAR/DE MILLE/JOHN FORD/THELMA E LOUISE

HOMEM SEM RUMO de King Vidor com Kirk Douglas
Uma quase comédia num quase perfeito western. Kirk está exuberante e o filme, de beleza deslumbrante, seria perfeito não fosse seu final apressado. Vilões muito bem construídos e ação constante fazem deste um filme classe a. Vidor, diretor mito, saiu-se bem, mais uma vez. nota 8.
KISMET de William Dieterle com Ronald Colman, Marlene Dietrich
Ver Colman na tela é sempre um prazer e Marlene é mais que isso. Dieterle foi ator na Alemanha e é mais um desses emigrados que fizeram a glória de Hollywood ( Lang, Wilder, Preminger, Zinnemann, Wyler, Ulmer, Sirk e tantos fotógrafos e maestros ). O filme, fantasia árabe sobre o rei dos mendigos, é encantador. Cenários imensos e bem fakes e um roteiro que é uma bobagem divertida. nota 6.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS de Luiz Villaça com Maria de Medeiros
O neo-realismo ainda rende bons frutos. Movimento mais importante de toda a história do cinema, o neo-realismo de De Sica, De Santis, Rosselini, Visconti, Lattuada, Germi e tantos mais, dá o tom neste simpático filmezinho. Medeiros é além de boa atriz uma figura simpática e o filme agrada por sua verdade. 6.
O GÊNIO DA MÚSICA de Karl Hartl
Feito na Austria durante a segunda guerra, esta bio de Mozart o mostra mais real que o histérico filme de Forman. Em Amadeus tudo brilha, mas tudo é falso. Mozart não foi aquele tolo adolescente futil, e Salieri não era vilão. Neste filme, o gênio está próximo do que deve ter sido : um dandy. Os cenários são belíssimos e sua morte é como deve ter sido. De estranho o fato de mostrarem poucas obras do mestre. Para quem gosta de música, é obrigatório. nota 6.
JOHNNY GUITAR de Nicholas Ray com Joan Crawford, Mercedes MacCambridge e Sterling Hayden.
Não é um western. É um dramalhão, gaysíssimo, afetadíssimo, operístico, passado por acaso entre cowboys. Joan, dona de saloon, é insanamente odiada por Mercedes, lésbica de paixão mal resolvida. Todos os homens no filme são fracos, as mulheres mandam. Johnny é um homossexual arrependido e as falas são hilárias. Nicholas filmou com ousadia e espírito de sacangem, os franceses levaram a sério, e na época, Godard à frente, o chamaram de obra-prima. Os americanos, que entendem de western, nunca entenderam este filme. É uma deliciosa brincadeira entre pervertidos talentosos. Filme amado por Almodovar. Inacreditávelmente cara de pau. Exagerado, escandaloso, todo errado e de talento bizarro. nota 7.
PAGAMENTO FATÍDICO de John Farrow com Glenn Ford, Patricia Medina e Diana Lynn.
Outro talento esquisito é o de Farrow. Este muito divertido noir feito no Mexico, entre ruínas indígenas, tem todos os clichés. Tudo soa a falsidade, mas tudo é hilário. A fotografia é um manual de foto noir, as falas são tiradas de Bogart. Mitchum ou Ladd; as situações são Hammet ou Chandler de terceira. Mas o filme prende. Tem cenas inacreditáveis em sua cara de pau, mas são fluidas, leves, elegantes. O tipo de filme pop adulto que os americanos pararam de fazer. nota 7.
MULHERES E HOMENS de Cecil B. de Mille com Claudette Colbert e Herbert Marshall.
Dois casais se perdem em floresta. Assistimos sua fuga entre feras, pântanos e selvagens. Colbert era de uma beleza exótica, magérrima, elegante. O filme, feito antes do código de censura, tem até banho em cachoeira ! De Mille, inventor do filme espetáculo, do filme circo, oferece aquilo que o povo quer : romance, aventura, violência e sexo. Mas ele pode ser melhor que isto. nota 6.
O SINAL DA CRUZ de Cecil B. de Mille com Frederic Marsh, Claudette Colbert, Elissa Landi e Charles Laughton.
Inacreditável. E maravilhoso!!!!! Diversão gigantesca sobre cristãos perseguidos por romanos. Tem feras comendo gente, um gorila atacando moça nua, jacarés atacando outra cristã nua, gladiadores, elefantes pisoteando gente, dúzias de leões e romance proibido. Tudo filmado com ritmo, competência e falta de vergonha. Marsh sofre por amar cristã, Landi é a cristã; Laughton, o grande ator, cria um Nero hiper bicha-louca: seus gestos, olhares, a barrigona sobre almofadas, se contorcendo no coliseu com seu escravo nú, comendo uvas fazendo biquinho, ateando fogo à Roma entre gritinhos de tédio...é hilário e genial. Seu Nero criou tudo o que entendemos por camp. Claudette toma banho em leite de burrinhas e desfila, linda e meio nua, pelo filme. A rainha que faz se parece com uma dondoca mimada. De Mille é o diretor que criou a imagem cliché do que é ser um diretor : megafone na mão, botas, cadeira escrito "diretor" e gritos no set. È dele a imagem do hiper-diretor que pede : quero amanhã cedo: trinta girafas, cinquenta elefantes e cem leões. E também trezentos cavalos e cinco mil figurantes. A Paramount lhe dava tudo. Ele foi o inventor do super-espetáculo: circo para o povo. Religião e sexo, mistura infalível. Este filme é totalmente delicioso!!!!!!! nota 9.
WAGON MASTER de John Ford com Ben Johnson, Harry Carey jr, Joanne Dru e Ward Bond
Por que Ford fazia filmes ? Fazia filmes para juntar seus amigos e ir para o campo. Alojado por lá, longe de estúdio e de pressões, ele jogava cartas, cantava, cavalgava, e filmava nas horas vagas. Seus amigos eram seu elenco. John Wayne, James Stewart e Henry Fonda eram as estrelas que às vezes ele usava. Mas seus amigos eram os atores secundários. Gente como Victor McLaglen, Ward Bond, Harry Carey, Jane Darwell, Andy Devine e tantos mais. Irlandeses de alma, como Ford. Este era seu filme preferido. Sua história ? Dois cowboys ajudam caravana de mormons a chegar a seu destino. No caminho encontram troupe mambembe e bandidos. O filme despreza a aventura, seu interesse é a imagem pura : carroças sendo puxadas por cavalos, paisagens gigantescas, fogueira com música, silêncio. Há uma cena em que vemos o deserto e as carroças... voce pensa que Ford vai cortar, mas ele deixa a cena se esticar e esticar... e nós aplaudimos sua genialidade discreta. A trilha sonora, canções folk, é coisa de arrepiar. Os atores são nossos amigos, amamos seus rostos. O filme é de gênio, é viril, simples, puro, poético. Curto, modesto em sua pretensão, ele é imenso em seu resultado. Ford é rei. Enquanto houver cinema será rei. Este filme é como uma epopéia. nota Dez.
OS ÚLTIMOS MACHÕES de Andrew Mc Laglen com Charlton Heston e James Coburn
Péssimo. Tenta ser Peckimpah. Violento e amoral. Mas é um Peckimpah sem a loucura genuína de Sam. È forçado. nota 2.
O MUNDO DE APU de Satijajit Ray
Chegamos ao final da trilogia de Apu. Ray criou com eles o cinema artìstico indiano. Antes dele, tudo era Bollywood. Na parte um, Apu é criança. Na 2 é adolescente e aqui é jovem adulto. Este filme me lembrou Truffaut ( Ray filmou este um ano antes da estréia de François ). Apu ama, tenta empregos e sofre uma tragédia. O filme é o menos bom dos três. O problema da trilogia é que o primeiro é tão original, tão belo, tão forte, que os outros sofrem na comparação. Este é o mais comtemplativo. nota 7.
LASSIE COME HOME de Fred M. Wilcox com Roddy Mc Dowall, Donald Crisp, Elsa Lanchester, Elizabeth Taylor, Dame May Whitty
Este é o filme que inventou o gênero "filme de cachorro". É de longe o melhor. Por vários motivos : por ser assumidamente romântico, pelo fato do cão se comportar como um cão, por fazer chorar sem apelar, por não ser bonitinho e fofinho. Ele é belo e sincero. O elenco é fantástico e vemos Elizabeth aos 11 anos, já linda e cheia de carisma ( o que é carisma ? como pode isso ? Ela é uma star há sessenta e seis anos !!!!!! e sobreviveu a Michael Jackson, seu amigo.... como pode ? Elizabeth é pré Sinatra, pré Gene Kelly, pré Elvis ! E está viva ! Sã e lúcida. É uma força da natureza, uma heroína e talvez a melhor atriz que o cinema já teve. Basta ver "Quem tem medo de Virginia Wollf" e aplaudir. ). Lassie é adorável, puro, comovente e encantador. O molde do que veio depois ainda é o topo do gênero. nota Dez!!!!!!!!
THELMA E LOUISE de Ridley Scott com Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel, Brad Pitt e Michael Madsen.
A primeira hora é um pé no saco. Um banal filme amarelado de estrada com crime. Mas de repente o filme vai enlouquecendo, se tornando livre, inconsequente e nos pegamos rindo. Torna-se comédia, maravilhosa comédia. Scott foi sábio, nos faz mergulhar no mundo surreal em que elas mergulham. Ao final, o mundo se torna um tipo de "Alice no país das maravilhas" adulto. Elas assumem a loucura, e nós nos apaixonamos por elas. Não vou falar de Susan. Ela é sempre divina. Mas Geena tem aqui seu grande momento: seu rosto ao contar à amiga a transa com Pitt é fantástico. Alegre, boba e desamparada. O cinema deveria ter olhado Ridley com mais reverência. Não é qualquer um que faz isto e ainda Blade Runner, Aliens I e Os Duelistas. O final deste filme, um vôo rumo à liberdade é de antologia. nota 8.