primavera de poesia- stevens, heaney e auden

De todos os autores que recentemente ganharam o Nobel, creio que nenhum se tornou menos conhecido que Seamus Heaney ( prêmio em 1995 ). Esse poeta irlandês ganhou o Nobel muito cedo em sua vida, precipitadamente, e permanece tão pouco lido como o era antes da honraria suéca. Talvez o motivo seja o próprio fato de ser poeta. Derek Alcott também venceu nos anos 90 e está ainda mais esquecido. Pois Heaney é um bom artesão da palavra. Fala sobre a terra úmida da irlanda, sobre sinais de tempo, a mudança das eras, o simbolismo da ruína. Longe de ser um gênio, e às vezes exagerando numa realidade "real" demais, ele deve ser lido por aqueles que pensam erroneamente que a poesia não cabe mais neste universo tão pé no chão. Heaney é pé no chão. Adora descrever minerais, raízes, solos, pântanos. Sua poesia é sólida.
Menos sólido é Auden, um não premiado inglês, mas de longe, o mais lido dos três. Auden foi moda nos anos 30/40 e viveu até os anos 60. Fez parte da boa geração de poetas ingleses que teve além dele, Spender e Day-Lewis ( pai do ator ). Políticos ( todos foram radicais de esquerda, embora Auden se tornasse mais conservador com a idade ), Auden tem o dom da mais refinada musicalidade, do brilho que jamais se torna brilhareco e de criar versos que grudam na mente, que são cheios de beleza, mas nunca de pieguice. Auden é obrigatório para quem gosta de poesia. É um dos grandes. Permanecerá. Mas não é gênio.
Gênio é Wallace Stevens. Gênio puro, gigantesco, titânico.
Pouco, muito pouco conhecido fora dos países de língua inglêsa, é considerado por autores e críticos o melhor poeta do século vinte, superior a Eliot, Pessoa, Lorca, Rilke ou Neruda. Seu único igual seria Yeats, mas Yeats não é bem século vinte, apesar de ter morrido só em 39, Yeats tem espírito típico de 1890. Para mim, Yeats fora, Stevens tem como rival apenas Eliot, e talvez Fernando Pessoa. E como os dois citados, Stevens não parecia poeta ( e quem parece poeta ? Só os charlatães se parecem com poetas. Eles usam o molde Byron-Shelley-Keats até hoje. Excessos, sofrimentos e rebeldia, a imagem apropriada pelo rock ).
Wallace Stevens nasceu em família rica do leste americano. Trabalhou em firma de seguros na qual se tornou vice-presidente. Foi casado com uma única mulher que tinha sérios problemas mentais. Jamais viajou a Europa e não frequentava escritores. Esnobou a fama e sua única diversão era jantar em bons restaurantes. Tinha a aparência de um executivo e era frio e formal. Mas escrevia, nas horas livres, como um mestre. Tinha o talento, raro, de escrever racionalmente sobre o inefável. De tocar o eterno com ferramentas lógicas, voar às alturas sem nunca perder o controle. Viveu 79 anos, até 1955. Já era cultuado em vida, mas nunca foi uma estrela. Não queria. Poesia era para ele um compromisso sério. Consigo mesmo.
POR QUE LEGAR AOS MORTOS O QUE É SEU ?
O QUE É DIVINO, SE SE MANIFESTA
SÓMENTE EM SONHOS, SOMBRAS SILENCIOSAS ?
POR QUE NÃO ENCONTRAR PRAZER NO SOL
NO ODOR DAS FRUTAS, BRILHO DAS ASAS VERDES,
EM QUALQUER OUTRO BÁLSAMO TERRENO,
TÃO CARO QUANTO O PRÓPRIO PARAÍSO ?
É NELA QUE O DIVINO HÁ DE VIVER...

Tudo em Stevens tem essa valorização do simples, do cotidiano, da vida agora, um agora que é atemporal.

TENS DE VOLTAR A SER IGNORANTE
E VER COM OLHO IGNORANTE O SOL
E VÊ-LO COM CLAREZA EM SUA IDÉIA.
JAMAIS SUPONHAS UMA MENTE INVENTIVA COMO FONTE DE IDÉIA
NEM CRIES PARA ELA UM SENHOR VOLUMOSO ENVOLTO EM FOGO.

Estes são versos de "APONTAMENTOS PARA UMA FICÇÃO SUPREMA", o único poema comparável a "QUATRO QUARTETOS" de Eliot. Um poema que mostra, em imagens de suprema elegância e aterradora beleza, o segredo e o abismo da vida. Mas há mais...

SEMPRE PODE HAVER TEMPO DE INOCÊNCIA,
NUNCA LUGAR. OU, SE TEMPO NÃO HOUVER,
NEM POR NÃO SER COISA DE TEMPO NEM LUGAR,

EXISTENTE COMO IDÉIA APENAS, CONSCIÊNCIA
QUE REPELE O DESASTRE É MENOS REAL.
PARA FILÓSOFO O MAIS VELHO É GÉLIDO,

HÁ OU PODE HAVER TEMPO DE INOCÊNCIA
PURO PRINCÍPIO, CUJA ESSÊNCIA É SEU FIM....

Em sua fase final, Wallace Stevens nos diz:

... E NO ENTANTO NADA MUDOU ALÉM DO QUE É IRREAL,
COMO SE COISA ALGUMA TIVESSE MUDADO.

Nada define melhor o que é a genialidade, que a capacidade de dizer com objetividade aquilo que nós não sabemos "já saber". O gênio é um farol que dá luz às rochas e recifes que sabíamos estar lá, mas que não poderíamos ver sem sua luz.
Wallace Stevens é um gigantesco farol. O mundo ansia por sua luz. Ele hoje me vicia, fala aquilo que creio, conversa comigo ao sol. Existe maior elogio a um escritor que este ? Ele conversa comigo revelando a mim mesmo o que não conhecia sobre eu. Stevens, que eu lí em 2000 pela primeira vez e entendí pouco, se mostra à mim inteiro, agora, em 2009. Neste começo de estação que me promete vida livre e nobre, compreendo tudo o que ele diz. Seu amor ao sol, às plantas, aos dias que passam, a tudo que é real. "E o que é real nunca muda."
Wallace Stevens é real. Sólido e superior a quase tudo que há para ser lido. Compreendeu a vida, profundamente. Entendeu que um paraíso onde os frutos não se tornassem podres e onde tudo fosse para sempre vivo, seria o pior dos pesadelos. Ele compreendeu que o que entendemos do homem e da vida é ficção. Que o real nos é interditado. E acima de tudo, ele revelou o sentido da poesia, única língua que ilumina a verdade e que fala como o sol, a grama e o mar falam. Pois são eles que falam a verdade.
Lerei e relerei Stevens pelo resto de meus dias. È bálsamo, é quente, é pra sempre.

SHOPPING CENTER E SERRA DO MAR

Neste ano o Natal no shopping vai ser como sempre é : nem frio nem quente. Não vai chover e nem irá fazer sol. Todas as lojas terão a idade que sempre tiveram : idade nenhuma. E as pessoas serão exatamente as mesmas. No shopping não existe tempo. Tudo parece ser eternamente novo, limpo, sem cheiro. O shopping não fede e nem cheira. O futuro deve ser assim : clima, luz e tempo estáveis. Vitrines e praças de alimentação. Gente andando sem sair do lugar. Sorrisos ocos e filmes frios. Seus olhos, vendo uma diversidade que é sempre a mesma, adormecem e seu cérebro nada indaga.
Estive em Paris três vezes. E em cada vez que fui fiquei mais chateado. A cidade tornou-se plástico saneado. Perdeu sombra, perdeu odor, perdeu seus dentes sujos e sua roupa rota. Deixou de ser poesia e virou Miami. O mundo vira Miami e Miami é um shopping. Ainda existe a Sacre Coeur, ainda há Notre Dame e o Bois, mas Pigalle virou piada e Montmartre é ficção. O que lembro são túneis de metrô, avenidas com lojas e o horizonte com prédios banais. Minha Paris é morta.
Mas a Serra do Mar não.
Ela é a serra que conhecí aos 6 anos, dentro de uma kombi, chovendo, descendo pela estrada velha e rindo rindo rindo... Ela está alí, gigantesca, pronta para ser admirada. ( Não me diga que voce é desses idiotas que passam por ela correndo e de olho somente no carro da frente... voce não vive então... ).
Ela é a mesma de quando meu pai veio do Rio, via Santos, em 1950. Os mesmos contornos, os mesmos abismos e o mesmo verde. ( Talvez mais verde que hoje, mas a arquitetura é a mesma ). O ar que ele respirou continua lá e suas cachoeiras viram meu pai as admirando. Agora eu as olho também e me apaixono por elas.
A serra me chama. Quando passo por ela não há amigo ou amor que me distraia. Meus olhos são dela e sinto um apelo de me jogar em seu mato e me perder para sempre. Morrer na serra seria belo. Mas não no asfalto que não é serra, e sim na mata, que é vida.
O tempo inexiste alí. O que viram os bandeirantes eu vejo agora e sei que todos eles se apaixonaram por sua cor. O pássaro que voa e o outro que canta são desde sempre os mesmos. E meu espírito se agiganta quando vê o sol sobre o vale onde toda a paz é possível.
Você jamais entenderá o que sinto. É meu lugar. Tenho a sorte de ter meu lugar mais precioso, tão perto. Não há Bahia, Paris, Ibiza ou Berlin que lhe façam frente. Nada é mais mistério intricado. Vejo em sua trilha o nascimento da vida. Vejo um primata que sou, um mamifero que capturei, uma árvore que adorei. É minha mãe, meu deus e meu túmulo. Pois minhas cinzas para lá serão deitadas. Para sempre estarei aos pés de suas árvores e alimentarei sua vida e serei chuva. Até o para sempre.
Mas tem o mangue, lá embaixo. E preciso me conter, dentes cerrados, para não me jogar feito louco mangue adentro. O cheiro e os caranguejos. Os urubus que eu adoro. Menino vendendo banana, bicicletas... eu amo tanto tudo isto que chego a enlouquecer de alegria. Se tivesse coragem eu faria um barraco e viveria na encosta. Ouvindo a chuva na telha. O cheiro do mato e da terra molhada. Nada é mais bonito.
A serra do mar é a coisa mais sagrada do mundo. Quando Platão esteve por aqui ela lá estava. E quando Shakespeare morreu ela era o que vejo hoje. Um pássaro negro enorme que voa e pousa e canta. É aquele. É o mesmo. Quando desço no amanhecer e sinto o calor do novo dia. Ou quando o frio do inverno invade gelado minha roupa. A neblina úmida e a garoa que nunca passa. O trem e as fontes. E lá, o mar...
Tirem a serra do mar, tirem o mar da serra, tirem deste mundo este lugar e nada mais me consolará. É o seio cheio de leite. Eco do meu riso. Nada foi meu amor maior e nada me é mais precioso. Eu morreria e mataria por ela. Pois eu vivo, sempre, com ela.
Então deixe que isto continue a ser um anti-shopping. Pois aqui o clima é sempre o que não se controla. E aqui as peruas e os playboys não sobrevivem. Tudo é gasto, sem brilho e com cheiro. Paraíso de insetos e de febre, úmida fonte de inesperado. Anti-shopping. Anti-Paris. Nada é racional em sua mata e nada foi nunca replanejado. O que ví aos 6 vejo aos 40 e verei aos 80. As ruas de suas árvores são indomáveis e seus habitantes insistem em não se mudar. A serra repele o plástico e não ambiciona Miami. Por mais que você judie dela, é a mesma.
Me deixe pensar na Serra do Mar. Sonhar com a Serra do Mar. Respirar seu ar e sentir sua chuva. Um dia terei a coragem de me jogar em seu verde, de viver em seu mundo e de me deixar ficar em seu calor. Nada me é mais precioso. Nada me faz mais feliz. Nada é melhor. Minha Irlanda tropical, meu cinema de verdade, minha sinfonia sem dono. Amar a serra é amar a vida. Deixe-me lá então. Esqueça-me lá. Quero ser ela e que ela seja eu. Correr até dormir nela. Ter seu cheiro meu. Crescer nela e chorar por ela. Me deixe ser a serra. Me deixe. Pois a serra é meu mundo, meu mar e meu sempre. E ela me chama. Escuto sua voz sempre. Eu vou. Já.

AUSTERLITZ - W.G. SEBALD

Dois meses atrás, mais ou menos, lí e comentei outro livro de Sebald, "Vertigem". Contei que o descobri numa muito entusiástica coluna de Marcelo Coelho em que ele dizia ser o autor alemão " o único grande autor da atualidade ". Com este segundo livro que leio, "Austerlitz", descubro, afinal, o porquê de tão grande conceito. Sebald é gigantesco. Em tempos de formigas que escrevem sobre seu diminuto umbigo, Sebald alça vôo e encara de frente o cosmos da existência. Ele é o autor central dos últimos trinta anos, talvez quarenta. Pode ser colocado ao lado de Thomas Mann ou de T.S. Eliot como antena de seu tempo, autor de uma preciosa radiografia de nossa alma.
O livro tem fotos que ampliam a narrativa e não tem nenhum parágrafo. Um homem, Austerlitz, conta ao autor, em encontros esparçados, em Paris, em Londres, em Praga, sua história, a história de sua família, a história da Europa, a nossa história ocidental. Pois sutilmente percebemos que Austerlitz é a consciência européia, a alma do ocidente. E assim, cada paisagem encontrada, cada nome citado, cada viagem feita é uma epopéia, uma odisséia, uma guerra e uma paz. Tudo vai se encaixando como um vitral : Napoleão, Aldous Huxley, Evelyn Waugh, O País de Gales, a feiúra belga, o colonialismo, Fred Astaire, Bergman, Alain Resnais, os mochileiros, Balzac, cemitérios, museus, estações de trem, metrô, judaísmo, memória, tempo, morte, mariposas, escadas, bibliotecas, guerras e mais guerras... Na narração não existe tempo. Sebald não crê no tempo. Para ele, passado, presente e futuro estão todos vivos aqui, agora, e para sempre.
Não pense que o livro cheira a lição de história. A narrativa é muito íntima, pessoal, discreta. Você precisa pescar os significados maiores, interagir com o autor, trabalhar e se tornar ativo. Se você nada souber sobre a história ( não é vergonha, você é apenas uma vítima, diz o livro ), mesmo assim Sebald o impressionará. Seu estilo, uma espécie de Proust da era insensível, é hipnótico, possui uma voz de sonho, de delírio e de pesadelo. Sebald consegue unir Proust à Kafka, Mann à Joyce. Um mestre. Austerlitz é um labirinto.
Toda a peregrinação sem rumo de Austerlitz ( ele é um mochileiro ) se revela uma cega busca pela memória. Austerlitz tem sintomas. Ansiedade e uma sensação de não existir, vaga e cada vez mais insistente. Existem lapsos em sua mente, coisas que ele não quer encarar. Austerlitz luta contra sua memória. Austerlitz quer esquecer. Ele quer não-ser.
Mas o seu legado lhe assombra em fotos, em quase-recordações, em revelações. E ele persevera. Precisa remendar sua alma, unir o que foi rompido, olhar as chagas para poder superá-las. Austerlitz precisa existir. Nós vamos com ele. Árdua jornada. O livro é um poço.
A Europa que nos é mostrada é casa de horror. Gente em constante mudança, desenraizada, sem identidade, com suas paisagens virtuais, sua Novaiorquisação, seu histérico pavor de tudo o que é real. Pois os europeus vivem, ainda e para sempre, a loucura da segunda-guerra, o gueto em que se tornou o continente, confinados em hiper-funcionais zoos, com sua racionalidade falível, fugindo de tudo que lhes desperte a memória, fugindo e se imbecilizando, se acovardando mais e mais, sendo vaquinhas em fazendinhas alemãs, sendo anti-literatos em Paris, sendo mortos-vivos em Praga, sendo fantasmas em Gales. Mariposas secas. A Europa é um quadro de borboletas secas.
Sebald é católico. Não é mais um autor judeu nos recordando o holocausto. Ele vê esse crime, um crime que define tudo o que somos e seremos, não como vítima direta, mas como alguém que paga pelo erro cometido. O homem chegou a um nível tão hediondo de maldade pura, produziu um pesadelo tão perfeito, tão racionalmente bem feito, revelou-se possuidor de um instinto tão destruidor e sádico, que nunca mais poderemos olhar para nosso ser com a inocência que havia até antes dessa trágica noite. Somos, todos nós, espectros que nasceram nesse mundo assombrado. Não podemos olhar para trás. O medo nos paralisa. Derrubamos tudo o que é passado. Fazemos de novo. Negamos e interiorizamos. Neurotizamos e transformamos em sintoma. Fugimos da terapia.
Negando 1939, matamos 1900, 1870, todo o passado. A bela Europa se vai. Para não encarar o trauma, perversamente, matamos tudo de melhor também. Austerlitz esqueceu ser judeu. Esqueceu ter nascido em Praga. Esqueceu seu pai verdadeiro. Austerlitz anda de mochila, sem rumo, mundo afora. Nada constrói, nada deixará, seus passos não se gravam no solo. Austerlitz ao não rememorar deixa de existir. A Europa é uma sombra. E nós, ocidentais, nos guiamos por fumaça. Tudo que nos encanta é ilusão. Nossos passos não ecoam. Ninguém lembrará desta geração. Nossa época será vergonha do futuro. Treva medieval. Sebald descreve a arquitetura européia com detalhes que nos fazem tremer. Seu olhar pode dissecar tudo. O amor nesse mundo é apenas um consolo. Tornou-se um ambulatório. Amamos para esquecer quem somos. Tudo neste mundo é esquecimento. O amor que foi fonte de coragem tornou-se usina de covardia. Quem ama deseja nada sentir. Viver no colinho quente. Entregar sua vida a outro. Deixar de ser.
Sebald morreu em 2001, acidente de carro. Um homem com tal mente ter encontrado a morte na estrada é de uma assustadora coerência. Foi um quase-gênio. Num mundo que detesta toda originalidade ser um quase é o máximo a que se pode chegar. O futuro esquecerá nossa medíocre arquitetura, nossa futil música e nossos livros umbigos. Mas se lembrará de Sebald e deste livro. Seu nome sobreviverá.

buster keaton e fred astaire, anjos em tela de prata

Creio que foi Roger Ebbert quem fez a comparação entre Chaplin e Keaton. Enquanto Chaplin ( que é genialmente humano ) pede todo o tempo nosso afeto, Buster Keaton simplesmente trabalha. O vagabundo de Chaplin nos chantageia. Ele sofre e se encolhe, e é alguém que poderia ser um carrapato em nossa consciência. Keaton nunca nos chantageia. Não sentimos pena e jamais choramos por ele. Buster nunca desiste. Seu "cara de pedra" luta pelo amor, luta pela vida e trabalha arduamente por seu objetivo.
Todos os seus filmes mostram um homem construindo seu destino. Ele começa o filme numa situação X, e o encerra em situação nova, obtida por esforço e uma fé ingênua na vida. Buster Keaton, ao contrário do muito pessimista Chaplin, é um otimista nato. Seu rosto jamais sorrí, mas sua alma é feliz.
Seus filmes sobrevivem então, porque atrás de seu maravilhoso ritmo circense, atrás da bela presença atlética de um ator de carisma imenso ( houve ator mais fotogênico ? ), persiste o testemunho de um herói, de um lutador, de um teimoso. Assistir seus filmes é observar um anjo, real e possível, em ação.
Amar Buster Keaton É AMAR O QUE EXISTE DE MELHOR NO SER HUMANO.
Como acontece, em outro universo, com Fred Astaire.
Astaire tinha tudo para não ser uma estrela. Era feio, envelhecido precocemente, pouco sensual e com um jeito meio snob de ser. Mas exatamente por ser tão fora dos padrões, tão etéreo, ele se fez uma imagem irreal. Fred Astaire é ficção. Ele e seus filmes são fantasias tão distantes da vida crua e sólida como o são os sonhos e os delírios de amor.
Os cenários são sempre brancos. Paredes, móveis, tapetes, tudo é branco e prata. Os personagens dormem em cetim e seda, passam o dia com champagne, caviar e limousines. O único objetivo é seduzir ou ser seduzido. E todos falam como brilhantes autores de comédias de situação dos anos 30. É um mundo sem dor, sem dinheiro, sem tempo e sem mágoa. Mas nos seduz, por ser o mundo em que vivem nossos sonhos mais persistentes, nossos desejos atemporais.
Não nos vemos em Fred. Mas adoramos observar aquele ser inefável falar, cantar e dançar. Quando ele dança, voa. Quando canta, ensina. Astaire ensina um refinamento de sentimentos possível, ele ensina um modo de se viver com prazer sem hedonismo futil. Fred Astaire dá lições de filosofia sem jamais afetar intelectualidade. E é outro anjo. De inocente sedução.
Quando Wenders fez em 1987 ASAS DO DESEJO, ele usou Columbo, o personagem de tv de Peter Falk, como símbolo de um anjo contemporâneo e possível. Pois Buster Keaton e Fred Astaire ( e também Audrey Hepburn, mas Spielberg a fez "anja" em Always de 1991 ), seriam anjos de verdade. Ambos não parecem deste mundo. Parece que jamais existiram, que não tiveram biografia, que não morreram. Imaginar Keaton mau e vaidoso ou Astaire vingativo e mesquinho é impossível. São afáveis como bons pensamentos e possuem um segredo que se foi com suas vidas.
Assistir seus bons filmes ( e são dezenas ) é entender até onde o homem pode alcançar. Não compreendê-los é como perder um sentido, é como ser cego para aquilo que é melhor. Vive-se menos sem esses alados seres de prata.
Uma nova geração, gente de 18, 19 anos, os cultua.
Nem tudo está perdido.... Viva !

BRAZILYA, ALEMANHA E A RAZÃO

Lendo um livro de Peter Gay sobre Mozart ( Peter é o cara que escreveu a melhor bio sobre Freud. ), descubro que a Alemanha que conhecemos não é a Alemanha de verdade. É virtual. Até o fim do século XIX, Alemão eram os habitantes de lugares como Munique e Frankfurt, e que Praga e Viena eram parte desse germanismo. Ser desse mundo era ser parte da terra do romantismo, da filosofia e da música. O caráter alemão era aquilo que hoje entendemos como grego-clássico, uma incessante busca por beleza e por conhecimento. Era um mundo de muito otimismo, de alegria exaltada e de romance. Cafés, cervejarias, montanhas, rios azuis, bailes e poemas. Esse universo é que nos deu Goethe, Bach, Beethoven, Mozart, Schiller, Kant, Novalis e Wagner. Quando surgem Freud, Nietzsche e Rilke esse país já está agonizante. Como ?
A unificação da Alemanha, a união da Baviera, da Saxônia, de Weimar e de todos os seus estados foi feita sob a liderança de Bismarck e com dinheiro da indústria pesada. A Alemanha nasce para ser líder, nasce em modelo Prussiano, e a Prussia, estado de competição, de disciplina, estado militar, sufoca e mata as outras Alemanhas, nações que nós jamais conhecemos. ( E sob sua influência a alegre Viena e a sensual Praga se afogaram em burocracia e preconceito. ) O estado Prussiano só poderia desembocar em duas guerras e numa esquizofrênica divisão.
Falo isso para dizer que Brasília é a Prússia do Brasil. Nestes dias de Sarney e Renan, Lula e Collor, vejo na tv aquele corredor que percorre o congresso nacional. É um túnel arredondado, feio, labiríntico, Stalinista. Lembra um bunker, um metrô, um esconderijo anti-povo. Herr Niemeyer criou uma pequena Prussia árida, onde todo seu concreto lembra opressão, retidão de uma marcha rumo ao futuro, a um futuro prussiano. Nada em Brasilya lembra o Brasil. Nada de carioca, de baiano, de mineiro ou de bandeirante. Nada. Brazilya tem a retidão da ordem unida, do uniforme, do inumano, do nada absoluto. E o país, pobre Weimar, se entristece nesse bunker subterrâneo. O Brasil morreu. Hoje é Brazilya.
Gosto de me dizer iluminista. E sou. Foram eles que me forjaram. Mas ao matarem a ingenuidade da religião e colocarem a razão em seu lugar, jamais imaginaram que a razão se mostrasse tão incompetente para dar ao homem aquilo que a religião sempre deu : paz.
Acreditaram na ciência e apesar de se chamarem pessimistas em tudo, foram de cego otimismo em sua fé científica. Pensaram que a razão fosse naturalmente justa, pacífica e democrática. A Alemanha é o estado da razão. Brazilya é uma cidade construida racionalmente. Ela nada tem de barroca, romantica ou rococó. Assim como a Alemanha matou a romantica Munique e a gótica Mannheim.
Hoje sabemos que o desencanto da razão começa com a crueldade da revolução industrial, passa pela primeira guerra com seus aviões e bombas científicas ( e gases tóxicos ) e deságua nos campos de concentração onde se matava racionalmente e se planejava um mundo de super-homens forjados por ciência e filosofia. O auge da criação científica ainda é a bomba atômica. Como confiar na ciência ?
Você consegue, com sinceridade, me dizer que confia na engenharia genética ? Será que não veremos a extinção de seres humanos indesejados ? O fim de pessoas com " defeito " e portanto, o fim da diversidade ? Quem definirá o que é normal, saudável, padrão ? Realmente vale a pena não ter mais nada de natural em troca de brinquedinhos eletrônicos e maquininhas engraçadinhas ? Vencemos a varíola. Adquirimos medo como nunca houve, e doses cavalares de tédio. Valeu a pena transformar todo campo em caminho asfaltado e toda cidade em estacionamento ? O que lhe é mais agradável : o berço onde você abriu os olhos, com suas cores e tecidos macios, ou o moderno prédio da nova estação do metrô, com seu prussiano concreto e o árido frio de toda estação ?
Nós vimos a mais racional forma de administrar uma nação ruir ( o comunismo ). E assistimos coisas anti-racionais como terrorismo, racismo e vicios vicejarem. Porque ? Onde aconteceu o erro ? O iluminismo nos livrou da inquisição, da bruxaria e do charlatanismo, mas abriu caminho para o medo, o tédio e o absurdo. Pois o mundo, basta saber algo de história para perceber, nunca esteve tão apavorado ( daí o consumismo, as distrações, os desesperos ), tão entediado ( voce adquire hoje aquilo que amanhã não te interessa mais ) e tão confuso ( você faz um imenso esforço para não pensar, não sentir e ser sempre jovem. Pra quê ? ). Assustado por saber, pela primeira vez, que toda pergunta respondida traz mais duas sem resposta; entediado por já ter visto tudo na tela da tv aos 11 anos de idade, por se tornar competitivo aos 7 e começar a temer o tempo aos 13. Entediado por não encontrar mistério em nada, pois tudo foi dissecado pelo cientista, por não conseguir criar nada de seu, pois tudo que seria seu tem um preço, e entediado por ver tudo numa vitrine e imaginar que nada mais existe fora dessa vitrine. Confuso por não enxergar a armadilha. Condicionado a não perceber mais as grades que o cercam. Amando o zoo onde foi posto. Pensando que viver é comer e ter , e que o mundo e a história se restringem a sua jaula e seu pátio de exercícios.
Sabemos que a razão errou. Que este computador onde escrevo é quase nada. Que meu celular não me fez melhor ou mais feliz. Que o novo Mercedez me dará a satisfação de ter um novo Mercedez, e que todas as outras insatisfações continuarão insatisfeitas. Que todo desenvolvimento científico não foi acompanhado de um desenvolvimento humano. Que continuamos matando, roubando, mentindo, destruindo, e pior, nos iludindo. Mais que antes. E que ainda tememos a morte, o tempo e a solidão.
Mas o irônico é que somos a razão. Não podemos mais ser de outro modo. Indagaremos sempre, desejaremos sempre, estaremos insatisfeitos eternamente. Ingenuidade só se perde uma vez, e quando a perdemos, definitivamente em 1945, nos jogamos à ciência, único consolo ainda possível. Sem perceber que o defloramento de 1945 fora causado pela própria ciência.
Jamais voltaremos a valsar em Viena. A cidade é hoje antro de racismo hipócrita. Jamais teremos uma capital entre sambistas e igrejas barrocas. O Rio se tornou capital da futilidade hedonista. Jamais escutaremos Beethoven como nosso igual. O mestre era um homem natural, hoje eu sou um pré-coisa. Oh ! Admirável mundo novo onde tudo é possível e nada nos faz satisfeitos! Onde tudo acontece e nada nos importa ! Onde todos são alegres e ninguém conhece a felicidade ! Enjoy it !

WYLER/GROUCHO MARX/AVANT-GARDE/RAY

INFÂMIA de William Wyler com Audrey Hepburn e Shirley MacLaine
Numa escola feminina, aluna acusa as sócias da tal escola, de terem um caso gay. Está feita a tragédia. Filme levado com bela discrição e grandes atuações. Mais um acerto desse venerável Wyler, o mais premiado diretor do cinema americano. Voce se envolve, torce e fica chocado com seu final absolutamente pessimista. nota 7.
ANDREI RUBLEV de Andrei Tarkovski
Não consigo assistir Tarkovski. Percebo sua originalidade, sua nobreza e seu realismo. Mas me irrito com sua lentidão, me perco em seus devaneios, adormeço com sua frieza. Nota 1.
ROBERTO CARLOS EM RITMO DE AVENTURA de Roberto Farias com Roberto Carlos, Reginaldo Farias, José Lewgoy
Há uma cena em que vamos dentro de um helicóptero em vôo rasante pelo Rio de 1967. É de doer : que bela cidade ela foi ! Quase sem favelas, muito verde e um trânsito ainda civilizado. Quanto ao filme : é um Help tupiniquim. Um Roberto, muito jovem e cheio de alegre ingenuidade, vive aventuras moderninhas em ritmo de nouvelle vague. Suas roupas são fascinantes e Reginaldo está hilário como o diretor de cinema doido. A trilha é uma brasa, mora! Tem desde "Eu sou terrível " até "Negro Gato". Roberto era um tipo de bom menino com roupas bacanas. Funciona, o filme é o retrato de um país que não existe mais : jovem e inocente. nota 6.
APARAJITO de Satijajit Ray
Segunda parte da vida de Apu. Ray, com dinheiro de amigos e de imóveis, criou o cinema indiano realista. As 3 partes da vida de Apu dignificam o cinema. Aqui vemos Apu adolescente, indo para a cidade grande e se tornando bom aluno. Mas o foco é sua relação com a mãe : dolorosa. O filme é menos emocionante que "O mundo de Apu", mas ainda assim é fascinante e hipnótico. Ray foi um grande poeta e suas histórias têm o encanto de fábulas. Nota 8.
UTAMARO E SUAS CINCO MULHERES de Kenji Mizoguchi
Dos três gigantes do cinema japonês, Mizoguchi é o mais nipônico. É fascinado por sexo e morte, e tudo em sua obra exibe cuidado plástico e tradição. Porém ele se perde neste confuso e inconvincente drama sobre erotismo, arte e mentira. O roteiro é mal desenvolvido e a ambição está acima da realisação. O mais fraco Mizoguchi. Nota 4.
A AVENTURA de Michelangelo Antonioni com Monica Vitti e Lea Massari
Excelente filme para quem sofre de insônia. Após 30 minutos é impossível não se adormecer. O filme tem o pior dos defeitos : fala do tédio da burguesia. E nos entedia. Nota Zero.
OS 4 PRIMEIROS FILMES DOS IRMÃOS MARX : THE COCOANUTS, OS GÊNIOS DA PELOTA, OS 4 BATUTAS e OS GALHOFEIROS. Diretores : Victor Hermann, Norman Z. McLeod e Robert Florey. Com Groucho, Harpo, Chico e Zeppo. Mais Lilian Roth e Margaret Dumont.
Uma das alegrias da vida é poder assistir os filmes dos irmãos Marx. Não é cinema, como WC Fields não o é. É mais que isso. Assistimos seus filmes como se neles encontrássemos um segredo : são uma religião. Por isso que com eles não há meio termo, ou se ama, ou nada se entende. Não existe o mais ou menos, não existe a meia fé. E minha fé é grouchoharpochicoana. Graças ao vaudeville. Seus filmes não têm história, não têm evolução. Assistimos para comungar com sua felicidade. Pois o mistério dos irmãos é esse, eles exibem uma profunda felicidade. Amar os irmãos Marx não é sinal de inteligência ou de bom gosto. É sinal de saudável espirito brincalhão. São um topo inatingível de descompromisso com tudo, de criatividade anti- correta, de brilho hedonista. Groucho fala o que pensa e o que ninguém entende, Harpo anda pela vida como um cachorro no cio e Chico é o mal-humor feliz. E nós, crentes na Marxilandia do espírito anarquista, sorrimos gratificados com o fato do cinema nos ter dado tal clarividencia. Para o mundo dos Irmãos, a vida é uma bosta e para viver bem é preciso nada se levar a sério. Os quatro primeiros filmes, da fase da liberal Paramount, são meus favoritos por serem os mais toscos. Na Metro eles ficariam um pouco presos. E palmas para Margaret Dumont, a vítima perfeita de Groucho, e atenção para Lilian Roth, símbolo belíssimo e sapeca das estrelinhas dos anos 30. Nota Um milhão quatrocentos e setenta e oito mil e sete.
A ARCA RUSSA de Alexander Sokurov
Crítica abaixo. Dizer mais o que ? Um diamante, uma porcelana de Sévres, um quarteto de Haydn, um conto de Voltaire. O filme brilha e é uma obra-prima dos anos 90. Nota Dez.
ELMER GANTRY de Richard Brooks com Burt Lancaster e Jean Simmons
O filme ataca um dos calcanhares de Aquiles da América : a religião. Deu o Oscar de ator à Burt e ele brilha como um malandro que se torna pastor. Nos irritamos com sua falsidade, mas ao mesmo tempo, nos apaixonamos pelo seu carisma. Burt lhe dá várias facetas, o que faz de seu desempenho exercício fascinante. Mas a direção de Brooks é crispada, séria demais, veemente em excesso, pesada. O prazer em se ver o filme se esvai na direção dura de Brooks. Nota 5.
HANGMAN'S HOUSE de John Ford
Filme pseudo irlandês, da fase muda de Ford. Tem belo trabalho de fotografia e se assiste com belo interesse. Mas está longe das obras-primas do mestre maior. Nota 6.
LES AMANTS de Louis Malle com Jeanne Moreau e Alain Cuny.
E Malle continua sua obra sobre a culpa. A não-culpa, no caso. Uma chatíssima burguesa entediada tem um amante. Diverte-se com ele como quem compra um novo casaco. Mas o marido, esteta chato, convida o amante e a amiga da esposa a passarem um fim de semana na mansão do casal. No caminho a esposa infiel conhece jovem e arruma um novo amante. Nada de culpa e nada de drama. Malle é um grande diretor : mostra o tédio e jamais nos entedia. O filme flui lindamente e tem uma fotografia em p/b brilhante ( de Henri Decae ). Moreau, atriz que não me agrada, está aqui sensual e muito bem. O filme arrisca em seu final : o apaixonar-se dos dois tem todos os hiper clichês de uma nova paixão. Sentimos enjôo. Mas funciona, vemos toda a tolice do se apaixonar por tédio. As cenas são plasticamente belíssimas, mas o que eles dizem é chocantemente tolo. O filme se faz comédia estratosférica. Malle sabia tudo. Nota 7.
PAL JOEY de George Sidney com Frank Sinatra, Kim Novak e Rita Hayworth
O azar de Kim Novak foi seu contrato com a Columbia. Ela era muito mais do que o studio acreditava. De qualquer modo ela esteve em dois anos em Vertigo e em Pic Nic. E neste Pal Joey, onde ela rouba o filme. Linda e vulnerável. Sinatra é um cantorzinho mulherengo fracassado, que tem sua grande chance ao conquistar viúva rica ( Rita muito abatida ). O filme tem na trilha "My funny Valentine", "The lady is a trammp" e "Bewitch", todas de Rogers e Hart. Precisa mais ? São três das maiores canções já escritas. Mas o filme sofre de um roteiro pouco inspirado, bobo. Melhora quando Kim aparece mais e Sinatra se humaniza. Em tempo : no filme Frank conquista toda mulher que deseja. Sua teoria é : trate a mulher sempre como ela não espera. A bonita como se fosse feia, a feia como bonita; a deusa como vagabunda, a vagabunda como deusa; a séria como palhaça e a palhaça com seriedade. Isso é puro Sinatra ! Nota 6.
A PARTIDA de Yojiro Takita
Fuja deste chatíssimo exemplo de filme vazio e sem porque. Deve agradar ao tipo de público bonzinho. Mas é exemplo do vazio absoluto de idéias e de projetos do atual cinema japonês. Chato pacas!!!!! nota zero.
A FRONTEIRA DA ALVORADA de Philippe Garrel com Louis Garrel e Laura Smet
O diretor, séculos atrás, foi namorado de Nico. Este filme recorda isso. Tem os piores tiques moderninhos dos anos 70 levados aos xoxos anos 2000. O filme é uma imensa crise existencial que só pode interessar a quem a vive e nunca a nós que a assistimos. Exemplo de filme masoquista. nota zero.
AVANT-GARDE
Houve um momento na história do cinema em que ele precisou se definir. Ou se assumia literatura, ou se fazia arte plástica. Venceu a literatura, e o cinema que hoje conhecemos tem história. Tem enredo, personagens e narrativa pessoal. Esta coleção de dvds, mostra a vertente derrotada, a turma que via no cinema algo próximo a fotografia e a pintura, imagens, puras imagens em movimento. Se alí fosse percebido algum sentido literário seria por mero acidente. ( Aliás, uma pintura pode contar uma história. Mas não é o principal. O que define a pintura é sua realidade como imagem, como puro visual. E isso lhe justifica, lhe basta. )
O que vemos nestes videos são curtas de artistas que filmaram imagens em movimento. Alguns são completamente aleatórios, outros possuem enredo, mas todos têm o fascínio da imagem solta, livre, sensual. Se os video-clips tivessem alma seriam assim. ( E a gente nota que todo diretor de clips assistiu e estudou estes filmes ! ). Que filmes são estes ?
Man Ray é o que mais me tocou. São quatro curtas desse irriquieto fotógrafo americano, que viveu a boemia francesa como poucos. A ESTRELA DO MAR é uma das maiores obra-primas que já assisti. São cenas de um prazer imenso, de absurda sensualidade, onde toda imagem é uma nova surpresa. Mas os outros três mantém o mesmo nivel : maravilhosamente surreal. Mas há mais. Hans Richter com cenas de força e de ritmo vertiginoso, Charles Cheeler e suas tomadas de Manhattan baseadas em Whitman, BALLET MECANIQUE de Léger, famosíssimo curta que merece a fama que tem, há ainda a obra-prima de Germaine Dullac LE COQUILLE ET LE CLERGYMAN, filme encantador como sonho e como viagem de ópio, BRUMES D'AUTONNE de Dimitri Kirsanoff, com imagens de melancolia obsedante. E esse burlesco CHATEAU DE DÉ de Man Ray, que é um monumento ao nada. Todos são fantásticos, como continentes perdidos, um mundo cinematográfico abandonado, porém é mundo vivo, moderno, instigante e transgressor. Conhecer estes filmes é ver aquilo que esta arte poderia ter sido, aquilo que em seu inconsciente ela quer ser : livre. Impossível dar nota a tal monumento. Assita e se surpreenda.

A ARCA RUSSA- ALEXANDER SOKUROV

Impressionante. Este filme com nenhum outro se parece. Consegue um milagre feito de técnica e de inspiração : ter quase duas horas de duração e não precisar de um só corte !
Sim, o filme é feito em uma única tomada ! A câmera é ligada e tudo é filmado em tempo real e contínuo. Todos os atores têm de estar no lugar certo, tudo deve funcionar ou todo o trabalho se perderá. Mas, o que faz o encanto deste lindo filme, é que isso, que poderia ser mero exibicionismo, existe em função da filosofia da obra : ao falar sobre St. Petersburgo e sobre o apogeu da história russa e européia, o filme precisa deslizar, como se fosse música, como se pudesse valsar.
A câmera são os olhos de alguém de 1992. Ele acorda ou morre e vaga por corredores. Não sabe onde está. Pessoas fantasiadas passam por ele e um francês da era Napoleônica lhe serve de guia. Os dois conversam e passeiam pelo museu Hermitage, em Petersburgo. Nesse passeio, vemos os salões do museu, suas obras-primas e personagens da história russa, que passam por nós como fantasmas. O russo, desperto da vida, ou desperto de um pesadelo ? Segue o francês, racionalista snob, que comenta sobre os altos brilhos da europa e os brilhos, poucos, da vida russa. E nós, sem perceber, vamos juntos, meio hipnotizados, meio fascinados, um pouco perdidos, um pouco assustados.
Se voce souber alguma coisa de história seu prazer será imenso. Se nada souber, sua fascinação será garantida pelo clima onírico do filme e pela gigantesca beleza das imagens. Raras vezes um filme foi mais belo. E raras vezes foi mais melancólico. Explico.
Tudo aquilo que vemos, e mais que vemos testemunhamos, é o apogeu irrecuperável de um tipo de civilização. A era da aristocracia. Um mundo em que tudo era dirigido para o que fosse elegante- racional- equilibrado. É o apogeu e o fim de um mundo dirigido para o melhor e não para o senso comum. O que define essa civilização é o excepcional, jamais o geral. A revolução francesa matou esse mundo. Para sempre.
O filme mostra a corte de Catarina e de Pedro. A tentativa de Petersburgo em se tornar Paris. A arquitetura é desconcertante. Tanta beleza chega a alucinar. Nossa era de bancos e hotéis é uma favela de concreto e de vidro vulgar, se comparada a época do mármore, do cristal e da prata. O centro da cidade era a igreja e o palácio, hoje é a finança- impessoal como um banqueiro. Mas para Sokurov a coisa é pior. A beleza de Petersburgo é obscurecida não só pelo final da era aristocrática. Vem a guerra. As várias guerras, o milhão de mortos na segunda guerra ( meu Deus ! Um milhão de mortos em uma batalha !!!!! ). E vem a escuridão da ditadura bolchevique. Em que o passado é apagado ( me lembro da frase de Kundera : a memória é a luta contra a ditadura. O poder é esquecimento.... ). Petersburgo muda de nome, muda de espírito, é aviltada.
Em 1992, um russo desperta. Tenta unir o fio da história, recordar e refazer. Impossível. A Rússia é o que ?
Para mim, o filme chega a doer. Ele mostra o máximo de "eden", de paraíso, que consigo conceber. ( Como o final do 2001 de Kubrick ? ). O século XVIII é o auge da nossa jornada, o auge da filosofia, da música, da literatura, da pintura, do salto da ciência. Topo da polidez, do controle sobre a paixão, do riso, do flerte. Tem o negror da miséria também. Mas é aqui que o povo se ergue para subverter essa tirania. O século é o século da virada, do pleno poder e da completa decadência. O filme mostra isso em imagens sem cortes e nos dá, ao final, um baile que nos recorda "O Leopardo", a obra-prima de Visconti sobre a beleza profanada. Nesse baile, onde cada gesto e todo olhar é definição de filosofia, o europeu-cicerone se solta e se diverte. E percebemos, nós, seres da taba deste século desumano, que toda aquela rigidez formal; liberta, não oprime. Nos toques, passos e modos da mazurca, observamos a etiqueta do contato social, da união de casais, da genealogia do amor. Os modos são dados para que voce se guie por eles e seja livre em seus limites. O campo de ação é delimitado, mas o segredo lhe é revelado. Hoje somos livres. Sem uma estrada nos perdemos na falta de direção. Nossa dança entre sexos é feita de embriaguês e de zumbis pulando para o escuro. Voltamos a Neanderthal.
Quando o russo e o francês se separam ( quem seria ele ? Stendhal ? ). .. o russo diz : "- Adeus Europa ! " Essa frase toca nossa medula. Porque ? Ora, falemos a verdade, fazem sessenta anos que a Europa respira por aparelhos. Sua morte começa com a primeira guerra e é total após 1939. Tudo o que ela nos tem a oferecer é passado. Restos de gênios mortos, ruínas de São Petersburgo, testemunhos de nobres europeus extintos. A Europa vive de fútil lembranças de luxos superficiais que envergonhariam o verdadeiro europeu : aquele que criou o que entendemos por civilização.
Este filme é inesgotável.

UMA NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA OCIDENTAL- OTTO MARIA CARPEAUX

De Caepeaux o que se pode dizer ? Foi um emigrante do intelectualmente riquíssimo leste europeu, se tornando no Brasil um dos melhores jornalistas da melhor fase de nosso jornalismo cultural. Publicou uma completa "História da Literatura Mundial" em 3 volumes e este livro recém relido. E que é fascinante !
Ele não tem pudor em se derramar em elogios àquilo que adora. Otto toma partido e se compromete todo o tempo. Fala abertamente daquilo que para ele está morto e daquilo que é eterno enquanto o homem for digno de atenção. Sua cultura é completa. Situa cada mestre em seu momento histórico, dando uma pincelada em sua vida e em seu meio social. Faz aquilo que todo grande crítico deve fazer : nos faz ansiar por escutar aquilo que é descrito. É impossível ler seu texto sobre Haydn sem correr para o escutar.
Carpeaux avisa no inìcio que a obra é sobre a música do ocidente. Portanto não há nada sobre India ou Israel. E que é sobre música viva. Não se fala sobre Grécia ou Roma, e mesmo a música medieval se inicia com o canto gregoriano. Otto nos faz conhecer a música da renascença, o barroco, a época da razão e o excesso do romantismo. Chega ao século vinte, com os modernismos suicidas e a música eletrônica e eletro-acústica.
Bach é chamado de mestre da música pura, a música que não fala de nenhuma imagem ou de nenhuma narrativa. É música abstrata, espiritual. Bach, um homem do tempo em que ser músico não era ser "artista", era antes de tudo, ser um artesão. Compunha-se por um fim e ao se tocar a música ela era descartada. Mozart é o eterno adolescente ? Não. Ele foi antes de tudo um boêmio, um bruxo, um quase inacreditável bem dotado, que compunha com imensa facilidade. E Beethoven, centro de tudo aquilo que conhecemos por música ( inclusive a popular ). É com ele que nasce a consciência da genialidade. O artista compõe o que deseja, expressa o seu ser e se apresenta para quem pagar para o assistir. Beethoven é, com Shakespeare e Michelangelo, o homem que define o máximo a que o ser pode almejar. Dentre seus fãs, gente como Tolstoi, Thomas Mann, Stendhal, Kundera, Huxley, Proust. Quer mais ou está bom ?
Mas Carpeaux não fica só nesses titãs. Haydn recebe a chama de ser o verdadeiro inventor da sinfonia. Monteverde o de ser o inventor do que conhecemos como música. Coloca-se Schumann, Schubert, Wagner, Debussy nas alturas, e se rebaixa Mendelssohn, Vivaldi e Liszt. Ele narra toda a beleza refinada da era clássica, em que os sentimentos deviam ser disfarçados, controlados, refinados. Era de Rameau, Couperin, Scarlatti. E fala de seu oposto, a era romântica, em que tudo deveria ser exposto, sentimentos e vícios, exageros. Tempo de Berlioz, Tchaikovski e Chopin. As breves bios de Liszt ( imenso sucesso, amores às dúzias, ajuda a compositores jovens, conversão a religião, abandono da vida mundana ) e de Schumann ( jornalismo cultural, casamento feliz e final no hospicio ) são maravilhosas ! Como eram intensos esses românticos !!!!
Fica a pena de que não exista nada parecido sobre a música pop. A crítica popular é sempre dogmática : se o escriba adora uma corrente ele ignora o resto. Otto é enciclopédico. Tudo ele ama e em tudo conhece seu defeito.
Mas o melhor é que ele escreve simples e escreve bem. Sua obra é feita de prazer. Escrevendo sobre a mais etérea das artes, ele compõe frases feitas de harmonia, ritmo e melodia. Um mestre.

VÁRIOS RIOS

Eu estive entre os dois rios e caminhei entre tamareiras. O som do vento nas folhas e o som da água que corria era tudo aquilo que eu queria. Vaguei no horizonte que jamais tinha um fim e morei no centro do círculo onde tudo que acontecia acontecia para mim.
E nós adorávamos o sol e temíamos a noite porque as feras rugiam e nos farejavam. A terra era mãe onde amávamos a vida sem saber. A liberdade não fora inventada, mas nós nos criávamos. A chuva me alucinava e os raios vinham dos braços do pai. Meus primos e eu e nós olhávamos./
Eu descí para outro rio e lá ouvia música de flautas e de tambores e notei que em mim existia outro. Mergulhei na água azul no fim dourado da tarde e pude ver a imagem de nosso corpo. Perdido na mata entre macacos senti o horror de se perder entre a vida e a alegria de se esquecer da vida. Nossas cinzas repousam no rio./
Quando subi cruzei outros dois rios e conheci a neve. Tranquei-me entre toras e fechei meus olhos. Sonhei com a volta do sol e com o gosto do vinho. Olhando para o fogo fiz perguntas que pergunto ainda hoje. Nós somos essas perguntas. Os lobos batiam à porta e nós cantávamos. Quando os pingentes de gelo começaram a derreter eu descobri a palavra gratidão./
Ao cruzar outro rio vislumbrei meu primeiro mar. Foi olhando o mar que em mim nasceu a idéia de eternidade. O mar se move e sempre é o mesmo. Caí apaixonado pelo cheiro salgado, caí extasiado pelo som que é o som da vida, e caí enfeitiçado pelas cores de seu ritmo. Atendi seu apelo e me fui mar adentro./
Quando vi seus rochedos pensei ter encontrado o inferno. Mas ao pisar em seu verde sem fim eu entendi o que seria viver dentro da liberdade. Meus pensamentos voaram como insetos e criei a idéia de fadas para entender esse encanto. O vento era frio mas tudo falava comigo. Meus dias eram de água e de luz e as noites de canção ao redor do fogo. Servi ao senhor da terra e senti o açoite e a fome. A terra verde tornou-se rubra. A liberdade, perdida, agora é desejo./
Cruzando um mar que é rio chegamos à terra escura. E cruzando outro rio notei que tudo era pedra e areia. Criei cabras e pastoreando deixei que o círculo se refizesse. O sol rodava ou eu rodava ? Confundi-me com as cabras e pensei onde estaria nossa diferença. Foram séculos entre animais e na solidão correta das pedras e das oliveiras. Vagando por primos e por estrangeiros, nós sabíamos os segredos do chão e do ar. E a chuva sempre nos redimia./
Conheci a religião dos mártires. Como antes conhecí a da natureza. Segui seus preceitos. E entendi que na submissão mora um tipo de liberdade. Mas o vento da tarde parecia carregar parte de mim para longe. E eu falava com os anjos sobre isso./
Mais dois rios foram cruzados. No primeiro eu vi a guerra. E lá matei e fui trucidado. Fui eu quem violou a moça de negro e fui eu quem teve a cabeça decepada. O rio turvo de sangue e meu rosto crispado de emoção. Ao cruzar mais um rio esquecemos de tudo e eis eu bisavô entre as uvas./
Podar as vinhas e sonhar com a boa estação. Pisar o fruto e viver no perfume dos tonéis e das bagas. Beber o vinho que nasceu do sol e da terra. Entender o sangue. Quantas festas para o verão ? Onde conheci amores risonhos e onde pulei em louvor a vinha. Os natais ao pé do lume onde a comida era melhor e o vinho se oferecia. A aldeia se iluminava e minhas mãos eram frias. Eu dormia escutando a respiração dos bichos que viviam ao lado. E amanhecia com galos. A escada rangia e a água do rio era fonte de brinquedos e de roupa branca. Meu prazer era casar os outros e nisso eu vivia./
Então ao lado do bom rio eu cortava a pedra. Ia bem cedo rumo a pedreira e media a rocha e cortava certo, no ângulo exato. Tomava goles de vinho verde que deixava na água para resfriar. Meu burrico comigo, suávamos subindo e descendo até a casa que eu fazia. Eu fazia casas de pedra. Amava suas fachadas avarandadas onde se avistava o sol entre montanhas. Amava a adega fria onde as pessoas se esqueciam do verão. Eu destruía minhas mãos e sorria com a casa que nascia. Fui parteiro de famílias./
Então cruzei um oceano e em navio cheguei a outro rio. Morei em quarto cercado de córregos e andei entre ruas de sombra e salas de cinema. Eu amava os cowboys e os soldados. E percorria ao longo do rio a trilha do meu dia. Ecos de passos na madrugada, futebol com primos nos domingos e o amor num banco de jardim. Nós amávamos as meninas./

Eu agora hoje, vim no tempo do fim dos rios. No começo de sua morte, quando eles se tornaram refugos. Sou esse rio e todos os outros rios, vários rios, que viram e me deram uma vida. E sou a água que veio de longe e vai para além. Os passos todos eram meus e sendo meus eram nossos. E estarei no final do último dos rios e me sentarei chorando sua morte. Nascemos sentados ao rio. Partiremos ao seu leito seco.

SOBRE O LIVRO DE GILBERTO SAFRA

Ora, jamais existiu período histórico tão preso a linha reta. A redondeza do tempo kósmico, onde tudo sempre se repete ( dia/noite, chuva/sol, verão/inverno, morte e nascimento ) é o tempo do primitivo, do selvagem, da natureza. Esse Eden foi perdido e é extinto.
Nosso é o tempo da linha reta, que Safra chama de tempo histórico. Tempo onde o ontem é morto e o futuro é eterno desejo. Nesse tempo o futuro é infinito e somos todos jogados para a frente, marchando em nossas baias no trote acelerado. Tempo da ciência onde a transcendência é não só impossível como indesejada. O homem reduzido a ser biológico, número catalogado em classe e série, comprador compulsivo de ilusões moderninhas e de medicamentos consoladores. Nessa reta, nesse trilho, a ruptura se torna inviável, pois para pular da linha há que se cair no vazio. É como se fora do trilho nada mais houvesse. Kafka.
Mas há. Há o gesto criativo que cria seu próprio tempo, seu próprio universo, seu instante efêmero porém absoluto. Ele rompe com o círculo do kosmos : pois nada tem de natural; e rompe com a reta, pois não é parte do tempo contado e catalogado.
Esse tempo explica o porque de me sentir tão GRANDE quando leio Shakespeare. Nunca existiu o tempo de Shakespeare, ele jamais foi contemporâneo. Em 1600 ele já era fora da reta, ele não é do passado, nega o hoje e não anuncia o futuro. Ele vive e reina em seu mundo extra-mundo. Mas ele existe por e para nós. Shakespeare criou por necessidade íntima, mas visando ao universo humano : ele é um homem maior. O pleno. A criação pura.
O mesmo sinto diante de Beethoven, Michelangelo, Cézanne ou Eliot. A gigantesca força extra-universo do homem. O dom de criar tempo e mundo própio. O transcender o efêmero.
O mundo do círculo natural não toma conhecimento desse gigantismo. Para esse mundo eles não existem. Possuem uma linguagem indecifrável e herética. E para o mundo da reta, mundo que precisa ser medido e vendido e que toma o valor de tudo por sua função, nesse mundo eles precisam ser vulgarizados, transformados em ponto de reta, precisam ser domados. Explica-se então o gênio, disseca-se o processo e vende-se o segredo. Transforma-se um mito em parte do trilho.
Mas em sua gigantesca luz ele resiste. Vive fora do tempo e fora do que é explicável. Transcende.
Todo gesto criativo é tentativa de sair de seu meio, de se erguer sobre seu tempo, de escapar do destino. Para quem vivia no círculo natural seria domar a natureza, explicar os deuses, subjugar o fado; para nós, pontos em reta, escapar do passado e do futuro, habitar o atemporal, visitar a terra dos gigantes, conhecer a transcendencia. Ser poeta. E o mundo nunca desprezou tanto o poeta e jamais necessitou tanto deles.
Mas cuidado : tudo pode ser vendido ! E vender rebeldia, vender o anti-"mundo atual", vender a ovelha negra é idéia amada por comerciantes de falsas idéias. O poeta verdadeiro se comunica com gente, não com grupos de mercado, escreve para uma pessoa, e nunca para um público. Pois não existe o público. O que existe é o eu e o voce.
Há um texto de Hannah Arendt no livro, que diz que todo ato criativo é rompimento com o que o cerca. É surgimento do inesperado. Como fazer isso num mundo onde o inesperado é cobrado ?
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Não me interesso mais pela música pop feita hoje porque ela não tenta mais sair do tempo. Assumiu descaradamente sua contemporaniedade descartável. Ela propõe ser retrato do hoje e sómente do hoje-agora. Ela se equilibra na linha reta e me causa enjôo. Os poucos que tentam sair disso e transcender acabam revisitando transcendências do passado. Não criam um novo mundo extra-tempo, visitam o universo de outro, o já criado. Estão irremediavelmente presos.
Quando assisto ( por exemplo, APARIJITO de Satiajit Ray, que vi ontem ), um grande filme, percebo que em suas imagens existe um tempo que é só dele. O filme não fala de um momento específico. No ano em que foi produzido ele não era " de agora" , e hoje, 40, 50 anos depois, continua sendo fora de tempo. A criatividade desse tipo de obra cria seu universo, seu momento, sua vida. Ele existe como coisa nunca moderna e nunca passada, nunca de hoje e jamais ultrapassada. Ela é o gesto de criação eterno.
Kurosawa é isso. Bergman é isso. FACE A FACE ou MORANGOS SILVESTRES ou PERSONNA não são de tempo algum. As questões que levantam e o modo como se comunica conosco são de um tempo extra-tempo. Negam o passado, negam o agora e negam o futuro. Criam seu tempo. Quando Bergman é menos gigantesco ele se torna contemporâneo, moderno, preso, frouxo. Basta comparar o Fellini de CABIRIA ou AMARCORD com o de A DOCE VIDA ou ROMA : os dois primeiros criam seu tempo, os dois últimos são do agora.
Adoro Godard, mas reconheço que sua força era a força do momento, do moderno, do contemporâneo. Ele, como Antonioni ou Cassavetes, jamais criou seu tempo. Retratou criticamente a linha, mas não conseguiu transcender. Hoje, adoro Joel Coen, Almodovar, Eastwood, Tarantino mas sei que não há neles um novo universo. Seus filmes, maravilhosos, são frutos do agora, e serão velhos com o passar do tempo. Deliciosos, porém presos. Tim Burton tenta desesperadamente transcender. Terá conseguido ? Ainda não. Ele é alienado do agora, mas isso não significa criar. Negar o momento é ato de desespero, criar um mundo atemporal é genialidade.
Belo livro que trata de tudo que me interessa : tempo, criação e morte.
Mais comentários abaixo.

A PO-ÉTICA CONTEMPORÂNEA- GILBERTO SAFRA

Ando pelas ruas fotografando. Fotografo casas antigas, ruínas, ruas congeladas no tempo, árvores. Estou a procura de alguma coisa.
Depois, a noite, andando pelas ruas desta cidade, sinto uma constante saudade do escuro. Esta cidade não tem mais lugares escuros. Me cai nas mãos um livro que fala o que eu sempre soube. Mas não falo, pois quem pode ouvir ?
No mundo de Bach, de Spinoza ou de Shakespeare, existem sentimentos de dor. Tristeza, desespero, falta de coragem, coração partido, decepção. Mas até a geração romântica, é desconhecido do homem o sentimento de vazio, e é só no final do século dezenove que nasce o desespero existencial, o sentimento de absurdo da própia vida. Porque ?
O livro de Safra verbaliza isso. É com a revolução industrial que se começa a destruição do ambiente, da praça, da floresta, da sua face. Como dizia Whitman, voce é seu companheiro, voce é sua rua, voce é sua casa. O progresso derruba tudo isso. Voce é o que ? Com a revolução, alemães e ingleses primeiro, assistiram a transformação de toda referência. Seus locais sagrados não eram mais seus, sequer existiam. Eles criaram o romantismo como grito de protesto contra a futilidade dos novos tempos, a mecanização da vida. No final do século xix, o grito se torna gemido, contra a coisificação do homem. Neste inicio de milênio, apenas aceitamos docilmente como fato único : somos máscara sobre máscara.
A máscara sofre o desespero de não poder sentir. De não existir. Da total virtualidade. Quando meu pai morreu fui uma face. Sofrimento puro, completo, sem disfarce ou modelo. Eu era eu-mesmo. Um sofrimento terrível, porém saudável, verdadeiro, inteiro. Eu me sentia construir. O sofrimento da máscara não constrói nada. Nem destrói. É inexistente.
Eu estive nos dois mundos, posso testemunhar.
Minha infância foi a abençoada infância da aldeia. Todo habitante sabia quem eu era, de onde eu vinha, do que eu gostava. Cada pedrinha no chão, cada árvore e cada córrego tinha um nome para mim. Tudo possuía sua história, seu nascimento e seu fim. A noite era escura e assustadora, com sapos e ratos e toda manhã parecia um novo momento de descoberta. E mais importante : as coisas não pareciam ser transitórias, eram para sempre.
A ruptura desse idílio veio com a mudança de casa. Todas as histórias foram abandonadas e as ruas que eu via não falavam comigo. Nesse novo árido mundo, eu precisei criar dentro de mim pontos de apoio, modelos e moldes para seguir, para poder ser e existir. Foi uma armadilha, e esquecí tudo o que eu era e tudo o que eu precisava ter. Deixei de ser ruas, árvores e gente que vivia comigo; me tornei o que eu quisesse, virtualmente potente, mas eternamente eu. Criei máscaras. Vazios.
Então voce pensa se tornar aquele cara que voce admira. Um ator, um personagem de filme, um rock star. Voce se torna a máscara de uma máscara que já nasceu como máscara de outra máscara. Quando essa coisa fantasiosa cai, o que voce percebe é que voce é um estranho para voce mesmo. Nasce um terrível horror : um sentimento sem nome, sem história, sem verdade, sem porque : o completo vazio. Voce não sofre por alguma coisa. Apenas sofre por não ter pelo que viver ou sofrer. Virtualmente.
A única referência de futuras gerações : imagens coloridas sem passado, raiz ou verdade. O que será delas ?
O livro fala mais. ( E é uma pena ele falar tanto de Dostoievski e passar ao largo de Tolstoi ).
O que é o sexo hoje ? Existe nele uma narrativa, um encontro de duas almas, um reencontro com a verdade ? Isso não está no livro, mas eu vejo cada vez mais que sexo é a única chance que ainda resta ao homem, de se tentar fazer alguma coisa puramente instintiva, animal, não racional. O que é uma bobagem ! Na maioria dos casos, suas transas são puramente racionais, tanto em escolhas como em ocasiões.
A sensação geral é : negamos nossas origens ( quando as temos ). Seguimos modelos que nos vendem ( mesmo os anti-modelos ). Vestimos máscaras sobre máscaras, falamos bobagens sobre bobagens. Viajamos para lugares que não escolhemos. Namoramos pessoas que nada têm a ver com nosso interior, negamos tudo em nós que não seja moderno, eficiente, bacana; nos obrigamos a vestir armaduras de vazio. Que vida é essa ?????
Voce tem amigos incapazes de fazer algo que não seja alguma coisa "divertida" vista em um bilhão de filmes ou séries de tv. Bebem, gritam, dão pulinhos alegrinhos e agarram a gostosa tipo série de tv ( desculpe a repetição, mas é assim ). Eles simplesmente são incapazes de escutar ou de parar de fazer alguma coisa. Ficam ligados, funcionam como maquininha. Têm uma função : são divertidos, bro !
Voce corre o caminho de Santiago. Mas nunca foi católico. Vai a Amsterdan, mas nada sabe de Rembrandt e nunca foi bem louco. Aluga um studio em Paris. Para tentar se sentir meio artista. E anda por Roma. Sem sentir nada da beleza ou da magia do lugar. Voce vai porque vai. E adora... Como adora Londres por ser moderna, Praga por ser romântica e Berlin por ser dramática. Voce ama o que pedem pra voce amar.
Ouve superficialmente o que foi criado para ser ouvido superficialmente. Assiste filmes que são a cópia da cópia da cópia da cópia. Luzes de máscaras em cenários falsos com personagens feitos de papel de jornal. Nada de vivo, nada de verdadeiro, nada de real. Mas ok. Voce pagou 25 reais e quase sentiu uma emoção. Uma mísera emoção. É tudo o que voce pede : uma mísera emoção. Inteira, redonda, envolvente, e que dure.
Trouxa ! Tudo na arte de hoje é conceitual. Nada de emoção. O que se procura é a sensação. A tv é uma sensação ( sinto que foi bom, sinto que foi válido, sinto que é engraçado, sinto vontade de rir, sinto vontade de chorar ). A arte verdadeira é emocional, pois lida com a raiz, a origem, a face. ( É trágico, é cômico, é patético, é maravilhoso, é péssimo... ).
Se o homem é sua cidade e seus companheiros ( é o que o livro diz ), que homem é esse com uma cidade em eterna mudança, e com companheiros ausentes ou virtuais ? Que homem é esse com rostos amigos em telas ( acredite, são imagens sempre falsas ), com vozes distantes em celulares que tocam a toda hora mas que nunca abraçam. O que há de humano em se passar por ruas que hoje são diferentes de ontem. Voce acaba tendo de se adaptar. E se torna tão fantasiado quanto a foto da tela do orkut, tão frio quanto a mensagem gracinha no celular, tão esperto quanto o personagem da série de tv e tão mutável quanto as ruas derrubadas e reconstruídas sempre. Anônimamente mais um. Sempre alegre e nunca feliz. Sempre moderninho e nunca eterno. Fazendo, não sendo.
Mas um dia ( e eu passei por isso ), voce perde a máscara. Cai. E tudo parece ser para voce aquilo que sempre foi e nunca esteve tão percebido : nada. Todas as suas referencias se vão. Pois elas nunca foram de verdade. Caem as certezas. Que certezas ? Voce se vê estrangeiro dentro de voce mesmo. Isso é ser moderno : um estrangeiro dentro de um vazio.
Daí voce procura se reconstruir. Vai atrás das pegadas, ver onde a coisa se rompeu. Procura os restos da aldeia, que são os vivos restos de voce mesmo, começa a assistir filmes que tenham algo de real, de vivo e que mesmo em sua mais louca fantasia, tenham a fantasia sonhada pela mente humana, e não planejada pelo grupo de marketing. Voce procura a face irretocada da vida, ou ao menos a máscara primordial.
E uma noite, ao olhar o espelho do banheiro, espelho que sempre lhe falou de vaidade ou de raiva; ao olhar esse espelho, voce não mais verá um rock star ou o ator com quem voce se parece. No espelho voce não mais verá o cabelo fashion ou o sorriso safo. Nesse espelho estará defronte a voce um homem. Homem que voce viu na aldeia, anos atrás. Homem que cheirava bem, que parecia de verdade, que era um mundo em sí. Voce se assustará em ver no espelho esse homem. E notará que ele sempre esteve alí. Obscurecido por máscaras.
Em voce verá seu pai. E isso eu chamo de a verdade. Triste e feliz, real.

ALTMAN/CORNEAU/JOHN WAYNE/ERA DO GELO

SIM SENHOR de Peyton Reed com Jim Carrey e Zooey Deschanel
Volto a falar deste filme para dizer algo assustador : o quanto um filme pode ser ruim. Um cara ( um Carrey apático em seu medíocre papel ), fala não para a vida. Após palestra ( dada por Terence Stamp ), começa a dizer sim a tudo. Fosse menos cretino, o filme o envolveria em confusões sexuais, confusões com patrões e com os amigos. Mas não. Para o roteirista, dizer sim é pagar bebidas aos amigos, pagar cursos e comprar coisas. Para se falar sim é preciso ter cartão de crédito dourado. Retrato de um tempo onde diversão é encher a cara e pagar algo de novo. O romance com a mocinha é inconvincente : ela canta em banda de rock tipo anos 80 mas é a imagem da caretice. E que amigos são esses ? Em todo o filme não dizem duas frases diferentes ! Um horror ! sem nota.
A ERA DO GELO 3 de Carlos Saldanha
Uma deliciosa comédia com personagens bem delineados, belo visual e que não tenta vender nada. É lógico que não procuramos arte aqui, mas ele faz algo que os filmes pop de hoje não sabem mais nos dar : uma alegre diversão que não nos agride, não nos chama de idiotas. nota 5.
MAC CABE & MRS. MILLER de Robert Altman com Warren Beatty e Julie Christie
O que primeiro salta aos olhos é a foto de Vilmos Zgismond. O filme é de uma plasticidade melancólica e gelada. Passa-se na fronteira EUA/ Canadá e estamos em 1890. Um cara otimista monta bordel em vila mineira. Ele tem bom coração e tudo que deseja é alguém que lhe dê afeto. Assistimos o que lhe acontece. O filme é difícil : lento. Talvez seja o mais triste filme americano já feito ( Pauline Kael o chama de " o mais triste e belo dos filmes " e Roger Ebbert de " um filme perfeito " ). Eu o assisti com dois sentimentos : quase irritado por sua lentidão, mas, ao final, apaixonado por sua magnífica beleza. O final, numa nevasca, é talvez o mais melancólico já visto. Tem uma beleza aterradora. Não tem trilha sonora : é pontuado por lindíssimas baladas desesperançadas de Leonard Cohen. É uma obra-prima da inocência poluída, da esperança destroçada, da solidão sem fim. Uma obra-prima de cinema ousado, sem nenhuma concessão, heróico. Nota DEZ.
IF... de Lindsay Anderson com Malcolm MacDowell
Um perfeito retrato da rebeldia e do desamparo adolescente. Eles tentam ser diferentes e não conseguem, tentam ser livres e não sabem o que é a liberdade. O que fazem então ? Destroem. Surrealista, cheio de significados e fácil de se assistir, é um filme manifesto, um poema à ira, um filme de ação. nota 9.
WEEK-END de Godard com Mireille Darc, Jean Yanne e Leaud
Não pode ser analisado a luz da razão. Ele vai contra tudo e todos. Do dinheiro ao sexo, de burgueses aos grupos extremistas, sobra pra todo mundo. Sem nota, pois um zero seria absurdo e um dez impossível.
NUNCA AOS DOMINGOS de Jules Dassin com Melina Mercouri
Um americano vai à Grécia atrás de respostas. Ele quer saber onde a Grécia errou. Lá, conhece uma prostituta que é a personificação da alegria grega. Mas ele tenta lhe dar cultura, filosofia, e a estraga. No fim, a alegria vence. Dassin foi um ótimo diretor. Na América fez alguns dos melhores policiais da história. Perseguido pelo MacCarthismo, teve na Europa uma segunda e excelente carreira. Aqui ele encontra a estrela grega Melina, com quem se casaria. Ela lutaria contra a ditadura grega e terminaria ministra da república livre de seu país. O filme, comédia bela e despretensiosa, encanta por sua alegria genuína e a bela paisagem grega. nota 7.
A TRÁGICA FARSA de Mark Robson com Humphrey Bogart e Rod Steiger
Último filme de Bogey. Fala do submundo do box. Um lutador tipo Maguila, inocente e manipulado, vence lutas arranjadas até um quase título. Bogey é o jornalista que manipula essa verdade falsa. Um derrotado. O filme é ok. nota 5.
MALPETIUS de Harry Kummel com Mathieu Carriere e Orson Welles.
Pretensioso e chato. Algo sobre deuses e mitos. Uma bomba! nota Zero!!!
TRUE GRIT de Henry Hathaway com John Wayne e Kim Darby
O filme que deu o oscar à Wayne ( vencendo maravilhosos Dustin Hoffman e Jon Voigt em Perdidos na Noite ). Ele está comovente como um justiceiro bêbado e amargo que ajuda mocinha a vingar a morte do pai. Belas paisagens, ação na medida exata, algum humor e o carisma do mito da aventura. Muito satisfatório. nota 7.
NO VELHO CHICAGO de Henry King com Tyrone Power, Don Ameche e Alice Faye
A primeira hora é um melô envelhecido sobre família irlandesa que enriquece na Chicago de 1870. Mas a meia hora final é um primor. Um incendio que devasta a cidade. Efeitos especiais que ainda impressionam e um senso de suspense e movimento soberbos. Os figurantes, centenas, estão maravilhosamente bem dirigidos e fotografados. Fogo, água e multidões se movendo sem cessar. Vale o filme. nota 6.
TODAS AS MANHÃS DO MUNDO de Alain Corneau com Jean-Pierre Marielle e Gerard Depardieu
A vida do músico Saint-Colombe ( que nunca ouví falar ) narrada por Marin Marais, seu aluno bem sucedido. O filme é tudo aquilo que Amadeus não pode ser : místico, reverente, artístico. Talvez por a arte de Mozart ser terrena, comunicativa e leve. O ambiente é o do Jansenismo do século xviii. O filme tem uma austeridade rígida, fria, severa. Marielle brilha. Vemos e sentimos sua dor. O filme quase faz um milagre : ele chega perto de nos comunicar o segredo da música. Há um diálogo final entre Marielle e Depardieu que é absoluto sublime. O aluno tenta obter o segredo do mestre. Nós o obtemos. O filme é também um manifesto de um mundo perdido : mundo em que se criava e se vivia para Deus, para a eternidade, para o atemporal. Corneau venceu 8 césares em 1991. Mereceu todos. Eis um corajoso e original ! nota 8.
COWBOY de Delmer Daves com Glenn Ford e Jack Lemmon
Nesta história de um atendente de hotel que quer ser cowboy temos tudo aquilo que pedimos : ação, emoção e boas atuações. Entramos na vida de bois, cavalos, índios, espaço aberto, poeira. A violência é constante e para sobreviver é preciso ser individualista e frio. Jack dá show, mas Ford, ator subestimado, impressiona mais. Seu cowboy é a imagem da vida na estrada. Belíssimo. Nota 8.

CANDIDO OU O OTIMISMO- VOLTAIRE

Foi aos 14 anos, numa madrugada, que lí este conto pela primeira vez. Termino hoje, tanto tempo depois, de o reler pela terceira vez. E continuo sentindo um prazer imenso em reencontrar Candido, Pangloss, Martinho, Cunegundes, Paquette e tanta gente mais. Ao contrário de livros que nos decepcionam numa segunda leitura, Candido permanece com o mesmo brilho, o mesmo encanto, dando tanto para quem o encontra.
Candido nasce rico, é expulso de casa e sofre castigos hilariantes na Bulgária, Portugal, Argentina, Paraguai, Colômbia, Suriname, Espanha, Veneza e Turquia. Tudo é possível e tudo acontece : guerras, inquisição, escravidão, enriquecimento, miséria, estupros, coincidências absurdas. A história, colorida e carnavalesca, tem a ação de um sonho frenético e o clima de uma lenda oriental. É absolutamente apaixonante.
Relendo-a, percebo que passei todos esses anos plagiando esta história, levando seu molde para peças e noveletas que escreví. Pois é um livro sobre estradas, filósofos encontrados em bosques, em mares, em estalagens. Frases simples que nortearam meus pensamentos, ações que são rememoradas em toda ação que faço. Voltaire se tornou meu guia. Por causa do adorável Candido.
O que motivou o gênio do século XVIII a escrever Candide foi o desejo de desbancar Leibniz. A pena de Voltaire, ácida, crua, pessimista, mostra a tolice do otimismo, dessa caduquice de se imaginar ser este " o melhor dos mundos ". É Pangloss, mestre de Candido, o filósofo otimista, que pensa ser tudo pura bondade, que toda ação é guiada para o bem geral, que a natureza é a própria perfeição. Mas Voltaire também joga farpas contra Rousseau e seu bom selvagem, contra a igreja católica, contra a nobresa, contra muçulmanos e judeus, contra a França e a Espanha e Veneza também. É um pessimismo orgulhoso, solar, ativo, cheio de humor, humor ácido, que faz pensar.
Voltaire crê na inteligência. Sua fé é a fé do século em que viveu : a fé no futuro, no triunfo da razão. Sabemos hoje que a razão jamais teve sua vitória. Que o século seguinte ao de Voltaire foi o século do trabalho infantil, da ilusão romântica, do colonialismo e da industrialização do mundo. E que o XX seria o da guerra sistemática, do terrorismo e da desumanização do homem. A razão nunca foi absoluta. Mas Voltaire acreditava em sua vitória. No racionalismo de se poder viver como se pode e de se deixar viver. Acreditava no fim de toda igreja, de toda tirania e da guerra. Não aconteceu. Bem...

Ele termina o conto de forma magnífica : Candido e Martinho ( o sempre pessimista ) abrem mão do filosofar. Ao homem compete cuidar de seu jardim.
Maravilhoso século que nos deu Voltaire ! E Newton, Mozart, Haydn, John Locke, Franklyn, Goethe, Jefferson, Swift e Sterne. Gigantes. Candido é gigantesco. Um conto ( 70 páginas ) que ecoa para todo o sempre. Que brilha, cintila, educa, diverte e faz rir. Candido justifica Voltaire, a literatura francesa, o século das luzes. Aprendemos a ler para poder penetrar em livros como este. Leia-o. Sempre e já.

da melancolia, da deprê, do trabalho...

A tristeza já foi chamada de melancolia. Hoje é depressão. Deprê é a tristeza sem poesia. Melancolia é uma nuvem de solidão. O melancólico sofre por perceber ser o mundo errado. O deprimido sofre por acreditar na alegria de todos e ele, pobre ser, não conseguir participar dessa ilusória festa geral. O melancólico critica a vida, o deprê se critica.
A melancolia é produtiva. Na pior das hipóteses nos dá chatos pretensiosos. A deprê não produz nada, é o vazio da fertilidade. Creia : nenhum verdadeiro deprimido torna-se artista. No máximo, ele é um orfão profissional. O melancólico constrói mundos alternativos. Feitos de lágrimas, saudades e rancor. Os dois são vistos como perdedores. O deprimido acredita ser um derrotado, o melancólico tem orgulho de sua derrota, para ele, quanto mais distante deste mundo, melhor. O deprê ansia por ser aceito. Consome. Consolos para uma tristeza que não se cura. Consome remédios, terapias, livros de auto-ajuda, filmes bacaninhas, canções que acalmam. Consome bebida, cigarro, festas sem sentido, baladas frustrantes, roupas novas que nunca usa, viagens sem aventura e aventuras sem viagens. E se entrega ao vazio da impotência. Da infertilidade.
O melancólico, com sua alma velha e romântica, desconfia de toda ciência. Pode até usar remédios, mas usa-os errado. Vai a terapia para desafiar a própria terapia. Cria sua crença. Se entrega a livros de poesia, de simbolismo místico. Viaja nas notas de canções que ninguém escuta, são só dele, e se alguém mais as ouvir, o melancólico melancolicamente deixa de apreciá-las. Os seus filmes são filmes sobre os sonhadores, os fora de lugar, os fora do tempo. Ele foge de baladas e de festas, foge de tudo que lhe pareça comum, banal, vulgar. A melancolia é incurável por ser amada pelo triste. Ele mantém esse doloroso orgulho. A potência de gerar desesperança.
A melancolia só é possível no mundo da arte e da religião. Tristeza que se espelha no santo e no poeta. A depressão é filha da ciência e da indústria. Tristeza que se espelha na funcionalidade e na utilidade. A pergunta do primeiro é : Porque o mundo é tão sem sentido ? O segundo pergunta : Porque eu sou assim ? O melancólico olha e sofre. O deprimido não olha, fecha-se em seu umbigo.
Aldous Huxley aqui no Brasil, em 1960, disse numa palestra que o mundo caminhava para a imagem exata do inferno dos hindús. Nos Upanishads, eles descrevem o inferno como o reino do desejo sem possibilidade de saciedade. Você quer, obtém, e continua desejando. O deprimido é o ex-desejante. Ele acredita que o erro foi dele. Crê nesse inferno. O melancólico culpa o mundo. Percebe a armadilha, mas fica sofrendo por ela existir.
O que pergunto é : Para quem você vive ? Seu trabalho é mero desejo de consumir, ou você trabalha por alguém ou para algum tipo de ideal ? Existe algum sentido em sua dor, ou sua dor é mera disfunção de um tipo de erro de fabricação ? Você crê na alegria do mundo ou procura a felicidade ? Percebe a diferença entre o alegre, sempre ligado, sorrindo, histéricamente falante, cheio de planos e truques; e o feliz, satisfeito, portanto, estável.
O mundo, hoje, ama o alegre e desencoraja o feliz. O alegre é otimista, mas ele precisa de coisas para continuar feliz. Ele se move, compra, agita. O feliz é realista. Ele sabe que sua felicidade independe do exterior. Ele vive. O alegre depende de fazer, o feliz precisa de paz.
O melancólico é velho como um campo devastado pela guerra, um coração partido pelo fim das coisas, uma alma aterrada pela imensa frieza do cosmos e dos deuses. O deprimido é moderno como um computador mal programado, uma metrópole devastada pela solidão, um medicamento que vicia, alma aterrada pela propaganda falsa e tendenciosa.
Com meus Bergmans, meus Vigo, meu Yeats e meu MORRO DOS VENTOS UIVANTES, vocês sabem qual meu partido. E eu amo esse partido... como o amo...

bem perto da costa- john updike

Mesmo os críticos que não morrem de amores por Updike, reconhecem a sua maestria como crítico e resenhista. Neste livro lemos o lado comentarista de cultura do autor americano. E ele se mostra ao nível de Wilson, Vidal e Tynan.
Primeiro uma observação : é surpreendente a maneira como, de acordo com o amadurecimento, mudamos a maneira de olhar a arte. Enquanto somos muito verdes, tudo o que procuramos em um livro ou filme é emoção. Sómente o ultra-aparente nos toca. Queremos criatividade pura e fogos de artifício da emotividade. Com a experiência notamos que é relativamente fácil ser "brilhante". Passamos a procurar algo além do brilho : estilo. A habilidade de se fazer bem passa a ser valorizada. Passamos a entender as dificuldades de se saber, de se dominar uma linguagem, a originalidade sutil dos mestres.
Updike nunca posssuiu o choque vulgar de Mailer ou Capote, e nunca foi modernista como Faulkner ou Dos Passos. Seu modelo é o da escrita perfeita, do saber fazer, da clareza objetiva.
Neste volume ele dá uma aula de observação, percepção e belo estilo. Updike nota o objetivo do autor por detrás do aparente, mostra suas falhas e aponta sua originalidade ( quando ela existe ).
Seu primeiro texto é uma bem-humorada queixa sobre o excesso de reverência da crítica americana em relação a Henry James. Ele concorda que James é um mestre, mas nos faz rir com os ridículos de idolatria de publicações sobre literatura que tratam tudo o que James escreveu ou falou como mensagens de um deus americano.
Em seguida vêm três textos de gênio. Os três fundadores da alma artística americana : Hawthorne, Melville e Whitman. Todos devedores de Emerson ( ele cita um texto de Emerson, adorado por Whitman, que é ponto de partida de tudo aquilo que Walt escreveu. ) De uma forma clara e cheia de leveza, John faz com que vejamos nos três o nascimento de tudo aquilo que fez a grandeza da América, e consequentemente, do século XX. O texto sobre Melville é antológico. Ele segue, obra a obra, tudo aquilo que Herman fez e viveu, toda sua estranheza arredia, exibindo esse caráter único dos EUA : uma nação profundamente religiosa e ao mesmo tempo, completamente materialista.
Vem então um emocionante comentário sobre James Joyce. O irlandês é visto como símbolo do autor comprometido com sua auto-satisfação, um exemplo de opção por sua fé em sí- mesmo, de integridade contra pressões externas. Fantástica a citação do único encontro de Joyce e Proust, encontro com testemunhas. Foi num chá. Joyce disse a Marcel : " Meu estômago ainda me mata! E estou quase cego ! Se minha cabeça parasse de doer !" E o francês replicou : " Meu fígado é minha cruz! E meus pulmões não suportam este ar empestiado ! " Os dois maiores gênios dos últimos cem anos, passaram seu único encontro falando de doenças !
Páginas sobre Heminguay e Edmund Wilson falam da crueldade pseudo-viril de Ernest, e da obsessão por sexo do grande crítico de esquerda americano. Muito melhor é a explanação sobre as cartas trocadas entre Wilson e Vladimir Nabokov. O russo, exilado pela revolução, se torna mestre do idioma inglês, humorista satírico, fino e ousado, e cultor de um aristocracismo muito snob. Updike toma o partido de Vladimir, colocando seu talento nas alturas e vendo em Wilson um certo egoismo e egocentrismo exagerados.
Uma crítica sobre um livro de John Cheever. Updike escreve o que penso : de 1960 para cá, Cheever ocupa um posto central. Mestre de criatividade original, cômico delicioso, estilista objetivo e surpreendente.
Como bela é sua apreciação de Beckett, visto como o criador do romance atual : aquele em que o único personagem é o autor. O romance da mente de quem escreve. Junto a esse escrito, vem outro grande autor da Irlanda : Flann O'Brien. De certo modo o oposto de Beckett. Flann permaneceu na velha terra verde, não emigrou, criou montes de personagens e manteve viva a tradição do nonsense irlandês. ( Nonsense que abunda em Beckett- que Updike adora, e Joyce ).
Celine e Gunter Grass são criticados. Os dois são mostrados como donos de personalidades ruins, de intenções dúbias e de um talento mal usado.
Mais positivo é o texto sobre Milan Kundera. Eu não sabia que Kundera fora professor de cinema em Praga e que Milos Forman fora seu aluno. Updike aponta como o sexo em Kundera é triste e o fato de Kundera ter apontado o fastio pelo corpo feminino, decorrente do excesso de exposição. Frase de Kundera : " A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. "
Wallace Stevens. Melhor poeta americano desde Eliot. Updike reafirma isso, como Bloom não se cansa de dizer. Eu lí Stevens anos atrás. Se ele não me pega como Eliot é porque Stevens é mais discreto, sutil, engenhoso. Eliot te toca de primeira. A vida de Wallace foi fantástica. Família classe média do leste americano, tornou-se bem sucedido advogado. Escrevia nas horas vagas, muito, e teve uma vida familiar padrão. Elegante, bem apessoado, seus versos são musicais, brilhantes, simbólicos, cristalinos. " A realidade é um vazio. A verdade não importa." " Numa era de descrença, é o poeta quem nos recorda as satisfações da crença. No estilo." " Quando trocamos um prazer inferior por um superior, elevamos os homens na escala da existência." "O amor ao belo exclui o mal. A única fonte de transcendencia na vida é ser decente na vida privada." São frases de cartas de Stevens. Será que os autores ainda escrevem cartas ?
Outro grande poeta é Auden. Mas ao contrário do americano, este inglês foi muito famoso ainda vivo e decaiu em popularidade após sua morte. Updike mostra o lado infantil de Auden, um jeito de criança protegida, mimada, que ele sempre exibiu. Uma personalidade inescrutável.
Levi-Strauss. John Updike mostra o brilho de certas frases do famosíssimo antropólogo francês ( a melhor : "O homem civilizado é limpo, mas nesse estar limpo ele suja a natureza. O primitivo é sujo, mas tudo ao seu redor é imaculado. ) Quando mostra seu lado mais "viajante", Strauss exagera em seu deslumbre com o próprio intelecto, e chuta interpretações sobre a sociedade dos índios da América que são totalmente arbitrárias. Jamais saberemos o que uma lenda significava para um cheyenne do século xv. Sabemos o que significa para nós.
Borges. Updike glorifica a criatividade aterradora do argentino. Criatividade que é sempre baseada na lógica pura, na clareza, no saber escrever. Updike cita os autores que Borges amava: Orwell, Stevenson e Lewis Carroll. A forma como Borges depurava seu texto, até transformá-lo numa pequena jóia.
E por fim, um escrito sobre cinema. John Updike fala da maravilha que são os atores que nos fazem ser felizes por podermos os olhar. Atores que passam em seu gestual o prazer de viver, a alegria. Ele cita Erroll Flynn como o ícone desse tipo de astro ( eu penso o mesmo. ) e escreve sobre Doris Day, a atriz que personifica o sol e o sorriso feliz. É um texto afetivo, biográfico, e brilhante. John nos recorda que no cinema o que permanece é o ator que ao fazer um papel ( bem feito sempre ) consegue continuar sendo ele mesmo todo o tempo. Não é o canastrão, pois esse é menos que sí-próprio, é o ator que irradia uma personalidade tão fascinante que nos pegamos interessados no filme e nele mesmo, em seus gestos e sua voz. Quando esse carisma se une ao calor da felicidade, está feito o mito. Uma imagem na tela que nos faz o bem, todo o tempo e sem o saber. Doris tinha isso. Flynn tinha isso. ( E eu diria que Cary Grant era uma fonte inesgotável disso. )
Que pena que este livro tão prazeroso tenha acabado !!!!! Fica um sabor de quero muito mais ! John Updike é viciante.

IF...

Para se entender a Inglaterra é preciso ter sempre em mente seu amor, absurdo, cômico, surreal, pela tradição, pelos rituais e pela disciplina. Foi isso que garantiu a sobrevivência da família real, e é isso que você deve lembrar sempre, ao ver este filme.
Colégios de elite, ou de pretendentes a ser parte da elite. Eles precisam ser austeros, antigos e disciplinadores. Pois não é fácil ascender na sociedade inglesa. Todos querem um dia ser chamados de "Sir" e melhor, "Lord". Você pode ser rico, poderoso, mas só chegará ao degrau mais alto quando seu título chegar. Lembre que o que doeu, para eles, na morte de Lady Di, foi o fato de ela ter morrido ao lado de um milionário plebeu. E imigrante!!!!!!
Para ascender é preciso se ter estudado numa rigorosa escola britânica. E estudar lá, é ser feito soldado aos 7 anos. Isso fez a glória do império.
Tudo na Inglaterra se subjugava/ subjuga a isso. Todo ator, até Michael Caine surgir, precisava falar como um locutor da BBC, e mesmo as bandas de rock antigas tinham roupas e sotaque eduardiano. ( A excessão eram os Stones. Falavam com falso sotaque americano. ) Com a imigração as coisas mudaram, pouco, pois toda banda inglesa ainda afeta ares de "arte", de ironia nobre, de afetação sangue azul. Balançam o rabo para a rainha.
No festival de Cannes ( aliás ninguém rí mais dessa pose inglesa que os republicanos franceses ), em 1968, IF de Lindsay Anderson ganhou a Palma de Ouro. Foi o festival da anarquia : Godard e Truffaut se penduraram nas cortinas do Palácio do Cinema para impedir a continuação do festival : - Como ver filmes enquanto o mundo pega fogo ? Jean-Luc e François conseguiram; o festival foi interrompido.
IF tem uma frase lapidar : "- UM TIRO BEM DADO PODE MUDAR TODO O MUNDO. " Quem diz isso é o personagem de Malcolm MacDowell. Ele é um estudante rebelde, insolente, culto, sujo, que tenta preservar sua individualidade em ambiente que prega a submissão.
Por hora e meia, vemos todo o horror do sistema de opressão, do homossexualismo imposto, das pequenas fofocas, dos favores interesseiros daquela escola. Vemos o grotesco de seus mestres, de seu diretor, dos jogos de rugby, do jeito marcial de tudo.
E vemos a poesia ( real ou imaginária ? ) que tenta sobreviver em meio aqueles açoites e correntes. A cena da surra é das mais insuportáveis já filmadas.
Em sua meia hora final, tudo muda. O filme se torna surreal, não sabemos se o que vemos é verdade ou delírio. Os 3 rebeldes matam, indiscriminadamente, todo mundo : estudantes, professores, funcionários, religiosos, soldados. Revolução só é possível com sangue, advoga o filme, e se inocentes forem mortos, terão morrido por boa causa.
Lindsay Anderson advoga isso. Tem opinião, tem coragem. Penso se alguém produziria esse filme hoje. Não é um filme underground, Anderson era um dos mais famosos diretores ingleses : propagador do cinema raivoso - "Angry Young Cinema" - e na equipe do filme estão os futuros diretores Stephen Frears e Chris Menges.
O filme é forte. Toca pontos sensíveis de nosso senso de justiça e de dever. Defende teses libertárias, mas de uma forma inglesa : não chega a absoluta negação. Anderson quer a liberdade, Godard quer a destruição.
Podemos dizer ainda que este filme é um anti-SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS. O filme de Peter Weir é a cara dos anos 80 : vai contra um sistema, mas não rompe nenhum limite. Pauline Kael falou bem : "COMO LEVAR A SÉRIO UM FILME QUE PREGA A LIBERDADE, FILMANDO TUDO DE UM MODO TÃO CONSERVADOR ? " O filme de Weir é tristezinho. O de Anderson é irado. Ele prega a liberdade e filma de modo livre. Tudo nele é aspiração a ser novo. Tudo nele é violência.
Maravilhosamente fotografado, soberbamente interpretado, cheio de alusões a Lacan, Ponty e Levi-Strauss, IF... é uma quase obra-prima do cinema revolucionário, um poderoso libelo pelo desejo. Sua última cena, Malcolm metralhando tudo e todos sobre o telhado da escola, a metralhadora em pose de falo, é de um comovente desespero.
Encontrei a palavra : IF... é o desespero.
Ps: Em ano de 2001 / IF... , O Oscar foi para o hiper-conservador OLIVER.
Ps II : Elefante é o IF de hoje. Violência entediada e sem filosofia alguma. UM TIRO BEM DADO MUDA O MUNDO. Elefante prova que não se sabe mais atirar. TIROS A ESMO QUE REAFIRMAM O QUE JÁ EXISTE. O tédio nos matará...

RETRATO DA LOUCURA, WEEK END- GODARD

Eu odiei, odiei, odiei este filme ! Nunca nada me deixou tão irritado, tão enojado, tão perturbado em um filme. Filme que faz todo o sentido, que esbanja talento, mas que me irrita por ser um filme MAU.
Filmes ruins me dão tédio. Despertam meu desprezo. Mas este, me dá ódio. Pois é um filme que vai contra TUDO aquilo que acredito.
Não procure uma história nele. Mas não é esse seu problema. O que me irrita é que em seu inicio este filme me seduz, para depois jogar em minha cara pura maldade. Sangue fake, mortes às dúzias ( inclusive algumas reais ), palavras de ordem. O filme prega, aberta e cruamente, a revolução. Mas não é uma revoluçãozinha, é a morte da burguesia. E para isso, Jean-Luc prega a validade de atentados, sequestros, bombas, sabotagem e guerrilha. Negros e árabes devem matar quem os oprimiu, pois a liberdade só nasce da violência.
O filme é todo nesse tom. Começa com um letreiro dizendo ter sido achado no lixo e que se trata de um filme de merda. O que vemos são burgueses, escravos dos carros e da moda, das marcas de roupas, perdidos em colossal e sanguinolento engarrafamento. Desastres e corpos abundam e mais ao final um grupo terrorista mata e come turistas ingleses. A revolução domina as imagens, que são tecnicamente brilhantes, mas que proclamam o FIM DO CINEMA.
E não foi da boca pra fora : após este filme, Godard ficaria anos sem fazer um filme "normal". Para ele, o cinema morria lá, em WEEK END.
Algumas tiradas: o casal burguês encontra Emily Bronte e Lewis Carrol na floresta. Os dois escritores falam por símbolos, de forma livresca, poética; mas tudo o que o casal quer ouvir é onde fica Orville ( cidade onde precisam ir para matar a mãe de um deles e receber uma herança ). Ateiam fogo em Bronte e pegam carona com imigrantes africanos. São momentos assim que fazem com que eu prossiga vendo o filme. Mas logo são jogadas mais palavras de ordem, mais revolução radical, mais fim-do-mundo.
Que caminho percorreu Jean-Luc ! De ACOSSADO, um policial existencialista, ainda pop, passando pelos maravilhosos filmes com ANA KARINA, até chegar na explosão criativa e genial de PIERROT LE FOU. Tudo nele era alegria, juventude, brilho e talento. Para então, após tantos filmes em tão poucos anos ( sete filmes em quatro anos ! ) ele explodir tudo, destruir o cinema, amputar sua carreira, berrar ódio aos quatro ventos, com este mau, odioso, repulsivo WEEK END.
Após isto, teríamos o incêndio : as barricadas, o caos, a anarquia, o vale tudo de 1968. REICH/ MAO/LACAN no poder. Nos anos seguintes perceberíamos que o exagero se instalara. A revolução, como toda revolução verdadeira, passara dos limites. Se tornara assassina. Reich era um charlatão, Mao um carrasco, Lacan um egocêntrico indecifrável. Os Baader Meinhoff, os Setembro Negro, os Exército Simbionês, os Brigadas Vermelhas, se mostrariam como grupos enlouquecidos, distantes dos ideais libertários ( e ingênuos ) de gente como Godard, Loach, Foucault e Pinter. Os inspirados slogans de 68 ( É PROIBIDO PROIBIR, FAÇA AMOR NÃO FAÇA A GUERRA e principalmente o genial A IMAGINAÇÃO NO PODER ) foram mortos e enterrados em 71/72. WEEK END é o início da morte, o grito da agonia, o erro que anuncia o caos.
Mas é preciso.
Para conhecermos o dinossáurico mundo histérico que foi dominante, antes da deprê radical se instalar e nos tornar caramujos de jardim cibernético. Um mundo onde existiam inimigos declarados, ódios totais e mortais, paixões pelas quais se morria e se matava. Opções, escolhas, vidas possíveis.
Hoje se morre por um celular e se mata por um par de tênis. Agora fingimos amizade e compreensão à todos, condenamos todo ato natural e não pensado e posamos de bonzinhos. Não gritamos, suspiramos. Não daríamos a vida por nada, e por isso, ninguém vai morrer por nós. Não pregamos maldades, mas transformamos o mundo numa bola de aço inox, liso, frio, impessoal, entediantemente uniforme.
WEEK END é odioso porque me mostra algo que perdemos : CORAGEM. A coragem de ser ruim, mau, de errar, de botar a cara pra bater, DE CRER NUMA IDÉIA E IR ATÉ O LIMITE COM ELA.
WEEK END é vivo. E eu, zumbi plugado em aparelhos moderninhos, odeio o que cheira e fede, e creia, este filme fede, como fede...