A BEM AMADA / KHADJI MURAT

Thomas Hardy teve uma longa carreira. Seu último livro é este, "A BEM AMADA", novela curta, reescrita várias vezes pelo autor. Após este título, Hardy se dedicaria apenas a poesia. E do que trata a novela ?
Um jovem de posses, escultor, passa sua vida atrás da alma da tal "bem amada", símbolo da mulher perfeita- sublime-ideal. Pensa várias vezes tê-la achado, mas esse espírito logo foge de sí, transferindo-se para outra forma feminina, outro corpo. Essa primeira parte da narrativa se chama " Um jovem de 20 anos". A segunda parte é "Um jovem de 40 anos".
Uma antiga amada vem a morrer e ele sente que era ela, então, seu grande amor. Agora que está morta e inacessível, nosso jovem de 40 vê o quanto a amava. Ato imediato, apaixona-se pela filha da falecida, imagem mais tosca da mãe. Eis a nova encarnação da bem-amada.
No terceiro segmento, "Um jovem de 60 anos", ele conhece a filha da filha de sua amada. A mãe dessa menina, sua ex- musa, tenta fazer com que eles se casem. Ele enfrenta esse ridículo, mas ela não o quer ( como a mãe não o desejou ).
Hardy se dá muito melhor quando é naturalista. Aqui, tentando ser também simbolista, ele se torna enfadonho. Apesar de curto, o livro não avança, não flui, não seduz. Uma pena, pois o tema é maravilhoso.
Falar de "Khadji Murat" é falar de seu autor, e falar de Leon Tolstoi é falar do maior de todos. Chamado por muitos de "o melhor conto de aventuras já escrito", aqui se fala de tudo que ainda importa. Heroísmo, familia, camaradagem, guerra, miséria, e até de ecologia, Tolstoi fala.
Khadji é um rebelde muçulmano que resolve lutar ao lado de seus antigos inimigos, os russos. O cenário é a rebelião na Tchetchenia ( vejam só... os problemas não mudam... ) e Khadji é orgulhoso, individualista, hábil e muito religioso. Em 120 páginas, lidas em poucas horas, dúzias de personagens surgem nítidos, vivos, a respirar. Tolstoi mostra com imagens simples e fortes a selvageria do homem, o ridículo que é a guerra, a traição pelo dinheiro, a violencia sem justiça, o absurdo e a futilidade da vaidade. Ele mostra, diz, pinta. Nos envolve no cenário gelado, sentimos o gosto da comida, respiramos a pólvora e a névoa. Os golpes que decepam, nós os sentimos.
Khadji não é bom. Ele é um homem grande. Tolstoi é um homem grande. E esta história, simples, curta e breve, soa vasta, imensa, de verdade plena.
Ler "Khadji Murat" é ver o espírito do homem, saborear o salgado gosto da vida e se tornar um pouco menos iludido com o brilho tolo do mundo. Tolstoi foi mais que um escritor, foi um guru.

respondendo aos amigos

Alguns amigos que encontrei recentemente apontaram certas falhas em coisas que andei escrevendo. O que mais os irritou foi o comentário sobre o texto de Walter Salles e o fato de eu ( e muitos outros ) termos dito que os anos 90 foram um tempo "Led Zeppelineano ".
Primeiro o Led.
Todos sabem que sou fã do Roxy Music, de Kevin Ayers e de Serge Gainsborg. Nada é menos Zeppelineano que esses caras. Mas também sou apaixonado pelo Led ( assim como por Rap, Mozart e Secos e Molhados ). Os anos 80 foram Roxy. O estilo era mais importante que o som. Tudo era dúbio, suave, tristonho, glacial. De Cure à Pet Shop Boys, de Bowie à Prince, a marca da época era a melancolia afetada, fake.
A década seguinte rompeu com isso. Rompeu via Pixies, Nirvana, Public Enemy, Jane's Addiction. Rompeu com shows ao ar livre, roupas largadas, guitarras e bateria "de verdade", maconha e hippismo de segunda mão. O Led deixou de ser ridículo e passou a ser cult. O pessoal do rap sampleava a batera de Bonham, assim como o povo do eletrônico cultuava "Kashmir" e sampleava tudo da banda. Me causa espanto ver gente que adora "Quase Famosos" não reconhecer tal obviedade. Queens of stone age, Foo fighters, Mettalica, todos têm a atitude "viking" do Led Zeppelin. Banda que considero a mais poderosa da história e consequentemente, a mais odiada pelas "tiazinhas do pop choroso". Tiazinhas que dominam o pop atual. ( Com belas excessões ).
Quanto a Salles, seu texto é um desabafo de quem viu o paraíso do cinema autoral e é obrigado a conviver hoje com falsos mercadores de imagens.
É claro que existem bons filmes sendo feitos ! Eu sou apaixonado pelos filmes dos Coen, de Tim Burton, os desenhos da Pixar, Almodovar, e um monte de outros. Mas o que acontece é que o cinema está estagnado. Não existe mais uma evolução. Cada filme bom é bom em sí-mesmo, não é parte de uma corrente, de um movimento ascendente ( e minha sensação é a de que todo bom filme é descendente, aponta a origem e nunca o futuro ). Os bons diretores de hoje estão acuados. Seus filmes não produzem ressonância. E ressonância é a marca do talento.
Faça uma experiência : Veja quantas vezes seus pais, tios ou avôs têm ido ao cinema. Pergunte ao garçom de seu restaurante, ao seu motorista, que filmes ele foi ver no cinema. Acredite-me, meus tios iam ver "Último Tango", "Laranja Mecânica" e "Taxi Driver", e o povão, prova maior de sucesso de bilheteria, fazia filas em "Tubarão" ou "Star Wars".
Os sucessos de bilheteria são sucessos de multiplex, e o povão não vai ao shopping. O shopping lhes deixa inibidos e frustrados. O cinema de rua era seu meio. Hoje, só a pirataria os atende.
Quanto a ressonância. Vá a sessão de cinema numa livraria e veja quais os títulos. Livros sobre Hitchcock, Audrey, Bogart, Ford e Truffaut. Porquê ? É óbvio que eles vendem. Mas é mais que isso. Eles são assunto. Dá para se escrever um livro sobre "Vertigo". Por mais que você adore "Pulp Fiction", bem, 30 páginas esgotam o assunto.
Se você vai escrever sobre Johnny Depp você acaba falando de fofocas sobre ele. Se você escreve sobre Brando, você escreve sobre a história do testro americano, a revolução de costumes, a solidão da fama, a esquisitice do egocentrismo, e o cinema autoral dos anos 70. E fofocas também. Há muito assunto. O que escrever sobre Paul Thomas Anderson ? Ele é bom e adora Robert Altman. Que mais ? E sobre Michael Mann ? Mesmo Spielberg não rende assunto. No fundo todos são fãs, nerds de salas escuras. A vida deles está nos filmes. Portanto suas experiências são citações do que viram na tela, não daquilo que viveram.
De Sica podia falar de pobreza e guerra porque viveu ao lado da guerra e da fome. Não a assistira num filme. Truffaut falava de crianças delinquentes porque fora um menino de rua. Godard podia falar de revolução, pois vivia ao lado de grupos maoístas revolucinários. Um diretor hoje, quando fala de sua vida real, falará de solidão e tédio. E da vida na escola. É tudo o que ele viveu. Quando fala de guerra, crime, miséria, está falando do que viu em De Sica, Truffaut ou Hawks. Por isso que Scorsese brilha ao falar de crime, Allen de neurose ou Almodovar de confusão sexual. Eles viveram isso. Tarantino, Coen ou Burton, por melhor que sejam ( e são ), pegam tudo de segunda mão. Eles dizem coisas que viram num filme. Quando voce vai falar deles, acaba falando de suas referências. O cinema do terceiro mundo encanta certos críticos do primeiro porque esses realisadores ainda viram alguma vida fora da tela. Viveram algo além da school. Mas mesmo esses, por falta de público, se tornam repetitivos, ratos de festivais, secam. Não dão cria. Não lançam um movimento.
Acho que respondí.

chet baker, aldous huxley e jornalismo cultural

Aproveito esses dias de folga e chuva para reorganizar minha coleção de recortes antigos de jornal. Sim, sou desses idiotas que recortam jornal. No meu caso recortava. Não há o que recortar hoje.
Viajando pelos recortes, alguns do JORNAL DA TARDE, outros do ESTADÃO, muitos da FOLHA; leio críticas de cinema da década de 70 ( TAXI DRIVER, ANNIE HALL, APOCALYPSE NOW, CASANOVA, DERSU UZALA ). Um tipo de crítica diferente. Não se falava em bilheteria. Se via muito o viés politico e social do cinema. Se cobrava muito do diretor.
Viajo aos guias de salas e me surpreendo. Muitas salas na avenida Santo Amaro, nas ruas de Santana, nas ruas de Pinheiros e até a avenida Francisco Morato tinha sua sala. Existiam dois cinemas para se ver cinema no carro ( auto-cine ) e salas imensas na São João, na Ipiranga, na Domingos de Morais.
Críticas de discos de meu critico favorito, Ezequiel Neves. Ele nunca era imparcial. Quando gostava de um grupo, tudo era "descaralhante". Quando era ruim, ele xingava e acabava com a raça da banda. Foi ele quem me instruiu sobre Roxy, Lou, Talking Heads, Blondie e Miles Davis.
Uma série do JT com a história do jazz. Isso mesmo, eles publicaram em várias edições toda a história do jazz. Foi lá que aprendi o que sei. Depois veio a história da ópera e da música sinfônica.
Os dez filmes favoritos de Inácio Araújo : Rio Bravo do Hawks é o primeiro. Depois vem A Palavra do Dreyer, Viagem à Tokyo de Ozu, Dr.Mabuse de Lang, O Beijo Amargo de Aldrich, Alphaville de Godard, A Marca da Maldade do Welles, Vertigo de Hitchcock, Pickpocket do Bresson e Tabu do Murnau. Os dez do Ruy Castro : Cantando na Chuva, Kane, Casablanca, A Montanha dos sete Abutres, A Malvada, Dr.Fantástico, Laura, Vertigo, Luzes da Cidade e O Homem que Matou o Facínora.
Os dez discos do Alvaro Pereira Jr. London Calling do Clash é o primeiro. E daí vem Mission of Burma, Sex Pistols, Velvet Underground, Joy Division, o Satanic dos Stones, Ramones, Beatles Revolver, Pretenders e Stooges. Os dez do Zeca Camargo : Prince Parade é o primeiro. E vem U2, Talking Heads, Velvet Underground, Sex Pistols, Malcolm McLaren, New Order, Jesus and Mary Chain, Bowie Low, e De La Soul. São listas de 1999.
Matéria de Antonio Callado sobre Aldous Huxley no Brasil. Fico sabendo que foi o avô de Huxley quem inventou a palavra Agnóstico. Que Huxley veio ao Brasil em 1960. Que encontrou Claudio Villas-Boas no Xingu ( não avisaram Claudio quem ele era. Mas Claudio assim que o viu disse : - Voce não é Aldous Huxley ? Adoro Contraponto ! ). Huxley era um sábio. O último talvez. Sabia muito sobre muitas coisas. Dizia que nós atingimos o nirvana se na hora da morte a aceitarmos com alegria. Tomava LSD, que era legal, para encontrar Deus. Tomou dois na hora de morrer. Ele pensava que o mundo se tornava o inferno descrito nos textos indús. Onde o desejo cresce sem cessar e jamais poderá ser satisfeito. Contraponto foi moda nos anos 30. Huxley se apaixonou pelas borboletas do Xingu. Huxley foi um intelectual que dizia : Não ouço ou leio algo por ser relevante. Leio e escuto só o que me dá prazer. E, por felicidade, Beethoven e Shakespeare me dão muito prazer.
Viajando pelos recortes encontro pilhas de textos sobre Yeats. A Folha em 1988 publicou cinco páginas sobre meu ídolo maior. Textos de Haroldo de Campos, Paulo Vizioli, João Moura Jr. Sua vida : ministro do estado livre da Irlanda, poeta, místico espiritualista, dandy simbolista, apaixonado por Maud Gonne, recusado e apaixonado pela filha de Maud Gonne. Autor de teatro. Estudante de pintura. Um homem que viveu a luta entre " seu eu e seu anti-eu. O ser e sua máscara."
Textos escritos nos dias das mortes de Laurence Olivier, John Gielgud, John Huston, Miles Davis, Peter Sellers, Rex Harrison ( escrito por Paulo Francis ), Audrey Hepburn, David Niven, Bob Fosse, Chet Baker.
André Forastieri escrevendo sobre o Led Zeppelin em 1989. Dizendo que a década de 90 será do Led ( acertou. Foi a década de Pearl Jam, shows em estádios, baterias pesadas, cabelos longos, Red Hot, Stone Roses lançando um segundo disco muito Led, Foo Fighters, Soudgarden, Stone Temple Pilots ). Uma frase genial de André : " Nos anos 80 o Led foi odiado porque a década de 80 foi a década de mentirinha. A década das falsas aparências, do cinzento. O Led é preto no branco, é rude, é verdadeiro. A década de 80 é Smiths, grupo frouxo para uma geração frouxa."
E mais André, em texto estupendo, longo ( página inteira com letra miúda ) sobre DIAMOND DOGS do Bowie. Descrição de faixa por faixa, de músico por músico, dos shows, da capa, de tudo. Informação completa. E ele faz justiça : é o melhor de David.
Páginas sobre Chagall, sobre Doisneau, sobre Matisse.
Entregas do Oscar. A de 78, a de 83. Tantas mais... páginas longas, pouca foto, muito texto. James Stewart, Olivier, Kurosawa, Fellini, Cary Grant, até John Wayne e Fred Astaire, vivos. A graça de ver o Oscar era ver esses caras vivos. Quem quer ver Tom e Julia na platéia ?
A derrota do Brasil na Espanha em 82. Eu guardei. A Manchete do título da Itália : Bravi Ragazzi ! e antes, no dia da derrota, a foto linda do menino chorando.
Miles Davis tocando aqui. Dizzy, Grapelli, Ella, Brubeck, e Sinatra no Maracanã. O primeiro show dos Stones : 10 páginas na Folha. Paul in Rio, um caderno inteiro.
Luis Antonio Giron analisando toda a obra do Roxy Music. Maravilhosamente bem informado. E Alex Antunes falando de Ferry.
Paulo Francis escrevendo sobre teatro inglês, sobre a Broadway, sobre politica. Eu recortei e guardei.

Mas não adianta eu ficar aqui, descrevendo meus recortes. Como voces vão poder lê-los ?
Termino com uma pequena jóia. Um texto da Folha, de 88, escrito no dia da morte de Chet Baker. Matinas Suzuki escreveu. Um estilo que desapareceu de nossos jornais. Perto disto, o que se escreve hoje é texto de telegrama. Reproduzo apenas alguns trechos :
" Me custa muito conviver com a idéia de que estás morto. Havia sinais no ar, mas eu me recusava a aceitá-los....Não sei bem porque, mas na volta de Roma comprei, na estação de trem, o jornal La Republica. É morto il jazzista Chet Baker. E foi como se o trem saísse dos trilhos e penetrasse no transparente mar verde que via por minha janela esquerda....Na verdade havia perdido minha razão pela viagem. Porque uma das coisas que me moviam a suportar a rotina de malas, trens e hotéis, era o fato de poder passar horas, dias, perseguindo lojas de discos de todo o mundo, nas quais ia direto a seção jazz e a letra b.... lá voce estaria cantando só para mim. E isso era tudo...... e ao fim de tudo, só consigo pensar em voce cantando alone together. Voce morreu numa sexta 13. Espero que alguém cuide de mim."
Pioraram as pautas, os jornalistas, o espaço encurtou, o que aconteceu ? Não importa o que houve. O que desejo é que alguém cuide de nós.

LARANJA MECÂNICA- STANLEY KUBRICK

O livro, do grande Anthony Burgess, é uma maravilhosa sátira sobre a falta de escolha. No livro, todos são dirigidos pelo meio, ninguém pode, ou pior, deseja, escolher. Kubrick mudou todo o enfoque e faz aqui, o mais imoral e perverso dos filmes.
Primeiro a sedução.
Os bares e casas têm a estridência dos anos 70, que hoje parecem chic. A trilha, a primeira trilha eletrônica do cinema, é muito envolvente, quase apelativa. E há a energia glam do Alex feito por Malcolm McDowell em momento muito inspirado. O filme, sucesso de bilheteria, influenciou toda a maneira de ser dos jovens ingleses da época. Alex era o cara. E, pasmem, Alex é um assassino. O filme é o mais imoral por antecipar "ASSASSINOS POR NATUREZA" e outros que tais.
Toda sua primeira parte é maravilhosa. Alex comete crimes "belos". Os estupros são ballets, os espancamentos são obras de arte, Alex nos seduz com suas gírias, seu chapéu e sua bengala. Quando ele canta "Singin in the rain", já é o Gene Kelly do futuro. Nosso ideal.
Mas o filme pode ser pior. Na prisão, Alex se torna nosso santo. Todo guarda, nazista, todo detento, pervertido, é nosso inimigo. Somos Alex, e não há como negar, se Kubrick queria isso, ele conseguiu. Quando Alex é destruído, vamos ao fundo com ele. Nessa hora somos NÓS que perdemos Beethoven.
Curado, ele volta para casa. É genial a cena com os pais. E é dilacerante a via-crucis de nosso herói sendo trucidado por suas ex-vitimas. Quando ele chega à casa do escritor vem a cena do vinho. Poucos atores nos seduziram de forma mais completa.
Ele quase morre e renasce. Somos poupados da volta do Alex inicial. Se Kubrick tivesse mostrado Malcolm novamente de chapéu e bengala, matando velhos e estuprando mocinhas cantando Singin'... bem, provavelmente nosso orgasmo seria tão profundo que teríamos saído do cinema matando crianças e estuprando cães.
Recordo que o filme demorou para ser liberado. Quando entrou em cartaz, corri para o assistir e consegui entrar, apesar de ser menor. Era engraçado ver tantas senhoras e senhores, em salas lotadas, vendo cenas de sexo e de violência. Eu saí da sala muito confuso. Eu queria bater em alguém, qualquer um, mas não tive a coragem. Eu queria vingar Alex.
O que Kubrick desejou ? Assistindo o filme hoje, após décadas de violência e cinismo, fico tentando crer que a mensagem era a seguinte : Alex somos todos nós. Todos somos violentos. Quando essa violência nos é suprimida nos tornamos o que Alex se torna após a reeducação : deprimidos e assustados. A civilização atual nos tirou o direito de ser violento, isso pode ser um preço necessário, mas ao abrir mão disso, abrimos mão de todo o resto : coragem, alegria, camaradagem e "Beethoven". Alex não pode mais ouvir Beethoven.
Será esse seu sentido ? Talvez. Mas o mais provável é que este seja o mais niilista dos filmes. Num tempo em que o IRA matava estudantes na Inglaterra, o ETA ateava fogo na Espanha, as Brigadas Vermelhas matavam industriais pacatos na Itália, o Baader Meinhoff tacava bombas na Alemanha e os Panteras Negras criavam um exército negro nos EUA ; Kubrick nos diz que tudo é violência. Que para interromper a violência é preciso mais violência. E que entre a porrada tonta e juvenil de Alex e a porrada planejada e científica do Estado, a de Alex ao menos é sincera, corajosa, HUMANA.
O mundo enlouqueceu entre 66/78. Hoje ele sofre de depressão. E na esquizofrenia daqueles tempos perigosos, nada é mais emblemático que LARANJA MECÂNICA. Sedutor, ruim, imoral, metido, rude, e completamente genial.
Corajoso.
Hoje somos todos Alex reeducado : medrosos, acomodados, tristes e não se permitindo ouvir a Nona Sinfonia sem desejar morrer. O que nos foi tirado ? O que perdemos ?
Kubrick foi o XAMÃ da sétima arte. O único. Sua perda foi irreparável.

DE PALMA/PANDORA/RENOIR/JAGGER/FEITIÇO DO TEMPO/

SAUDAÇÕES de Brian de Palma com Robert de Niro e Gerrit Graham
Primeiro filme de Brian. Recém saído da escola, ele faz um longa que é retrato de seu tempo : amador, livre, caótico, ousado. Todos os temas que ele desenvolveria pelos 40 anos seguintes se encontram aqui : paranóia, sexo, realidade e imaginário, limites da liberdade. De Niro, muito jovem, já mostra o carisma que faria dele um ícone de sua geração. Um filme irregular, muito feliz, cheio de esperanças e de rebeldia alegre. Filho de Godard, Truffaut e Malle. Veja os extras! Nota 5.
IMPÉRIO DO CRIME de Joseph H. Lewis com Cornel Wilde, Richard Conte e Jean Wallace.
Uma obra-prima do filme noir. Escuridão e muita sombra, personagens angustiados, violência e sexo. Tudo filmado com exemplar sentido de clima, de sugestão, de ritmo, pelo subestimado Lewis. O roteiro, que trata de traição, funciona como uma bomba relógio : você espera todo o tempo pela explosão. Conte está sexy, cruel e estranhamente simpático. Há uma cena de sugestão de sexo oral surpreendentemente despudorada para a época e Jean faz uma heroína muito atraente. Em termos de filme noir, este é dos maiores. Nota DEZ.
PANDORA de Albert Lewin com Ava Gardner, James Mason, John Laurie.
Lewin era um excêntrico. Fez apenas dois filmes : Dorian Gray e este Pandora. E que filme louco!!! Ele trata de espíritos apaixonados, mulher fatal, touradas, maldições e Espanha. Tudo com a fotografia maravilhosa de Jack Cardiff, um dos maiores da história. Todas as cenas se passam no amanhecer ou no anoitecer, e o filme tem um ar de irrealidade hiper-colorida. Ava está bela como nunca, alguns closes chegam a se parecer com pinturas da renascença. Mason, grande ator, transpira tristeza neste drama poético exagerado e fascinante. Nada aqui faz sentido, mas o filme nos vicia como morfina. Um filme muito original que quase cai para o ridículo todo o tempo, mas que vence no final. Impressionantemente bonito. Nota DEZ.
3:10 TO YUMA de Delmer Daves com Glenn Ford, Van Heflin e Felicia Farr.
É superior a sua refilmagem com Crowe e Bale. É superior por ser mais seco, simples, direto. A fotografia, um preto e branco metálico, é muito eficiente e Glenn Ford tem um cinismo mais aliciante que o de Crowe. Um bom western. Nota 7.
ONDE ESTÁ A LIBERDADE ? de Roberto Rosselini com Totó.
De todos os diretores cult da história nenhum é técnicamente mais pobre que Rosselini. Chega a impressionar sua falta de habilidade para dirigir atores, para posicionar a câmera e principalmente para cortar. Sua fama se deve a sua coragem. A coragem de fazer filmes que ninguém queria fazer. Este trata do velho tema do presidiário que opta por voltar a prisão. Totó é ator gênio. Seu rosto, extremamente cômico, transmite dúzias de informações ao mesmo tempo. O filme é salvo por seu talento sem igual. Nota 5.
CANINOS BRANCOS de Randal Kleiser com Ethan Hawke e Klaus Maria Brandauer
Quem assistir esperando ver Jack London irá se decepcionar. O livro trata do cão-lobo, fala de evolucionismo. O filme é puro Disney. Boa paisagem, belo cão. Nota 3.
O FEITIÇO DO TEMPO de Harold Ramis com Bill Murray e Andie MacDowell.
O melhor crítico americano de hoje chama este filme de genial ( Roger Ebert ). Nem tanto. Mas ele merece a fama que tem. È aquele filme do dia que se repete para sempre. Murray, vítima desse encanto ( e o filme tem o mérito de não o explicar ) reage a princípio com desespero, depois se diverte, entra em depressão e aprende por fim a usar esse tempo. Descobre o outro. Este é chamado de o melhor retrato já filmado do que seria uma análise freudiana bem feita : um reviver de momentos que se eternizaram, até sua resignificação e superação. Bill é perfeito para fazer tipos derrotados e Andie nasceu para ser a ingênua feliz. O filme é muito melhor do que parece, chega a ter significados cosmológicos e existenciais. É um filme típico de "cinema independente esperto e cult" antes da aparição de Charlie Kauffman. Nota 7.
O HOMEM DO OESTE de Anthony Mann com Gary Cooper, Lee J. Cobb e Julie London.
Ninguém fez westerns como Mann. Seus filmes, econômicos, simples, possuem sempre a ressonância do teatro grego. São seres gigantescos, arquétipos sofredores, que lutam em vão contra os deuses do destino. Seu tema é o do homem tentando superar sua sina. Um tema de coragem. Nesses temas, o ambiente é sempre o oeste vazio, o espaço de solidão, o vácuo da busca. Cooper está soberbo. Ele faz aqui tudo aquilo que Clint começaria a fazer quinze anos mais tarde. O fracasso impera nos filmes de Anthony Mann. Diretor que em westerns só tem Ford em sua altura. Soberbo. Nota DEZ.
A CADELA de Jean Renoir com Michel Simon.
Este filme me fez finalmente entender o porque de tanto diretor de cinema chamar Jean de "o maior". Renoir filma adolescentemente. Ele é brincalhão, irresponsável, livre. Mas tudo a custa de talento, de saber-fazer, de risonha sorte. Os filmes dele têm tudo para dar errado, e dão certo! Este, história de homem mais velho arruinado por vagabunda que é apaixonada por gigolô, é brilhante. E feliz, estranhamente feliz. Uma história tão trágica, e que se torna feliz pelo brilho de Jean. Renoir... deve ter sido duro ser filho do grande pintor Auguste. Mas Renoir venceu. Dizem que ele era muito alegre, amante de boa comida, vinhos, mulheres bonitas. Seus filmes passam isso. Sem esteticismo, sem pedantismo e nenhum ponto de intelectualismo. Renoir simplesmente filma brincando. Ele ama filmar. Quanto a Michel Simon... basta "L'Atalante" para dar à ele o nome de melhor ator da história. Aqui Michel faz o que sabe, ser um gênio. Nota 8.
VELVET GOLDMINE de Todd Haynes com Ewan McGregor, Christian Bale.
Um emblema de minha infância. Podia e devia ser muito mais!!!! Mas é ok. Leia o que escrevi abaixo. Nota 7.
O MISTÉRIO DA TORRE EIFFEL de Julien Duvivier
Quanta invenção! Julien liga a câmera e filma a Paris-mito, a Paris de antes da guerra, a cidade que não existe mais. O filme, aventura rocambolesca sobre herança, vai de Nice à Paris, de circos à mansões. Cheio de alegria, de humor, de agilidade. Uma bela surpresa. nota 7.
PERFORMANCE de Donald Cammel com James Fox, Mick Jagger e Anita Pallemberg
O glitter nasce aqui. Jagger, diferente de todo rock-star da época, diferente de todo rock-star de hoje, é um monstro de dubiedade. Ele não se parece com um homem e nem com uma mulher, é hermafrodita. O filme trata disso : um gangster do sub-mundo londrino se esconde na casa de um ídolo pop decadente. Lá, seduzido por sex-drugs e magia, ele se transforma em Jagger, e Jagger se torna ele. ( Na vida real isso ocorreu : o Mick de Jumping Jack Flash morre em 1971. E renasce como o Big Boss do circo do rock ). Fox ficou tão doidão nas filmagens que largou a carreira e foi viver na India. O diretor se suicidou nos anos 80 e a linda e muito perigosa Anita era a esposa de Keith Richards na época ( que a roubou de Brian Jones, provocando sua dèbacle ). O filme é cheio de falhas, principalmente na fraca meia hora inical, mas depois cresce muito ( quando Mick e Anita surgem ) e é profundamente inspirador. Nota 7.

VELVET GOLDMINE- TODD HAYNES

Assistir este filme é para mim, exercício de nostalgia narcisística e masoquista. Eu tinha 11 anos no auge do glam-rock, e creia, glam era feito para gente de 11 anos. Bowie, Roxy, T.Rex, David Essex, Eno, Lou Reed ( só por um ano ), Gary Glitter, Suzi Quatro, Sweet... a melhor época do pop, magnífico período de romantismo bobo, criatividade pupurinada, beleza travestida.
O filme funciona?
Quando o assisti pela primeira vez, sim. Revisto hoje, seu impacto diminui. Em 1999 não havia o filme sobre Dylan. Na comparação entre os dois, Velvet perde de longe. Porque ?
O glam-rock era bem mais do que o filme mostra. Dylan é o que o outro filme diz.
Vendo este filme, temos a impressão de que o movimento foi apenas um surto gay, nascido em boates de travestis e lançado por empresários suspeitos. Sim, foi tudo isso, mas foi bem mais. Seu lado mais perigoso, mais transgressivo, ficou de fora.
No início deste texto, eu escrevi que este filme é saudosista. Ele "precisa" ser, pois o glam-rock já nasce saudosista. E sua saudade é do simbolismo. Ele traz Rimbaud/ Wilde/ Yeats e Proust para o mundo caipira do rock. E isso foi muito revolucionário.
Até 1971, rock era coisa de macho. Seja Hendrix, Lennon, Cash ou Townshend, todos posavam de cowboy, de trabalhador. A genial excessão : Mick Jagger. Seu filme, PERFORMANCE, um tipo de Velvet Goldmine em LSD, é o ponto inicial do glitter. Tudo o que o glam-rock seria já se encontra lá : bissexualidade, luxo, cafonice e simbolismo afetado.
Em 1971, Hunky Dory de Bowie e Transformer de Lou Reed se juntam ao super sucesso de Electric Warrior de T.Rex e capturam a parada britânica. ( Observação : os EUA jamais engoliram o glam. ). Logo, durante quatro anos, tudo se torna glam. Gente que nada tinha a ver com o movimento ( até o Deep Purple tentou ser glam ) se maquia e se finge simbolista. Eu lembro de meu tio usando calças pink de boca sino e camiseta purpurinada e de uma prima com uma estrela pintada no olho, glitters sem saberem o que isso era.
O filme vence pela trilha sonora. Cinco músicas do Roxy ( tocadas pelos fãs : Thom Yorke, Johnny Greenwood, Bernard Butler e Michael Stipe ) e mais algum Eno e T.Rex. As versões, respeitosas, são exatamente iguais às originais. Bowie proibiu o uso de suas canções. Uma pena. Talvez um dia Todd faça sua biografia.
A relação entre Iggy e Bowie está muito bem explicada no filme, mas a loucura que rolava ao redor deles não é mostrada. Bowie é o mais diabólico, esperto, malandro, ladrão e genial entre os heróis do pop. Naquela época ele comia por todo lado : seus rocks eram chupados de seu rival- Marc Bolan; as baladas vinham de Lou Reed; sua persona era uma mistura de LARANJA MECÂNICA com mímicos ingleses; sua pose era a de um Oscar Wilde cibernético. A imensa ambição, a inteligência acima do seu meio, a frieza revolucionária e individualista de Bowie passam longe do filme. Bowie foi apaixonado por Iggy, mas foi muito mais que aquilo.
Lou Reed está ausente do filme. TRANSFORMER foi o melhor dos discos glitter. A relação de ´fã e de ídolo que havia entre os dois foi posta de lado. Bowie respeitava Lou e Dylan. Ele copiava Marc Bolan, mas sabia que o alcance do T.Rex era limitado. Bolan encontrou uma fórmula e não conseguiu dar o passo seguinte. Bowie guinou ( em 1976 ) para Eno e Roxy, e se renovou.
O retrato de Iggy redime qualquer erro que o filme cometa. Ewan McGregor brilha. Seu Iggy é aquilo que o verdadeiro Iggy Pop é : ADORÁVEL.
Um bando de pretensiosos. Bichas louquérrimas. Cafonas de propósito. Roupas para ofender o bom gosto e a caretice. Letras sobre gays, viagens espaciais e solidão. Isso tudo caiu como uma bomba sobre minha vida. Christian Bale, de certa maneira, faz o que fiz. Seguir esse arco-iris platinado pelo resto da vida. Cair de amor por cada menina dúbia e duvidosa encontrada na vida e ouvir Roxy/Bowie/Lou como um tipo de compromisso com o sublime. Quando Bale coloca o vinil para rodar, me vejo em 1974, ouvindo Bowie como se fosse um pecado. Caraca! Eu era uma criança !
É legal imaginar que certos nomes do pop atual tiveram a mesma relação sagrada que eu tive com os discos do glam. Imaginar que todos estão eternizados. O que me irrita é que eles não tiveram a coragem de BICHALOUCAR. São apenas meninos frescos.
Pensando melhor. Este filme é bem legal. Me faz divagar. Sonhar com o tempo em que ouvir um disco era um ato de relação íntima. Você e David, você e Bryan. Contra os hippies, contra os caretas, contra quase tudo.
Foi maravilhoso. Foi um privilégio. Foi divino.

PARA ENTENDER O CINEMA

Críticos ( os melhores ) costumam dizer que existem 3 gênios-santos no cinema. Diretores que são uma espécie de monge. Seus filmes não se parecem com os filmes de ninguém, e têm o hábito de jamais fazer concessões e sempre filmar com a humildade e a reverência de quem ora. Seus nomes são Robert Bresson, Yasujiro Ozu e Carl Dreyer. Consegui desvendar o segredo de Ozu logo de primeira assistida. Ozu é o amor. Tudo nele revela compreensão, perdão, simpatia pela vida de todos. Seu cinema é um ato de compaixão. Dreyer é um pouco mais dificil. A maldade, para ele, comanda o mundo. Mas a santidade também existe. Seu cinema, louco, é um testemunho de quem viu o inferno. Tudo nele é crispação, extase, fanatismo. E Bresson ? Ele filma como um holandês de 1640 filmaria. Seu cinema crê na razão da fé. Tudo é austero, simples, comedido, seco. O cinema de Bresson é severo.
Aproveitando essa deixa, falo dos gênios-terrenos, dos gênios de nosso mundo. Tento com simplicidade e concisão, transmitir a chave de seu dom.
Lubistch é a leveza, a elegância, o prazer de se viver em meio às pessoas.
Hitchcock é o mestre em nos domar. Faz com que sintamos o que ele deseja. Hipnótico.
Ford é o gigante. Ele é o grego. Tudo nele é mito, seus personagens são deuses. Arquétipos.
Hawks é corajoso. Nada acontece em seus filmes. E são aventuras! Hawks é o mestre do natural, do não forçado, da camaradagem. Ninguém retrata melhor a amizade.
Wyler é o Dickens do cinema. Ele conta a história. Ele é um velho à fogueira.
Wilder é o mais pessimista dos diretores. E faz rir. Um elfo. Cheio de mal gosto.
Fritz Lang é o rei da escuridão. Da maldade. O mundo para ele é ruim, podre, um pântano. Mestre do sexo como poder, da corrupção, do quarto escuro.
Murnau é um músico. Seus filmes fluem como som harmonioso. Tudo é brilho em suas imagens, e estranhamente, seu tema é sempre a derrota.
Finalmente entendi Renoir. Seu dom secreto é sua extrema juventude. Filmes feitos ao sabor do improviso, à mando do prazer de filmar, ao quase acaso. Para se amar Renoir, é preciso se ter o espírito jovem.
Carné é o gênio do texto. Ele é um pintor barroco, um arquiteto da renascença, um colorista do fascinante, mestre do retrato gigantesco.
Ophuls é o poeta do detalhe. Seus filmes são como cantos de passarinho. Delicados bonecos de porcelana, são filmes que já nasceram arcaicos e clássicos.
Visconti é para espíritos vastos. Ele faz óperas sobre a decadência. Grande como o sol, ofusca aquilo que é pequeno. No seu mundo só a nobreza existe.
Fellini filma rostos como ninguém. Ele ama a vida e mostra esse amor imenso em seus filmes. Tudo lhe interessa, tudo lhe dá prazer. É o cineasta-gênio do amor à vida. Glutão de música, de mulheres, de ruas e dos rostos expressivos. Ele é o excesso. De criação.
Bergman é o oposto de Fellini. Ele teme e odeia a vida, mas ao vociferar contra a existência, cria beleza e nos inspira. Cineasta da beleza feminina, ninguém entendeu melhor a mulher.
Huston é o macho. Seus filmes vão sempre ao limite e beiram o ridículo. Ele nada teme, o que deseja, faz. Diretor para Homens, para rebeldes, para os inconformados.
Kurosawa é o bruxo. Pega peças de barro, as dispõe em seu tabuleiro e lhes dá a vida. Seus filmes nos cercam, capturam, sitiam. Mestre da ilusão, do encantamento, e da epopéia.
Kubrick é o cérebro. Filmes feitos de pensamento, de indagações, de questionamento.
De Sica é a criança. Ninguém as entendeu melhor. Tudo nele é crença, maravilha, desilusão, dor, alegria, simplicidade e ingenuidade. Vittório é o ingênuo.
Para entender Godard voce precisa estar apaixonado por filmes. Ele é o cara que pode fazer tudo. Todos os dons convergem nele. Mas, mimado, ele joga esse brilho no lixo. È o jogador.
Mais gênios ? Claro que existem outros. Bunuel, Pasolini, Coppolla, Scorsese ( talvez ), Resnais ( talvez ), Altman, Cocteau, Mizoguchi, Chaplin, Stevens ( talvez ). Mas falarei de Powell...
Michael Powell é o gênio do espírito britãnico. Tudo é sub-entendido, tudo tem dupla intenção. São filmes pretensiosos ( não em intelecto, pretensão quanto ao "gosto" ). São jóias sublimes do sentimento secreto, da poesia íntima. Um titã.
David Lean é Homero. O modelo básico para todo filme grande-gigantesco. Domador de multidões, perfeccionista perfeito, foi o ourives do horizonte. Um leão.
Von Sternberg foi para mim, um gênio. O mais rococó dos cineastas. Seus takes têm um milhão de detalhes. Mestre do erótico, do cafona, da perda de senso. Um fatalista.
E Buster Keaton. Que foi só prazer. O prazer de se olhar para Buster, de se ver Keaton. Um amigo-mestre.
E um dia falarei de Tati, de Ray, de Saura, de De Palma, de Antonioni, de Clair...Mas não agora....Pois ainda existe Lewis, Whale, Allen, Donen, Minelli, Zinemann, Welles, Wellman...
Maravilhosa arte, com suas comédias dos irmãos Marx, seus Tarzans, seus Star Wars. Os policiais noir, os filmes de gangster, as aventuras de Errol Flynn. O faroeste de Boeticher e de Anthony Mann, existe William Powell e Cary Grant, os musicias- Fred Astaire que só pode ser Fred Astaire...Cinema da beleza inencontrável- de Grace Kelly, Cyd Charisse, Myrna Loy, Anna Karina, Maureen, Julie, Sophia, Harriet... de Dumbo, de Pinóquio, de Wall.e, de Bugs Bunny e de Tim Burton. Dos irmãos Coen, de Tarantino e de James Bond. Arte morfina, arte anti-tédio, arte do lixo e do refinamento.
Mais que de gênios, mágica de feiticeiros, poemas de aventureiros ( Walsh, Vidor, Sturges ), esculturas de bucaneiros ( Curtiz, Peckimpah, Leone ). Inesgotável paixão.........

O QUE É ROXY

O mundo se divide entre quem gosta de Roxy Music e quem não gosta. Mas o que ou quem é roxy ?
Decadentes. Roxy é amar alguma coisa não em seu auge, mas em seu fim. Ruínas são mais belas e projetos não realizados são irresistíveis. Tudo aquilo que é roxyano é incompleto.
Dubiedade. Parece ser e nunca é. Quando você pensa ter desvendado, decifrado o segredo, esse mistério se desfaz e outro nasce em seu lugar. Desorientado, seu pensamento é refeito. Mas você aprendeu a lição, ele será novamente confundido.
Leveza. De neblina e de garoa. A leveza que deixa tudo com cheiro de mofo. Não é a leveza da facilidade, é a falta de peso do inefável. O não existir, ou melhor, não ter existido.
Amor. O ódio ao amor que chora, grita e perde o controle. Roxy é a paixão sob controle aparente. O sorriso que disfarça o choro. A frase que parece nada dizer e entrega tudo. O amor Roxy nunca é menos que Shakespeareano, mas ele tem a elegância de Cole Porter e o refinamento de Noel Coward. Um amar que é sonho.
Moderno. Mas o Roxy pega o que é moderno e mostra escancaradamente o que esse modernismo tem de caipira, de brega, de efêmero. Os moderninhos levarão a modernidade a sério. O Roxy usufrui de seu conforto e rí dele. Alma antiga em embalagem nova.
Sexy. ROck seXY. Subtrair do Rock sua inocência infantil e adicionar em seu lugar o distanciamento adulto. Não mais adolescentes prestes a estuprar, a sedução de adultos desiludidos.
Romântico. A inadaptabilidade de quem não compra de segunda mão. O desgosto ante supermercados do vazio. Desejar apenas aquilo que é para sempre. O desejo como ente sagrado.
Roxy é isso tudo.
São discos que desagradam a quem procura música "bem tocada" e também a quem deseja tosqueira. É pop-black tocado em formato progressivo. Elvis cantando Velvet ou Soft Machine tocando Marvin Gaye. Casablanca com trilha glitter, Frank Sinatra desmunhecado. Dietrich, Dylan, Debussy e James Brown. São dúzias de canções sobre o amor ( as mais lindas ) e dezenas de crônicas sobre o cinismo ( as mais geniais ).
É fazer os melhores discos de Bowie e Iggy antes. Fazer o melhor de Ultravox, Japan, David Sylvian, antes. Ser Suede, Radiohead, Dandy Warhols, antes. Ser o mais belo, sempre.
Única banda pop digna de Shelley, Keats e Yeats; Roxy Music é "Morro dos ventos uivantes" com "Laranja Mecânica"; "O Leopardo" com "Sonho de uma noite de verão". Wilde encontrando Waugh.
Chamados de Velvet Underground da Inglaterra, o Roxy mostra a diferença crucial entre os dois países : o Velvet é realista, o Roxy é romântico. Não há barulho no Roxy. Não há neblina no Velvet. Ambos são cínicos.
Roxy sou eu.

CATHERINE

Folha, segunda, 20 de julho.
Coluna de Luiz Felipe Pondé. Nome: Catherine.
LEIAM. Leiam e releiam. Ele radiografou minha alma. Meu desejo, meu orgulho, meu mal. Tudo está naquele texto. Existe um espírito que rege uma época. Uma afinidade entre descontentes. Luiz Felipe radiografa esse momento. Me radiografa. Em cheio.
" Não esqueça, caro leitor, que o romântico não é propriamente um idiota nostálgico, o romântico é um sobrevivente, sente-se como uma espécie caçada, um mutante nascido em ambiente hostil. Esse tipo é mais perigoso que você, que ri tranquilo, cercado pela crença boçal de que o mundo seja seu."
"Os melhores entre eles aprenderam a dissimular as lágrimas, mudar de assunto, fazer uma piada inteligente, fechar a porta do quarto. Quem se sabe derrotado desde o início, detém uma forma de poder invisível que o torna perigoso, justamente por não combater pela vitória."
"Resistir é nesta alma sua primeira natureza. Talvez combatam porque esta seja a natureza de quem nasceu num mundo que não é seu ou porque não conheçam outra forma de se comportar num mundo onde não há esperanças para suas almas. Todo cuidado é pouco diante de quem não tem nenhuma expectativa."
"O desencanto do romantismo é uma forma de inteligência sem função. O romântico é uma espécie de contradição insolúvel no progresso definitivo da vida calculada. São caçados como praga. E com razão: são inimigos de uma vida perfeita. Diante deles, babamos como predadores esfomeados."
"O desafio de um romântico é aprender a lidar com suas sensações num mundo onde elas significam nada."
"Ao encontrá-lo devemos ter por ele o respeito que merecem as espécies em extinção."
" A alma romântica habitando um corpo moderno enfrentará o mundo devastado pela arrogãncia idiota dos modernos, pela objetividade morta da ciência, pelo niilismo do dinheiro, pela certeza cética da inutilidade da verdade. Em uma palavra, será uma exilada."
"Todavia, não se engane o leitor que gargalha em seu sofá cercado pela vitória definitiva da arrogância adolescente idiota, da inércia burocrática, da objetividade do dinheiro, do cinismo histriônico e do ceticismo chique. Românticos aprendem a falar a língua do mundo banal. Se o encontrar num desses jantares inteligentes, o confundirá com um pós-moderno cínico. Ele irá rir do amor, defenderá bebês feitos pela indústria farmacêutica, afirmará a vitória do relativismo elegante. Ele manipulará o código da vida devassa. Pois para ele sua vida é a vida de vermes a que ele observa."
Tudo que posso dizer sobre este texto é : BINGO!!!!!!

CAIO FERNANDO et JULIO BARROSO

Os caras adoravam Caio Fernando Abreu. Todos liam e adoravam ele. Eu não. Nunca gostei dos livros daquela época. De repente, qualquer Zé tava lendo Bukowski, Ginsberg, Kerouac e John Fante. Foi um desbunde pós-repressão. Aldous Huxley era lido aos galões, junto com Jean Genet e Margueritte Yourcenar. Nesse tempo eu lia Homem Aranha, Asterix e Mad.
Entrei numa faculdade reaça. Mas que tinha umas pessoas beeeem interessantes:
Roberto editava um zine em casa. Era um zine que pregava o fim de tudo. Ensinava como mentir, como enganar, modos de roubar, jeitos de ser odiado e de odiar. Coerentemente, Roberto, que vivia com o nariz escorrendo e era muito pálido, passou a odiar seu próprio trabalho e destruiu o zine.
Romeu pegava onda e odiava surfistas. Tocava bateria e tinha enjôo com músicos. Fumava erva e tinha bode de maconheiros. Romeu adorava mulher e tinha um modo muito direto de as abordar. Costumava levar tapas e pontapés. Voltava sangrando pra casa.
Patty nunca repetiu uma roupa. Durante um ano, nunca usou nada mais de uma vez. E todas eram da mesma cor : roxo. Tons de roxo em roupas que jamais se repetiam. E não tirava os óculos escuros.
Bill envenenava carros. Matava de medo quem andasse com ele. Tinha uma casa no meio do mato onde criava dois macacos. Bill discutia toda aula com os professores. Ele era um ogro. Velejava na ilha.
Frank pintava móveis destruídos. Comprava móveis novos, detonava tudo com martelo e machado e depois os pintava com cuidado. Chamava isso de arte. Frank tinha tudo : era inteligente, bonito e tinha muita grana. Mas, na noite, ele andava solitário pelas ruas, a pé, e namorava ( por uma noite apenas ) as mulheres mais feias que ele pudesse encontrar. Desejava o feio. Transava em hotéis fedidos. E passava meses no Georges V, em Paris.
Ricardo andava de tuxedo. Levava no carro uma garrafa de champagne, " para manter a sanidade" e pensava que seria lindo se atirar do Empire State. Seu riso, constante, era como o de um faraó do vale do Nilo e frequentava concertos de orgão em igrejas do centro.
Andrea pegava onda onde ninguém ia. E acampava sózinha, cantando a noite toda para as estrelas. Todos achavam que ela era louca e ela fazia pulseiras de pele de cobra. Desenhava em pedras brancas com tinta preta.
Roberval se picava de noite e criava um filho de dia. Tocava guitarra em botecos de punks chics e tinha um dom para escrever bem e viver mal. Roberval amava para sempre a mãe de seu filho e se irritava comigo.
Mauricio foi ser instrutor de snow no Colorado. Antes foi skatista quase-pro. E antes ainda teve um zine sobre quadrinhos violentos e garotas gostosas. Fazia vídeos anti-arte e músicas anti-música. Mauricio tinha um amigo.
Flavia posava para pinturas eróticas. E escrevia poemas sobre os novos tempos. Usava as mais curtas saias da escola e lia Rimbaud ouvindo James Brown ( pra ela tinha tudo a ver ). Flavia bebia vodka com soda e ficava dançando toda a noite de frente ao espelho.
Marcos enchia o hamburger de catchup e depois lambia o prato sobre o balcão. Adormecia em todo cinema e roncava em peças de vanguarda. Marcos lia Heminguay e amava Thomas Mann e batia fotos das ruas e queria ser Goddard. Cavava um buraco na areia do Tombo e dormia toda a tarde.
Gigi se vestia de preto. Sempre alinhada, cheirosa, brilhando. Ria da cara de todo mundo e ria de mim. Andávamos de braços dados pelas ruas muito mal iluminadas e falávamos da cafonice do universo. Ela era a musa Roxy e eu era o cantor de seu roxysmo. Gigi usava ligas.
Eu pegava onda mal sabendo nadar. Num tempo em que ir à Ubatuba era uma aventura. Fazia peças sem assistir teatro, quando o que importava era subir no palco. Ligava a câmera e filmava qualquer coisa. Bom era apontar, focar e gravar. Cantava numa banda e nunca soube cantar. Gritava e pulava e isso era bom demais. Estava sempre apaixonado, e jamais soube amar.
Me perdia em bares onde se conversava sobre politica, onde moças gritavam e jogavam gim em nossa cara e bandas barulhentas desistiam de tocar ao se entediarem. Às vezes adormecí no Madame Satã. Acordava dia alto, e ia andando rumo a Paulista, vendo o sol machucar. Wilson me dava vodka para acordar e contava sua vida de ex-seminarista.
E em minha faculdade reaça...
Soube que Julio Barroso havia morrido. E disfarcei. Fiquei mal pra caramba. Ele escrevia tudo o que eu queria falar. E me deu uma dica do que ouvir. Morreu naquele ano. Mas alguns outros ficaram vivos, um pouco mais vivos. Um monte de Rimbauds, um monte de poetas, pretensos poetas, que queriam sentir tudo, queriam viver tudo, se consumir. Pretensiosos, enjoados, chatos, vivos. Beeeeem vivos.
Um mundo mais sujo. Mais cheio de sombras. Muito mais triste. E mais feliz.

go back ! ( the old school yard )

A sala quadrada de grandes janelas altas, onde aprendi a pintar, escrever e tocar flauta, hoje, tantos anos passados, é a biblioteca. Não deixa de haver justiça nisso. Nesse tempo todo vivi entre livros. Lá, trabalham dois ex-professores. Um deles, professor ao velho estilo, usa paletó e chapéu. Lecionava as " duas matérias mortas, tão mortas quanto são o latim e a caligrafia : história e filosofia ".
Não sei onde li que uma das tragédias do mundo contemporâneo é a desvalorização da experiência dos mais velhos. É claro que a maioria deles nada tem a dizer, a não ser reclamações da aposentadoria e raiva da vida. Mas este senhor tem muito a dizer.
Falo de matemática. Ela é uma coisa bela, eu sei. Mas ela jamais mostrou sua inteira beleza para mim. O velho diz que a beleza na matemática está na filosofia por detrás dela. Não é encontrar a solução, é entender o porque do problema.
Recordo Pitágoras, o começo de tudo, onde a matemática se torna um misticismo. Ele me diz duas coisas interessantes : a perfeição do ímpar ( basta a sí só ) e o Zero. Como pode, num mundo onde tudo é alguma coisa, alguém ter criado o conceito do zero, do nada. Como?
Ele salta então de Pitágoras para Martin Heidegger. E me dá uma aula.
A diferença básica do homem para outros seres é que o homem vê o vazio, o zero, o nada. Um animal doente sente dor, o homem teme o vazio. Toda angústia vem disso : tentamos compreender esse vazio, mas ele se faz incompreensível. O que éramos antes de nascer, eis a idéia de vazio; o que virá depois, vazio.
Colocado entre esses dois zeros, cabe ao homem duas escolhas : construir sua essência ou viver na existência pura. Nós, únicos seres com livre escolha, podemos adquirir conhecimento, expandindo a vida, absorvendo outros pensamentos, nos tornando sábios. Ou viver inconscientes, prendendo-se à rotina do ir e vir sem fim.
É preciso ver o vazio para se erguer algo de verdadeiro em sua essência. Fazer a ponte entre os dois zeros. Ou negar sua realidade e viver na ilusão anti-vazio, que é o pior dos vazios.
O homem religioso constrói sua essência a partir de Deus. Ele sente algo em sí que não é só seu, é de todos. O ateu constrói sua essência na certeza de ser absoluto dono de sí mesmo : tudo que existe nele é dele mesmo. O que ele faz é sua responsabilidade.
Falo então que existe em todo religioso algo de " tirar o corpo fora, de se isentar de responsabilidade ", e no ateu " um imenso orgulho de se ser dono de sí ". Vejo um como "ovelha" e o outro como "rei da vaidade".
Que engraçado : na sala onde eu admirava, confuso, as pernas da professora em minissaias e meias arrastão, hoje ouço uma aula de existência e essência.
O homem constrói o seu eu todo o dia. E passa todo o tempo com o medo de ver esse eu desaparecer no vazio. Essa é a grande descoberta humana: o zero existe. E neste mundo de imagens, pressa, barulho, vozes, modas, distrações, tentamos ansiosamente negar qualquer tipo de reflexão ou consciência. Não construímos nosso eu, moldamos nossa vida à distração. Mas o abismo está ao lado, sabemos disso. Voltamos as costas, não o encaramos, fugimos e nos tornamos fáceis e inocentes vítimas do nada, do vácuo, da não-história, do zero infinito.
O velho pensa que fui bom aluno. Ele não sabe o quanto fui vagabundo. Diz ele que sou um pensador nato- sempre querendo saber. Penso que sou um preguiçoso, sempre pensando. Nos despedimos e ele ergue seu chapéu marrom. Desde cedo, já naquela escola, o vazio foi meu compadre mais constante. Ele me assistia no jardim empoeirado onde eu comia maçã com laranja. Acenou sua mão feita de nada quando andei para outras escolas e outras professoras bonitas. Esteve comigo nas noites de frio e nas tardes de ondas grandes. E me fez procurar esse velho de paletó alinhado.
A sala de aula, hoje biblioteca, é um zero em sí.

SPIELBERG/FATAL/MEL BROOKS/BETTY HUTTON/2001-KUBRICK

ENCURRALADO de Steven Spielberg
Steven estréia neste tv-movie para a NBC. Fez tanto sucesso que acabou passando nas telas de cinema também. Ele faz aqui aquilo que sabe : entreter. Um caminhão persegue um carro. Obsessivamente. E é só isso. Alguns bons momentos num tipo de "Os Pássaros" sem o gênio de Hitchcock. nota 5.
FATAL de Isabel Coixet com Ben Kingsley, Penelope Cruz, Dennis Hopper.
O interesse único é o belo trabalho dos atores. São humanos. Nem bons, nem ruins: imperfeitos. O final, melodrama óbvio, estraga o tom. Baseado em Philip Roth, mostra o que acontece com uma história contada sem a escrita refinada de Roth : pobreza. O cinema não se adapta à Roth. nota 5.
UM CONTO DE CANTERBURY de Michael Powell
Um dos milagres de nosso mercado de DVDs é a bela quantidade de filmes de Powell lançados no Brasil. Alguém os compra ? Eu compro todos. Powell é um tesouro, um troféu que dignifica o cinema. Todos os seus filmes guardam discretas surpresas. Nunca são aquilo que prometem, sempre são mais. Este parece ser sobre a segunda-guerra. Depois parece uma comédia e então se torna um conto policial. Mas ao final mostra o que é : um poema sobre Canterbury, berço espiritual da Inglaterra. As cenas que mostram o cotidiano da cidade, os sotaques, a geografia do lugar, são magistrais. Uma pedra preciosa. Uma sonata de piano. Raro. --- uma curiosidade: há uma cena com o seguinte diálogo entre dois soldados americanos : - como voce conseguiu se acostumar com esse chá preto? é horrível!!!! - ora, questão de hábito. É COMO MARIJUANA. UM SIMPLES HÁBITO!!!!----- o filme foi feito antes da criminalização da erva. nota 9.
O CONFORMISTA de Bernardo Bertolucci com Jean-Louis Trintignant, Stefania Sandrelli, Dominique Sanda e Gastone Mosquin.
De uma irritante tolice. O pior dos anos 60 está todo aqui : um esquematismo revolucionário em que tudo cheira a panfletagem. Nada tem sentido psicológico, nada tem clareza, tudo é pesado, veemente, exarcebado. Chato, cansativo, infantil. nota ZERO.
O JOVEM FRANKENSTEIN de Mel Brooks com Gene Wilder, Marty Feldman, Teri Garr, Madeline Kahn, Cloris Leachman, Kenneth Mars, Peter Boyle e Gene Hackman.
Brooks, com sua grossura e falta de finesse, criou a comédia atual. Tudo pode ser feito, desde que faça rir. Seu trunfo são seus atores. A troupe que ele tinha em mãos era realmente talentosa. Todos brilham, todos fazem rir. Os americanos consideram esta uma das cinco maiores comédias da história. Não sei se é tanto. Mas é uma soberba diversão. nota 8.
ANNIE GET YOUR GUN de George Sidney com Betty Hutton e Howard Keel.
Um musical sobre shows de western que aconteciam no início do século XX. Um musical sobre a maior atiradora da história : Annie Oakley, uma caipira dos cafundós. Um musical com uma estrela que eu nunca assistira : Betty Hutton. Um musical que fez com que eu me apaixonasse por Hutton. Ela é um fenômeno!!!! Muito engraçada, cheia de caretas de moleque sujo, bonita, rouba o filme e nos encanta. Uma festa! Ah... músicas ( excelentes ) de Irving Berlin. nota 8.
PRIMAVERA PARA HITLER de Mel Brooks com Zero Mostel e Gene Wilder.
A estréia de Brooks no cinema lhe deu o Oscar de melhor roteiro. Uma comédia maravilhosa sobre a Broadway que teve uma refilmagem infame com Nathan Lane/ Mathew Broderick/ Uma Thurman. O autor nazista, o diretor gay, o cantor glitter-hippie, são personagens hilários!!!! Um enorme prazer. nota 8.
MORE de Barbet Schroeder
Um alemão vai de carona à Paris. Conhece junkie. A segue à Ibiza. Se droga. Sexo à três. Só isso. Trilha sonora do Pink Floyd. É a estréia de Barbet como diretor. Séculos depois ele faria " O reverso da Fortuna" e "Mulher solteira procura". Foi produtor de Rhomer e Rivette antes deste filme. Que poderia não ser tão ruim se tivesse algum ator que soubesse interpretar. É tudo de um amadorismo absurdo. Para piorar, todas as falas são improvisadas. De bom, uma Ibiza ainda espanhola, parecida com uma Ilhabela-junk. A trilha é ok, mas a música daquele momento era feita pelo Soft Machine! nota 1.
ORFEU de Jean Cocteau com Jean Marais, Maria Casarés, François Périer e Marie Déa.
Primeiro fato: Cocteau não tem vergonha. Ele pensa ser um gênio e expõe isso sem pudor algum. Ele foi um gênio ? Bem... quase. Poeta, pintor, desenhista, cenógrafo, cineasta, músico... ele foi tudo isso. Como não se concentrou em nada, acabou não sendo gênio em nada. Mas foi grande. Orfeu adapta o mito grego para nosso tempo. ( Será que o muito elegante tempo do filme- Paris 1950- ainda é nosso tempo ? ). O filme é sobre a morte, a poesia, o amor, os espíritos. Mas no fundo é sobre Cocteau. Seu ego está em cada segundo filmado. Este filme é também, possívelmente, o que melhor soube mostrar a falta aparente de lógica dos sonhos. Mas atenção : é um filme fácil de entender. Não é hermético. É aberto. Como todo Cocteau, belo de se ver. nota 8.
2001-UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO de Stanley Kubrick
Isto não é um filme. É um conceito. Com isso em mente, assita-o.
Primeiro fato: como é possível ter sido um sucesso em 68 um filme tão dificil ?
Segundo: muita gente tomava LSD no saguão e viajava todo o filme. Dizem que ele dá uma bela viagem.
Terceiro: Kubrick nunca foi tão ambicioso. Ele tenta explicar a vida. Para nosso tempo, em que tudo que um bom diretor deseja é mostrar um pouquinho de seu coraçãozinho, isso é irritante.
Quarto: os primeiros vinte minutos são soberbos. Kubrick filma, talvez, os mais emocionantes momentos do cinema. A aurora do Homem. O medo, a agressividade, o nascimento de nós mesmos. Há algo de profundamente comovente naqueles seres. Em seu primitivismo. Nós os olhamos não como nossos avôs. Parecem nossos desamparados filhos. A breve cena que mostra seu terror noturno sempre me comove. Como me comove também a cena em que Kubrick se exibe gênio que é, aquela com os ossos.
Quinto: tédio. O filme se torna lento. Toda a missão espacial é glacial. Mas impressiona um fato : o acerto no modelo do computador com câmera. Os efeitos ( pré-digitais, feitos mecanicamente ) são perfeitos.
Sexto: o computador enlouquece. Muito trágico o fato de que a sabedoria humana se concentra numa máquina.
Sétimo: a morte e a entrada em outra dimensão. A melhor sequencia ( longa ) sobre o que seria o xamanismo. O astronauta morre. O que ocorre ? Uma viagem de LSD numa cena ultra psicodélica. Sons de sintetizador. ( num tempo de sintetizadores do tamanho de armários- sem teclados! )
Oitavo: o final. Não vou contar. ( Alguém ainda não viu 2001 ? ). Mas é intrigante, surpreendente, e faz, estranhamente, sentido.
Nono: a última imagem. Faz chorar. É linda. Talvez a mais linda possível.
O QUE É ESTE FILME?
Para Kubrick, o homem só viveu dois momentos chave : a descoberta de sua singularidade, que se deu através da descoberta da arma; e a viagem espacial, a saída deste planeta. O terceiro passo evolutivo, ainda não dado, seria o encontro com uma inteligência fora deste mundo. O monolito é o que? Pode ser Deus. Pode ser a razão ( observe que na natureza não existe a linha reta, ele é chocante para os trogloditas por ser retilineo, polido, perfeito ), pode também ser um ET. O monolito simboliza a novidade, o ponto de morte/renascimento. Mas daí vem outro enigma : porque a sala Luis XV ?
Pauline Kael, que não gostava do filme, o chamava de aula de filosofia alemã dada por um chato professor calvinista. Nem tanto. Como disse, voce não pode julgá-lo como cinema, é arte conceitual, uma instalação. Dificil, árido, árduo, mas acredite, inesquecível. nota DEZ.

greengrass/abrams/fincher/miyazaki/stanton/boyle-seus favoritos

Se fala no blog da Folha sobre uma matéria da revista "SightnSound". Diretores conhecidos de hoje falam sobre suas preferências. As perguntas são : Qual seu plano favorito ( tomada ) e Que filme voce gostaria de ter dirigido.
Danny Boyle tem a resposta mais óbvia - queria ter dirigido APOCALYPSE NOW de Coppolla. Plano, qualquer um de SANGUE NEGRO.
J J Abrams acha que a aparição de Grace Kelly em JANELA INDISCRETA é a mais bela tomada do cinema, e queria ter assinado NÚPCIAS DE ESCÂNDALO de George Cukor. J J acaba de ganhar um zilhão de pontos comigo.
James Cameron fala na cena do osso em 2001 de Kubrick como a melhor, e gostaria de ter em sua filmografia JURASSIC PARK.
Paul Greengrass vê o take final de O CHEFÃO 2 de Coppolla como o melhor momento. Gostaria de ter feito A BATALHA DE ARGEL filme esquerdista de Gillo Pontecorvo.
Pedro Almodóvar adora a cena do olho sendo cortado em Buñuel e queria assinar A DAMA DE SHANGAI de Orson Welles.
Miyazaki, diretor de Shihiro e tanta coisa boa é fã ardoroso da cena em que Wyatt Earp anda de braços dados com Clementine, em PAIXÃO DOS FORTES de John Ford.
Sam Mendes ama TAXI DRIVER. O filme de Scorsese tem a melhor tomada e é o filme que ele queria fazer.
David Fincher vai de LAWRENCE DA ARÁBIA. Ele considera a entrada em cena de Omar Shariff a melhor já filmada. Seu filme é JANELA INDISCRETA.
Andrew Stanton, diretor do ótimo Nemo e do genial Wall.E, elege uma cena de Lawrence da Arábia : Peter O'Toole andando sobre o trem. O filme é CINEMA PARADISO.
N. Shyamalan não escolhe cena. Só de Hitchcock seriam centenas. O filme é A ÚLTIMA SESSÃO DE CINEMA de Peter Bogdanovich.
E por fim, Guillermo del Toro, fã de FRANKENSTEIN, cena e filme são dessa obra de James Whale.
Beeem... JANELA INDISCRETA e LAWRENCE DA ARÁBIA, eis dois filmes muito valorizados por quem dirige filmes. Hitchcock, o cara que levava o espectador para onde queria levar; e David Lean, o diretor do mais extremado bom gosto. Único a fazer super produções com cara de filme intimista. O cinema sente muita falta dos dois. Eles sabem.

COMO SER DIFERENTE ( HOJE )

Eu estava num lugar qualquer fazendo qualquer coisa, quando veio o assunto : como ser diferente hoje. O que seria ser do contra, ser perigoso, ser original. ( Não estava só. Um amigo estava comigo nesse lugar qualquer ).
No tempo em que todo homem andava de terno escuro e chapéu, andar de roupa colorida e cabelo comprido já era uma ofensa. Nessa época passada, de sexo escondido e casamentos para sempre, transar sem compromisso e viver junto era um desafio. Depois, quando cabelo comprido era moda de gerentes de banco e locutores de futebol, veio a onda do cabelo muito curto, da roupa preta e do anarquismo em tudo. O mercado adorou e começou a vender calças detonadas, fivelas punks e gravatas fininhas. Desde então, tentou-se ser diferente usando cabelos verdes, roupas new-hippie, coturnos, ombreiras imensas. Materialismo, green-peace, nova direita, esquerda chique, grunges, um vale qualquer coisa.
A última coisa que chocou ( e não foi um revival ) foi a moda de calças largas caindo, tênis chamativo e bonés. Uma atitude de "eu sou o máximo". A coisa do hip-hop. Mas isso tem mais de vinte anos!!!!!!! E agora ? Rave é revival de festas de hippies em Ibiza. Toda sua politica, todo seu estilo de vida é Kevin Ayers com Daevid Allen. Emo é um dark-baby. Jogadores de futebol usam moicano! Vovós se tatuam, crianças usam piercing. Como ser original?
O mundo hoje é consumo, tecnologia e pressa. Mas ser contra o consumo é ser fashion. Ser anti-tecnologia é fazer parte de uma tribo, pregar a calma e a volta à natureza é ser parte do new-age. Querer ser diferente, aliás, é tema de toda campanha publicitária. A GM, a Vivo, todas usam isso. Qual o tabu a ser quebrado ? O que irrita um teen ? O que seria ridículo para um fashionista ?
Ser velho. Nada é mais endeusado que a juventude eterna. Ser velho. Assumir idade, rugas, mal humor. Não tentar parecer jovem, se desligar de cremes, ginásticas, loções e plásticas. Ser um feliz e chato dinossauro.
Meu amigo complementa : ser Humphrey Bogart - um velho/ macho/ fumante/ duro/ na dele. É isso.
A última revolução possível : ser jovem já era. E viva Clint !

CAÇANDO, PLANTANDO, PASTOREANDO?

Eu ando lendo 3 livros sobre a história da arte. Sobre 3 períodos que me interessam muito : a pré-história, a era clássica e a época bizantina. Nada direi sobre o que foi feito em Bizancio. Concordo com Yeats quando ele diz que foi a época do apogeu da beleza no mundo. Algumas pinturas em paredes ( anônimas, sempre ) são, talvez, a coisa mais cheia de cor e de paz já pensada e executada por mão humana. Tudo o que foi feito por essa civilização esbanja sabedoria e tem, ao mesmo tempo, um estranho ar de irrealidade imutável. É como se fossem retratos de nossa alma.
Acabei me desmentindo e dando um toque sobre a arte bizantina, mas o que preciso falar é que o autor diz que a arte foi criada pelos xamãs pré-históricos ( 15.000 a/c ).
Primeiro- não confunda um xamã com um curandeiro. O curandeiro é um médico/ político que trabalha conscientemente. Ele quer ser curandeiro, ele quer o poder. Jamais trabalha em transe. Faz parte do sistema. O xamã é bem diverso.
O xamã é um psicótico que em sua doença sente-se à beira da destruição total. É dominado por espíritos e visões. Essa pessoa, fora da sociedade, obtém o conhecimento de como se curar, para depois curar a alma da aldeia. Ele não desejou ser o que é, ele nasceu para o ser.
A sua cura se dá pela arte primitiva. O xamã pinta nas cavernas aquilo que o atormenta, faz totens sobre seu medo, dança sua visão, conta à tribo seus delírios, canta sua cura. Ele passa a ser o guardião da alma da tribo e sua reserva de saúde mental.
Caçadores.
Tudo isso nasce no estágio humano da caça. Nascemos míseros coletores, comedores de restos, de carniça, de fruta estragada. Mas um dia aprendemos a domar nosso medo e a caçar. Mas atenção, no estágio de caçador o homem sente-se inferior ao animal. O homem sabe ser mais fraco. Ele não voa, não nada e sente frio. Então ele cria primeiro a armadilha e depois a arma. Mas, muito mais importante, ele usa o xamã para caçar. Porquê?
Sentindo-se parte da natureza, o homem sente um grande conflito ( que atesta a sofisticação de seu sentimento ) - que direito ele tem de matar ? E se amanhã a caça acabar ? E se os deuses, deuses que são tão animais quanto o bisão, o urso ou o cavalo, lhe castigarem pelo massacre ? Matar um bicho não equivale a matar a natureza ? O homem faz cerimonias para aliviar esse conflito. O xamã invoca os espíritos dos animais mortos, faz com que eles renasçam usando seus ossos, suas vísceras, pinta suas eternidades na pedra, honra seu sacrifício. Após a cerimônia, em paz com a natureza, o caçador parte para a floresta, com a certeza de que a alma do animal está reencarnada. A caça poderá prosseguir.
Inimaginável para nós tamanha união com a natureza. O homem não como um animal, mas como menos que um animal. Um ser que deve tributo e pede perdão ao caçado.
Você pode pensar que tudo isto é um chute. Mas não. Esse modo pré-escrita, foi verificado em pleno século XX nos esquimós, em relatos de tribos indígenas norte-americanas do século XIX, nos lapões da Finlandia, nos maoris da Nova Zelandia. No que restava de pré-histórico em nosso tempo.
O que me fascina é imaginar o quanto ainda carregamos em nossos genes desse caçador. O quanto devemos sofrer inconscientemente pela culpa de estuprar a ordem natural da vida. Andamos de pé para olhar pela savana, para avistar a presa. Falamos para organizar a caçada. E nossa arte é manifestação dessa realidade.
Com a agricultura deixamos de ser um bicho em meio a vida natural e passamos a modificar esse meio. Derrubamos a mata, afastamos os animais e fazemos algo que nenhum homem fazia antes : observamos os ciclos da vida. Começamos a nos ver como um ser fora da ordem natural. Todo animal caça. Nenhum faz uma horta. Mais que isso, ao plantar a semente no solo ( aparentemente morta ) e vê-la gerar vida, criamos toda uma religião baseada no renascimento. Enterramos nossos corpos também. O homem toma consciência de sí como estranho em meio aos outros seres vivos. Nós, como somos até agora, nascemos aí. Não vamos atrás da caça. Nos fixamos e esperamos.
Cães, cabras, porcos e cavalos são usados como bichos-instrumentos, e com sua domesticação é perdido o último grão de união à vida original. Não mais pedir perdão. Usar.
No ócio de passar o dia vendo cabras pastarem nasce a filosofia grega. Mas essa é outra história. O que penso é na arte visceral de Picasso. Em como ele entendeu tudo isso e viveu tudo. Como sua arte se parece com a arte dos xamãs de milhares de anos atrás. Como ele foi o psicótico-curado, o sonhador-anunciador, o caçador-perdoado. Picasso, e também Klee, são xamãs perdidos na época errada, ou, mais provável, homens que fizeram a maior das viagens : entraram tão dentro de sí mesmos, foram tão fundo, tão longe, que viram, por um terrível segundo, a cara do caçador, a mão do agressor, e mais ainda : viram aquilo que todos nós perdemos- a alma livre. Voltaram então, e pintaram. As imagens de nossas caçadas domadas, o xamanismo de nossa loucura.
Da caverna em Altamira, no norte da Espanha, em 15.000a/c, até Pablo Picasso, em Barcelona, 1910. Um segundo num pensamento. Evoluímos? Para onde?

white light/VU/white heat

WHITE LIGHT vem uma massa de som mal gravado. Uma embolação de piano, guitarras e vocais. Tudo esmagado entre os sulcos do vinil azulado. E uma vozinha irritante, cínica, sobre toda essa montanha de cacofonia.
WHITE HEAT ele fala sobre algo a ver com machos e gays. Eu soube que os técnicos de som do estúdio ligaram os botões e foram embora. Não queriam ouvir o que ia ser gravado. Eles estavam acostumados a trabalhar com Miles Davis e Bob Dylan. Aquilo não tinha nada a ver. Na verdade, não tinha a ver com nada.
OOOOOOOH...WHITE LIGHT no rocknroll tudo sempre foi de verdade. Lennon era de verdade, Hendrix era de verdade, James Brown era de verdade. Mas esse chato era irônico. Não era de verdade, ele era feito por sí mesmo, ele era distante, ele era...argh...confuso. Não era símbolo de adolescente nenhum. E não se metia a artista bacana. Que droga ele era?
OOOOOOOOOOOOOOOOOOOH...WKITE HEAT e era amigo daquele tal de Andy Warhol, o cara fake, que chamava seu ateliê de Fábrica, que disse que todos seriam famosos por 15 minutos no futuro, que se mantinha distante da vida, cercado de telas/ cãmeras e puxa-sacos, que dizia que o símbolo de nossa era seria a lata, a estrela pop, a produção em massa, a publicidade. ( Andy criou o mundo de 2009!!!!! mas em 1967, quem poderia saber ? ).
WHITE LIGHT termina sem ter começado. Um zumbido de algum instrumento de cordas, os vocais mal ensaiados, um cabaret de algum buraco de grande cidade cheia de óleo e gás, uma porcaria de música mal tocada e mal gravada. Mas
Agora até dá pra dançar. Um bumbo ( queria entender o porque de se botar uma dona de casa nas baquetas...) e uma guitarra que tenta solar. Faz zumbido, se enrola pela melodia como uma trepadeira venenosa. Esta tem melodia ! Será que este troço vai melhorar? John Cale começa a falar: ele narra um pacote. Um embrulho. É um rap de branco galês formado em música erudita de vanguarda. Eu mostrava essa música para meus amigos fãs de Zappa. Eles riam e não levavam a sério : uma piada. Parece ressaca de ópio.THE GIFT. Mas
A coisa se destrói de vez. Uma porra de massaroca de som molenga e confuso que se parece com um aviãozinho caindo de cansado. Tem uns vocaizinhos de brincadeira. Uns ruidozinhos de acidente. O tal bumbozinho batendo com ritmo invariável. Que droga é esse Lou Reed? Fica com essa pose de Ginsberg/ Burroughs/Kerouac...Ele tá se achando! Pra que gravar isto? Não estamos na época de all you need is love? Então para que pintar de preto a capa de Sgt.Peppers?
SHE EVER COMES HERE NOW. O fiapo de voz de Lou. Como um farrapo. Por esta cançoneta todo compositor inglês daria a vida ( e todo cara esperto a tem plagiado desde então ). Caraca, isto é bonito pra cacete!!!! Mas não é flor e cor; é ressaca de heroína e escuridão. Vamos virar este vinil pelo qual paguei uma semana de trabalho e esperei um mês de alfândega...................
Agora fodeu! Isto não tem o menor sentido! É apenas barulho! A guitarra é uma serra elétrica cheia de microfonia, todo o resto é um frenético ribombar de explosões histéricas, e os vocais... sonâmbulos zumbis em catatonia pagã. ( Seja lá isso o que for... ). Tomara que este pesadelo acabe logo...Acaba!!!!! Que bosta, ACABA LOGO!!!!!!!!!!
Todo pesadelo pode ser pior. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY. SISTER RAY.
SISTER RAY.SISTER RAYSISTERRAYSISTERRAY SISTERRAY SISTER RAY. S IS TER R AY
Nada nunca foi assim. Nada nunca mais será assim. Nada nunca será outra vez como antes foi. _Esta música mudou a vida de todos que a ouviram na hora certa. _Depois dela nenhuma música pode me chocar. Nada nunca será louco demais após sister ray. Ela vem como manada de paquidermes trotando. Ela vem como ópera de mendigos de marte com raios nos olhos. Vem como o enterro de flores cobiçadas. Vem como agulhas enfiadas nas unhas. Ela vem e vem e vem.
Esse disco de merda acaba.
Amanhã vou escutar de novo.
Faz vinte e cinco anos que o escuto de novo.
Faz quarenta e dois que ele é o disco central da história do rock.
Sem ele nada que interessa teria existido. Nada. Nada. Nada.
Ele nada vendeu. Mas há o mito : os poucos que o ouviram se tornaram artistas. Formaram bandas, pintaram quadros, escreveram peças e romances. Ou simplesmente piraram. Nada.
Existem discos mais bonitos. Mais satisfatórios. Criativos. Mas nenhum tem o seu potencial destrutivo, a sua coragem, a sua INTELIGÊNCIA. O que irrita nele ( como em tudo que Lou e Cale fazem ) é o fato de que eles são e sabem que são mais inteligentes. Colocam qualquer gêniozinho irado ou sofredor no bolso do colete. Derrubam qualquer poeta. Fazem com que todo barulho perca sua originalidade. Após White Light nada é novo de novo.
OUTRA VEZ.

SOMOS DEUSES PARA ELES....

Encontrei esse deus em minha vida. E devo lhe dizer que vejo seus milagres todo dia !
Veja só: todo dia, não sei como ele faz isso, mas todo dia ele me alimenta. Milagrosamente, ele faz de minha tigela vazia, uma tigela cheia! E transforma o dia seco, numa vasilha repleta de água fresca.
Bolinhas de borracha brotam de suas mãos, e como um titã poderoso, ele faz dessas bolinhas cometas, que voam alto e caem longe. É meu dever sagrado à esse deus recuperá-las todas.
Ele surge em minha frente com mágicos discos de plástico, com ossos que surgem sem que eu veja nenhum esqueleto por perto, com mantas que me aquecem, com toques milagrosos que fazem desaparecer minhas pulgas. Um deus que cura minha sarna...
Tento, há tanto tempo... Decifrar sua língua sagrada. Sinto que se dominasse a linguagem celestial, eu poderia evoluir, atingir uma espécie de nirvana. Mas tudo que compreendo é tão pouco...
Meu deus se posta em profunda meditação. Fica horas diante de uma tela luminosa, paralisado. O que se passará em sua magnífica mente ? Depois ele segura um pouco de papel diante do rosto e fica parado, por toda a tarde, sem se mover. Dorme ? Não, seus olhos estão abertos. Qual o segredo ? Ora, sou apenas um mortal, como saber ?
Esse deus me ergue do chão e me leva às alturas, e me coloca em meio ao vento, quando vejo a paisagem rodar. Faz milagres diante de mim, e eu o adoro em minha pequenês.
Ele não sente cheiros, é superior a isso; não tem pêlos, evoluiu, é puro pensamento. Me guia pelas ruas, me protege de chuva e de sol, e me leva`a assustadores semi-deuses que me purificam com água e espuma, num ritual simbólico. Assustador. Eles fazem chover e ventar!
Meu deus pode dispor de minha vida a seu prazer. Rezo para que ele a mantenha. Meu deus pode me abandonar e me deixar à solidão e ao abandono, peço à sua bondade celestial que me poupe dessa dor. Ele é meu pastor, com ele nada me falta.
Deito-me em seu colo e folgo em seu calor...
...........
Escrevo este texto na esperança de que todos os humanos sintam a imensa responsabilidade que é ser um deus para alguém, mesmo que esse alguém não fale e tenha quatro patas.

SÍMBOLOS

Sem meus símbolos não há razão para minha vida. Tudo que importa é simbólico. A realidade não tem nenhum peso em mim.
Cada mulher que amei foi signo de algo maior que eu mesmo e que ela. Fomos toda uma galáxia. Todo amigo traz um significado maior que sua presença. Um é uma alvorada, outra é literatura, outro é a morte.
Toda arte é mais que vida. É um caminho me levando à vida que vale viver. Um filme torna-se um mito, uma canção é código de honra, uma pintura é minha alma e um poema é um deus.
A chuva não é água que cai. A chuva é hora de poesia, momento de nostalgia, grama verde, alma de criança, páginas amareladas, luz de vela, pele nua, guarda-chuva que é uma sinfonia, sonhos de paixão. Não é apenas um cair de gotas, trata-se de um símbolo.
A França não é um país. É um quarto de mofo e suicídio, vinho e pão e radicalismo, livrinhos no bolso do sobretudo, terra fértil e girassóis, é uma mulher que ama com falsidade, desejo de ser eterno, a França é pensamento, flanar pelo espírito, becos com putaines e Gitaines.
Uma França real, de Renault e Sarkozy, filmes coloridos e Gaultier, não me interessa. O símbolo me basta.
Símbolo que é esta letra que voce lê agora. Este azul que é o que voce imagina ser, agora. Eu vejo símbolo em tudo. Um rosto espreita por detrás de cada objeto e há uma segunda voz em toda palavra.
Impossível viver sem um totem, sem um mito, sem um hino. Ver o mundo das pedras, pra quê ? Tudo tem um apelo secreto, tudo é uma sedução enviezada, cada dia é uma charada de outro dia e o tempo é a chave para o maior dos símbolos.
Símbólico eu que me surpreende todo dia. Sou sinal cifrado para mim mesmo. Poetas maravilhosos, romancistas abstratos, construtores de novelos e de labirintos. Yeats, Mallarmé, Proust, Gauguin, Chagall, Baudelaire, Eliot, Blake, Shelley, Joyce.
Satie, Debussy, Ravel, Fauré.
A torre, o barco, o chá, a ilha, a vaca, o ópio, Abril, o tigre, o pássaro, a Grécia.
O sol não é uma bola de fogo e o mar não é feito de água. São infinitos deuses e infinitos motivos de mitos. Apenas isso importa.
Deixo aos outros suas pedras e seus metros.

MIZOGUCHI/BOETICHER/OS ELEITOS/WILDER

A MONTANHA DOS SETE ABUTRES de Billy Wilder com Kirk Douglas
Escrevi mais longamente abaixo. O inferno da midia já existia em 1952. Um jornalista antológico feito por um Kirk muito inspirado e uma pobre vítima num big-brother do inferno. Filme fiasco em seu tempo, hoje é considerado obra-prima. Nem tanto. nota 7.
JUVENTUDE TRANSVIADA de Nicholas Ray com James Dean, Natalie Wood, Sal Mineo.
O que é ser adolescente ? Bem... nada mudou. Ser isolado/ não compreendido/ querer algo sem nome/ amar sem saber amar. Dean foi um criador- este filme é seu testamento. Todo ator jovem de hoje o imita ( inclusive e principalmente na vida pessoal ). Todos falam seu evangelho. O filme é muito fraco quando Dean não está em cena. Com ele, somos hipnotizados. nota 6 para o filme.
CONTOS DA LUA VAGA de Kenji Mizoguchi
Ele foi antes da segunda guerra o mais querido diretor do Japão. Após a guerra foi chamado de velho e jogado ao canto. Este filme, dos anos 50, é sua volta por cima. Um filme politico e feminista, que é também um poema sobre fantasmas e amor. Algumas das cenas têm uma beleza plástica inesquecível. Mizoguchi nunca corta se puder não cortar. Um mestre. nota 9.
OS ELEITOS de Philip Kauffman com Sam Sheppard, Dennis Quaid, Ed Harris, Fred Ward, Barbara Herschey, Jeff Goldblum.
O melhor filme americanos dos anos 80 e um dos melhores dos últimos quarenta anos. John Ford habita esta épica aventura sobre heroísmo, fracasso, fama e amizade. Chuck Yeager, aviador real, torna-se mito, mito daquilo que a América gostaria de ser e não pode ser mais ( jamais ). Para se ver, rever, trever e decorar. nota DEZ!!!!!!!!
AVANTI ! de Billy Wilder com Jack Lemmon e Juliet Mills
Um milionário americano, apressado e ranzinza, vai a Itália recolher o corpo do pai para enterrá-lo em seu país. Conhece a filha inglesa da amante de seu pai e se apaixona por ela e pela Itália. O contraste entre Itália e América nada tem de novo. Mas Wilder, em mais um de seus fracassos, conduz esta comédia com muita leveza e finesse. Um prazer ver Lemmon trabalhar e uma diversão fofa e que jamais nos trata como idiotas. nota 6.
EXTASE de Gustav Machaty com Hedy Lamarr
Nos anos 30, na Austria, Hedy foi lançada como atriz sexy neste filme. Uma das piores coisas que já assisti. Hiper pretensioso, rígido, muito mal interpretado, ridiculo. nota ZERO!
SETE HOMENS SEM DESTINO de Budd Boeticher com Randolph Scott, Lee Marvin e Gail Russel
Lee Marvin faz história neste western. Com longo lenço verde, ele traz à tela um vilão inteligente, simpático, glamuroso. Rouba o filme e cada cena com ele é uma festa. Este filme, considerado pelos críticos-cineastas da Nouvelle-Vague, uma obra-prima, é de uma simplicidade absoluta. A história, com poucos personagens e maravilhosos cenários, se desenvolve exata, sem atropelos, sem lentidão, econòmica. Budd, aventureiro-diretor-toureiro, dirigiu dúzias de bons filmes baratos. Este é o melhor. Nota 9.
MULHERES DA NOITE de Kenji Mizoguchi
Em sua época de má fama, Mizoguchi dirigiu este filme, muito triste, sobre prostitutas no Japão devastado pela guerra. Apaixonado pelos filmes italianos do neo-realismo, Mizoguchi faz a versão nipônica de Rosselini. Os escombros do que restou de Osaka e Tokyo são fascinantes : o Japão como uma imensa favela, dominada por ladrões, putas e contrabando de drogas. O filme é muito bom, mas sua força embrulha o estômago. nota 7.
UNDERDOG de Frederick de Chau
Cumpre o que promete. E é assim nosso cinema atual : como um produto numa gôndola, ele tem um rótulo onde se diz : drama-romantico/ quadrinhos/ arte/ aventura. Se a lata matar o apetite por cinema ( matará esse apetite por duas horas ), sua função estará cumprida. Colou. Este cola. O herói é simpático, tem uma adolescentizinha bonitinha, uma liçãozinha de moral. Valeu. nota 5.

Desonra- Coetzee

Um horror.
Tudo de podre que existe no mundo hoje, nesta pequena Africa em que vivemos, habita sorrateiramente este livro. O professor em crise ( no fundo um idiota ), vigiado por colegas, pelo vizinho da filha, por todos; a filha, paralisada pela culpa daquilo que não fez; a aluna, presa no mutismo de uma geração molenga; a própria Africa, dividida em rancores históricos e tentativas de esquecimento. Todo o romance transpira desespero. Porque o que sentimos é vazio de transcendencia.
O professor não percebe o que poderia salvá-lo : a bondade. Ele é seco, estéril, um anti-pai. A filha não quer enxergar o que poderia a salvar : a absolvição. Ela não é culpada pelos crimes coloniais. E os negros não podem encarar o óbvio : vivem no rancor destrutivo. A vida torna-se uma farsa, onde ninguém escuta ninguém e onde o que acontece é negado.
Coetzee escreve muito simples. Frases e capítulos curtos, vocabulário básico. Mas escreve com elegância, descrevendo o que precisa ser visto. Seu amor aos animais está presente em todo o livro, amor que o professor tem dificuldade em aceitar, pois não é racional. Não é sexual.
Interessante perceber como para ele, David, amar está ligado a possuir carnalmente. Preso nessa armadilha, ele não percebe que assim lhe é impossível amar a filha e os bichos com os quais é obrigado a trabalhar. Amor preso a carne, portanto, amor falho e perecível. Tonto. Ele jamais amou a aluna. Ele jamais amou a prostituta que o atendia. Ele as possuia. Quando tenta expressar amor verdadeiro, é um desastre. Perde sempre.
No final, eis um bom livro de um autor central deste tempo de autores periféricos. Leia.

HEROÍSMO HOJE

Byron escreve sobre um anjo caído, anjo do mal. Lúcifer. Um ser-coisa, que se guia pelo desejo de seu coração, o desejo de seguir o mal. Esse desejo o leva a absoluta solidão. Byron se via nesse anjo caído. Lord Byron viveu isso. E tombou na revolução grega, arma na mão, famoso em todo mundo, maldito na Inglaterra, voluntário pela causa da liberdade. Tinha 36 anos. Sua vida foi um tumulto de sexo, drogas e liberdade. E poemas endereçados aos céus.
Gauguin nasceu no Peru. Pais franceses, logo voltaram para a França. Paul se casou, teve filhos e enriqueceu como corretor da bolsa de valores. Pintava como hobby. Aos 40 anos, largou tudo, mulher e filhos, dinheiro e conforto. Passou a se dedicar exclusivamente à pintura. Viajou para o Tahiti. Defendeu a causa dos nativos contra os colonos franceses, apaixonou-se pelas jovens nativas nuas. Sentiu fome e muita dor. Vendeu quase nada e usava tintas ruins, telas ruins. Teve sifilis. Morreu no amado Tahiti.
Modigliani tinha uma absurda beleza. Nasceu em familia rica, no conforto do sangue azul italiano. Mas se apaixonou pela boemia. Largou tudo e foi viver em Paris. Rei dos bares de má fama, roubava pedras das ruas para esculpir. Enamorou-se de modelos-prostitutas. Namorou e viciou-se em absinto. Jeanne Hebuterne, jovem comportada, apaixonou-se por Modi. Tiveram uma filha. Mas o absinto cobra contas, e Modigliani pirou. Brigas, rompimentos, voltas. Ele morre jovem. Ela se atira pela janela em seguida. Nenhum pintor pintou nada tão erótico quanto Amedeo.
Rimbaud começou a escrever ainda criança. Tornou-se famoso entre os poetas franceses por isso e também por sua beleza. Verlaine, bem mais velho, larga tudo apaixonado por Rimbaud. Os dois viajam pela Europa inteira. A pé. Vivem juntos e são perseguidos pelo preconceito. Aos 17 anos Rimbaud escreve toda sua obra principal, que irá o imortalizar. Era o anúncio da sensibilidade do futuro. Larga Verlaine e vai para a Africa. Aos 19, sua carreira literária se encerra: nunca mais escreverá. Na nova vida, ele resolve ficar rico. Faz comércio de café, tráfico de armas, talvez até escravos. Endurece, cresce, torna-se um outro. Morre de gangrena, em algum buraco da selva. O que ele terá sentido ?
E há tanto mais para ser dito. 200 homens perdidos no Pólo Sul. Sem comida, sem abrigo, sem comunicação. Sobrevivem e são resgatados. Três anos depois.
Thor Heleyal atravessando o Pacífico numa balsa feita de papiro. Só. E consegue.
Jean Vigo dirigindo seu único filme deitado numa maca; morrendo de tuberculose. Termina a última tomada e morre. Deixa-nos uma obra-prima: Le Atalante.
Eddie Aikau se mandando para o fundo da tempestade para salvar náufragos. Com sua prancha, surfista famoso. Salva alguns e desaparece no mar.
Chuck Yeager voando pelo prazer de voar, indo mais rápido, mais livre, mais solitário.
O que é o heroísmo? Se sacrificar ? Por quem? Um soldado se sacrifica, é não é necessáriamente um herói. Então o que faz de um homem um herói ?
É aquele que cai na terra e segue seu desejo. Todo herói é um anjo caído. Que segue, sem se abalar, seu destino. Ele faz o que precisa ser feito e que só ele poderia fazer. Faz por sí mesmo, e como consequencia, afeta uma humanidade ao seu redor. Mas faz para satisfazer sua originalidade. Só ele sabe o que só ele deve e pode fazer. Todo herói está isolado.
O herói hoje está perdido não porque toda montanha foi conquistada ou todo mar rastreado. O que mata o heroísmo é que toda individualidade está cerceada, vigiada, acomodada num rótulo padrão. Byron seria um freak narcisista, Gauguin um irresponsável pedófilo, Rimbaud um giletão arrependido, Modigliani um playboy viciado, Aikau um cara que se deu mal, Yeager um caipira bronco, Mozart precisaria de um empresário melhor e Beethoven seria uma estrela psicótica. Thor teria cruzado o pacífico para vender os direitos do filme sobre sua vida. Rótulos para heróis. Rótulos de supermercado. Um herói precisa esquecer tudo isso : não se julgar, não se auto-analisar, não se corromper. Ele não mira um alvo definido, ele vai fundo no que sua alma quer. Seja o que for. Enxerga o fundo do escuro interior e sai para a vida, fazendo o que seu daimon ordenou. Sem se justificar, sem ser rotulado, sem pedir paz, sem desistir, sem se iludir. Jamais pensando em ser como os outros são, nunca como deveria ser. Um herói se desnuda, larga o supérfluo, não carrega malas, não tem garantias. Nada é menos heróico que um cartão de crédito, um GPS, um comprimido de Prozac. O herói tem como única garantia seu desejo. Seu desejo, não o de ninguém outro.
Cervantes escreveu Dom Quixote na prisão, longe de seu país, esquecido.
Shelley passou a vida lutando pela igualdade dos sexos e pela extrema liberdade em polìtica. E pelo ateísmo.
Tolstoi perdeu tudo por sua fazenda socialista, onde todos eram iguais.
O herói não almeja atingir fama. Ele faz porque TEM que ser feito.
Para entender o que é isso, assista O SOL É PARA TODOS, filme já analisado aqui. Tudo está lá: aquele é o único tipo de heroísmo que nos resta. E é belo, muito belo.