SODERBERGH/FELLINI/JAMES STEWART/CLINT/OZ

A ÚLTIMA CARROÇA de Delmer Daves com Richard Widmark e Felicia Farr
Um assassino condenado lidera grupo de religiosos através de terras de índios. Ele próprio é um índio. Simples, como todo western deve ser. Belas paisagens, bons personagens. Widmark agrada sempre, com seu ar de psicopata. Daves foi um dos bons diretores de ação dos anos 50. Diversão sem compromisso. nota 6.
A TRAPAÇA de Federico Fellini com Broderick Crawford e Richard Basehart
Se Bogart não houvesse tido seu câncer fatal, teríamos aqui um momento de antologia. Pois era Bogey quem iria fazer o papel do pequeno malandro, explorador de pobres diabos que nada têm. Com Crawford, este filme, feito entre La Strada e Cabíria, perde seu sentido. Um Fellini que não parece Fellini, pois é realista, documental, quase um Rosselini. nota 5.
IRRESISTÍVEL PAIXÃO de Steven Soderbergh com George Clooney e Jennifer Lopez
Reassistí este muito agradável filme. Do tempo em que Soderbergh era bom. Do tempo em que Clooney parecia querer ser um novo Cary Grant ( hoje é um novo Gregory Peck ). Do tempo em que Jennifer prometia ser uma futura comediante... O filme, sobre malandragens e trapaceiros, é delicioso. Junto com The Limey, é meu Soderbergh favorito. nota 7.
O GATO PRETO de Edgard G. Ulmer com Bela Lugosi e Boris Karloff
Inacreditávelmente picareta!!!! Um absurdo de diálogos ridículos, imagens de fru-fru, atores sem direção e roteiro amador. Bela tem o pior desempenho da história do cinema. Um tipo de ator pretensioso recitando má poesia colegial. Mas por tudo isso...nota 6.
SUBLIME DEVOÇÃO de Henry Hathaway com James Stewart e Richard Conte
Existem certos atores que nos fazem vibrar quando os vemos e ouvimos suas vozes. São como gente da família. Gente que visitamos por toda a vida e não nos cansamos de rever. Atores que fizeram muitos filmes bons e que portanto nos dão muitos motivos para visitar. James Stewart é um dos mais amados. Ele é simpático. ele parece confiável, ele jamais dá uma interpretação ruim, ele é um ícone. Aqui ele é um repórter que investiga um caso de assassinato. Ele não crê na inocência do condenado, mas acaba, lentamente, mudando de opinião. Este filme, sem trilha sonora, seco, duro e ágil, quase um documentário; é maravilhosamente bem dirigido pelo muito competente Hathaway, diretor de quase cem filmes e um dos gigantes que fizeram a glória da Fox. Um filme que te deixará muito tenso, ligado, interessado e torcendo muito. Roteiro e fotografia de gênio. nota 8.
COMEÇOU EM NÁPOLES de Melville Shavelson com Clarck Gable e Sophia Loren
Apesar do nome o filme se passa quase todo em Capri. Isso dito... que linda ilha!!!!! E como Sophia era bonita de se ver! Tão bela que chega a parecer irreal, um milagre da natureza. Ela hipnotiza nosso olhar, vulcaniza a tela e explode em vida e alegria. Genuinamente. O filme, uma comédia romântica, trata do contraste entre a América, fria, rica, eficiente; e a Itália, quente, pobre, preguiçosa. Felizmente toma o partido da Itália. Um dos primeiros filmes que ví em minha vida, numa velha Sessão da Tarde, no tempo em que filmes de Loren, Elvis, Jerry Lewis e Lucille Ball abundavam na tv. nota 6.
ALWAYS de Steven Spielberg com Richard Dreyfuss, Holly Hunter e John Goodman
Muito estranho o ano de 89. Enquanto Stephen Frears filmava uma obra-prima chamada Ligações Perigosas, Milos Forman fazia Valmont, baseado no mesmo livro. E enquanto se filmava Ghost, Spielberg fazia Always- o mesmo filme, porém, passado entre aviadores e sem metade do interesse do filme com Swayze e Demi. Um diretor do tamanho de Steven não tem o direito de fazer algo tão primário, tão mal construído, tão inútil. Cheio de romance que não emociona, ação que nada move, diálogos que nada dizem. Um desastre! nota zero.
COMO AGARRAR UM MARIDO de Frank Oz com Steve Martin e Goldie Hawn
Eu adoro Steve Martin. Como Jim Carrey, Will Smith, Kevin Kline, Clint Eastwood; adoro ver seu rosto na tela. Ele não precisa fazer muito para agradar. Basta estar lá. Este roteiro, bobíssimo, trata do velho tema de opostos que se descobrem apaixonados. Não faz rir. Mas se deixa ver sem problema algum. nota 5.
BRONCO BILLY de Clint Eastwood com Clint e Sondra Locke
Um tipo de Beto Carrero dos pobres. Essa é a história de Billy, um cowboy que com sua trupe de ex-detentos faz shows pelo interiror dos EUA. Um filme on the road, uma comédia amarga. O filme, bastante feito nas coxas, é barato, quase amador. E mal escrito. Clint, no tempo em que parecia sem grande talento, não se dá ao trabalho de dirigir os atores. Erros se acumulam. Faltam cortes, faltam segundas tomadas. Um filme muito estranho... nota 3.
O SOL É PARA TODOS de Robert Mulligan. com Gregory Peck, Mary Badham. roteiro de Horton Foote e música de Elmer Bernstein
Não é uma obra-prima. Não tem essa pretensão. Mas é um dos mais lindos filmes que já assistí. Comovente em profundidade, tudo funciona à sublime perfeição. Leia meu comentário logo abaixo. Coloco aqui um adendo : o filme tem a estréia de Robert Duvall no cinema. Entra mudo e sai calado. Seu personagem fica 3 minutos em cena. Veja o milagre que ele faz. Um discurso com os olhos... Quanto a Gregory e Mary... se houvesse nota maior que dez eu a daria.

O SOL É PARA TODOS- a melhor das infâncias

De todos os grandes filmes, do grande cinema americano, O Sol É Para Todos sempre foi o filme contra o qual eu mais tive preconceito. Odiava sem tê-lo visto. Pensava ser aquele típico filme liberal-americano : anti-racismo, bonzinho, bonitinho, previsível. E o pior, tinha Gregory Peck no papel central. Pior que tudo, por este papel, Peck ganhara o Oscar de 1962, vencendo Peter O'Toole em Lawrence da Arábia e Marcello Mastroianni em Divórcio à Italiana!!!!!!!
Minha opinião começou a mudar quando em 2007, o American Film Institute elegeu o filme como o número 21 de todos os tempos e os leitores deram a Atticus Finch, personagem de Peck no filme, o título de MAIOR HERÓI DA HISTÓRIA DO CINEMA, deixando Indiana Jones em segundo, James Bond em terceiro e Rick Blaine ( Casablanca ) em quarto. Bem... comprei o DVD então e esperei uns 6 meses para assistir. Ontem assisti...
Pensei que o filme fosse sobre racismo. É. Mas não é seu tema central. Pensei que se passasse num tribunal. Se passa. Mas por pouco tempo. Surpresa ! É o melhor, mais profundo e belo filme sobre a infância que já assisti. As obras-primas de Vittorio de Sica podem ser mais geniais e contundentes ( e eu os adoro ), mas este filme fala exatamente da MINHA VIDA.
O início tem a mais bela apresentação de créditos iniciais da história. Não vou contar como é, mas basta dizer que me causou estupefação e profundo encanto. A música ( de Elmer Bernstein ) é a mais cristalina e comovente que já tive o prazer de escutar. É a perfeita trilha da minha e da sua meninice. É linda. E então começa o filme.
Numa pequena cidade ( toda criada em estúdio, mágica ), uma menina de uns 8 anos ( feita pela inesquecível Mary Badham, uma menina que eu queria ter como filha ), recorda sua vida em um específico momento. Estamos então nos anos 30. São pobres, mas têm uma vida sem necessidades. Ela tem um irmão mais velho, corajoso e ativo, e um pai ( Peck ) advogado. Assistimos todo o mistério, medo, alegria, aventura, magia que há na infância. Tudo no filme transcorre com tempo próprio, sem pressa e sem lentidão. O roteiro, premiado e soberbo roteiro de Horton Foote, tem uma construção de rara e feliz habilidade. Tudo se equilibra e encaixa, e apesar do tom sublime da história, ela jamais se torna piegas ou melosa.
O filme é dirigido por Richard Mulligan, que teria a partir daí, vinte anos de bons filmes. O produtor é Alan J. Pakula, que se tornaria outro bom diretor. Os dois fazem parte da heróica primeira geração da TV americana. TV ao vivo. Dela vieram também Sidney Lumet, John Frankenheimer, Sidney Pollack, Franklyn Schaffner, Martin Ritt, Arthur Penn e muitos mais roteiristas e diretores. Mulligan dirige como quem lê um diário. Ouvimos páginas sendo viradas.
Atticus Finch. O mítico personagem de Peck. Ele existiu. O roteiro é baseado no romance de Harper Lee, escritora sulista que foi criada por esse pai, viúvo. É um herói modesto. Nobre. Sem qualquer afetação. Noto vendo o filme, de onde Clint Eastwood e Harrison Ford tiraram a inspiração para seus melhores momentos. Atticus é o pai que todo jovem precisaria ter, e é o modelo de correção seca e direta, que todos nós gostaríamos de seguir. Os Atticus Finch, quero crer, ainda existem pelo mundo afora. Estão fora de moda, mas levam sua vida. O triste é que o mundo não os valoriza. E tenham em mente, Obama é um seguidor do molde Atticus, e sei que este é dos filmes que ele mais gosta.
Destacar uma cena do filme é impossível. Ele se completa, se encaixa, flui, sempre em alta emoção, suave cadência, harmonia de sinfonia discreta. Voce se apaixona pelos personagens, se encanta com a beleza do que vê. Voce se enxerga em cada cena. Se alguém quiser saber o que significa ser criança, bem, veja o filme.
O final, simples, discreto, certeiro, é de uma tão grande surda emoção, que faz com que imediatamente sintamos vontade de rever o filme. Sentimos saudade de Atticus e de Scout ( a menina ). O DVD está à mão. O SOL É PARA TODOS ( que em inglês se chama TO KILL A MOCKINGBIRD, e a explicação desse título é inesquecível ), é para os americanos, um filme tão famoso e conhecido como Casablanca, Guerra nas Estrelas ou O Vento Levou; e é tão amado como A Felicidade Não se Compra e Shane. Mítico.
Um país se faz também por sua produção cultural. É triste não termos algo como este filme. Um Atticus Finch brasileiro. Seria maravilhoso.
Com este filme, este inenarrável momento de emoção, Gregory Peck se torna meu ator favorito. Eu já sabia ser dele a melhor voz da história, a voz que todo homem gostaria de ter. Mas o que ele faz aqui, com aparente e facilidade, o torna um gigante entre gigantes. Não é uma grande atuação; trata-se de uma grande imagem, uma grande presença, um momento sem igual. Carisma transcendente.
Acompanhando o DVD, um disco com dois documentários. Dignos da jóia que é o filme : um fala do livro e da produção do filme. Seu sucesso, sua lenda, seu legado. O outro mostra a vida e o cotidiano de Peck. Maravilhoso ator-liberal, que lutou contra o Vietnam ( com discrição ) e se tornou modelo de correção para outros atores. Vê-lo falar é comovedor.
Tentarei ser Atticus por toda a vida. Gostaria de tê-lo encontrado mais cedo. É o pai que todos nós gostaríamos de ter tido. O filme é para voce.

WISE/BLOW-OUT/BOOM/DESPERAUX/WILL ROGERS

O CACHORRO de Carlos Sorin
É aquele estilo Vittorio de Sica. Mas sem a beleza e a poesia estranha do gênio italiano. O cachorro é muito bom, mas o filme é pouco mais que nada. nota 3.
QUANDO EXPLODEM AS PAIXÕES de John Sturges com Frank Sinatra, Gina Lollobrigida, Charles Bronson e Steve McQueen. Filme que tornou Steve estrela. E apenas sua presença, curta, dá vida à este bem intencionado porém enfadonho filme. nota 2.
DESAFIO DO ALÉM de Robert Wise com Julie Harris e Claire Bloom. Nunca sentí tanto medo vendo um filme. Algumas pessoas se hospedam numa casa para descobrir se lá existem fantasmas. O filme não tem sangue, violência nenhuma, visão de espíritos ou assassinatos. Mas afeta nossos nervos. Tem um ar de claustrofobia, de neurose, de loucura. O cenário é maravilhoso, a trilha sonora fantástica e a direção de Wise, soberba. Uma verdadeira obra-prima do medo, do horror, do incrível. nota Dez!
BLOW-OUT de Brian de Palma com John Travolta, Nancy Allen e John Lithgow. A primeira meia hora, homenagem à Blow-up de Antonioni é uma exuberante aula de técnica cinematográfica. Tudo é brilhante : os cortes exatos, o som perfeito, o clima de intriga, o rosto de Travolta. A cena na ponte, sons do vento, a coruja piando, é digna de gênio. Mantivesse esse clima por todo o filme, estaríamos diante da perfeição. Mas Brian, como sempre, se empolga com seu próprio talento e começa a exagerar. Uma trama policial óbvia de serial killer, destrói todo o encanto original de seu filme. Mesmo assim, trata-se de um hipnotizante thriller, uma obra de alguém que realmente ama o cinema e sabe tudo sobre sua arte. Nota 9.
BOOM de Joseph Losey com Elizabeth Taylor, Richard Burton e Noel Coward. Que filme é este ? Vamos por partes : Losey foi um diretor americano, perseguido pelo MacCarthismo, se refugiou na Inglaterra e se tornou um dos melhores e mais britânicos diretores. Este filme, que trata de uma milionária às portas da morte, foi escrito especialmente para o diretor por ninguém menos que Tennessee Willians. Mas os diálogos, que triste, são ruins. Pretensiosos, freudianos, snobs. A mansão da trama fica numa maravilhosa e isolada ilha do Mediterrâneo. Nunca tive o prazer de ver casa tão bela. Branca, cheia de sol, viva. John Barry fez a trilha sonora. Raras vezes ouví trilha tão instigante. Dá vontade de ouví-la sem ver o filme. Cheia de psicodelismo. Pois bem, a foto é de Douglas Slocombe : ou seja, perfeita. Com tudo isso junto, o filme não funciona. Noel Coward, gaysíssimo, é um amigo afetadérrimo. Burton, já em sua fase de alcoólatra radical, perambula pelo filme com cara de sono. Taylor tenta levar tudo a sério, mas está perdida neste carnaval-gay-pretensioso. É uma diversão de loucos dandys, uma brincadeira de intelectuais vazios. Bonito de olhar e escutar, totalmente sem sentido. Vale para se conhecer o grande Noel Coward, inglês que criou o conceito de star, de multi-midia, de dandy século XX. nota 5.
O RATINHO DESPERAUX. Porque os desenhos têm hoje roteiros melhores que os dos filmes ? Creio que é pelo fato de que os roteiros de desenhos são mais livres. Não precisam criar um papel para um astro. Não precisam evitar a pieguice. Podem ter uma moral e não parecer careta. Podem brincar com qualquer coisa. Não precisam parecer "adulto". São ingênuos, então, verdadeiros. Honestos. Este é encantador. Fala de perdão, de coragem e de nobreza. Não é pouca coisa. E fala com autoridade. Creio que as crianças não gostarão muito do ambiente dark do cenário. Mas é mais um excelente produto que assume o que é e o que quer. nota 7.
NAS ÁGUAS DO RIO de John Ford com Will Rogers. É muito difícil falar de Rogers. É um ator como nenhum outro. Atua como quem come uma maçã. Tranquilo, natural, simpático. Diferente porque ele é de outra era : começou a atuar em 1910 ! Se o estilo de atuação em 1910 era esse... caramba! Que época abençoada! Este filme se passa no Mississipi. È puro Mark Twain ( e acredito que alguns atores conheceram Twain ). Um tipo de filme alegre, camarada, muito bem-humorado, feliz. Tem uma corrida de barcos no final que é maravilhosa comédia, soberba ação e bela poesia. Todos os personagens ( e são muitos ) são bem delineados, bem interpretados, bem definidos. O filme é quase um cartoon, do tipo Pernalonga, do tipo Pica-Pau. Uma festa, dirigida com sua segurança costumeira, pelo pai do cinema : John Ford. Pena Will Rogers não ter vivido um pouco mais...Ford e ele fizeram 3 filmes juntos. Seriam muitos mais....nota 9.

vertigem- W G Sebald

Ele começa falando de Stendhal. Mas não se alegre. O estilo de Sebald não tem nada da acariciante fluidez de Stendhal. Sebald recorda a experiência do Stendhal viajante : no exército de Napoleão, tendo presenciado a travessia dos Alpes e o massacre : 50.000 soldados e 20.000 cavalos mortos, estropiados, espalhados pelo campo cheio de aves os devorando. Stendhal começa a escrever a partir daí.
No meio do livro Sebald recorda outra viagem : a de Kafka pelo norte da Itália/ sul da Austria. Uma viagem feita de horror e de alegria fugaz.
Sebald, narrador desencantado, refaz a viagem dos dois grandes escritores: Viena, Trieste, Innsbruck, Veneza, Riva, Verona e muito mais. Termina indo à W. cidade onde nasceu. Sua maior emoção é ver um afresco de Giotto, meio escondido numa capela de Pádua. Para ele, é a coisa mais bela que pode ser concebida pelo homem.
Decepções ele tem todas. O percurso é feito sem motivo algum. Ele vai zanzando de lá para cá, à toa, sem rumo, sem objetivo. Não há razão em se ir, não há motivo para parar. Tudo lhe decepciona, pior que isso : nada é realmente visto. Seus contatos com as pessoas são muito superficiais, sem brilho, amorfos. Ele pensa bastante, diz escrever, mas parece extremamente estéril.
Assim é o primeiro livro de W G Sebald, autor falecido precocemente nos anos 90 e que é chamado por alguns de "único autor contemporâneo que vale a pena." Vale ? Sem dúvida vale. É provávelmente o mais perfeito retrato deste início de século XXI. Uma pessoa em eterno movimento, ansiosa todo o tempo e que na verdade anda apenas para não ficar parada.
O estilo em que o livro é escrito é o estilo digital : nervoso, curto, parágrafos muito longos com pontuação arbitrária. Muita idéia em pouco texto. Parece escrito a pauladas. Mais anti Henry James é impossível : James escreve às pinceladas.
Sebald ficará. É original em seu tédio angustioso. É entediado mas não entedia. Complexo, porém, compreensível. Labiríntico.
Ao fim, na cidade de W., o narrador descobre um segredo. Que sua infância nunca existiu. Que aquilo que foi vivido não pode ser sequer recordado. Estamos presos a não-memória, a não-história. Nada mais interessa, nada mais surpreende, nada mais acontece de definitivo. Esse é o norte de sua viagem. Isso é que o faz andar: existir, hoje, não é pensar. Não é sequer fazer ou viver. Existir é se mover.

urbanidade: amor-paixão

Logo no início de Vertigem, livro de WG Sebald, há um pensamento bastante forte : a paixão é a necessidade daqueles que perderam o contato com a natureza. O estar apaixonado e o ato sexual são o que lhes restou de natural.
Não por acaso, a revolução industrial e o surgimento das grandes cidades, coincidem com o movimento romântico. Acuado, o Eu-natural se infla de sentimento, hiper-valoriza o amor-romântico, se mira no próprio coração. Para o homem ligado à vida natural, vivendo seus instintos básicos, paixão-amor é um sentimento que existe, é importante, mas não é tudo. Nada de love is all.
Há em primeiro lugar a luta pela sobrevivência. E essa feroz luta, dá a esse homem o contato com a natureza : partos, doenças ( sarampo, catapora, escarlatina, febres, tifo ), caças, guerras, fome, medo. Felizmente estamos distantes da época em que se morria de gripe aos 30 anos. Mas não devíamos ter jogado tudo ao lixo. O bom e o ruim. Nos livramos das doenças ( algumas ), da fome ( quase ), das guerras ( se tornaram virtuais ), mas jogamos fora também a aventura de viver, a liberdade, o sentido de sagrado, de se fazer parte de algo que sobreviverá para sempre, o sentimento de se maravilhar, o êxtase.
Procuramos tudo isso na paixão por alguém. Ela nos dará a fé de volta. Nos inspirará, nos dará coragem e liberdade, nos religará à vida e ao eterno. Nos deixará maiores. Que tragédia ! Ninguém conseguirá fazer tanto! Iremos nos sentir enganados, traídos, perdidos.
Ninguém será Keats por estar apaixonado.
Tentamos ver no sexo a animalidade, o prazer, o êxtase que toda uma complexa vida de instinto natural e solto nos proporcionava. Sexo é ótimo. Mas não é cura e razão de todo mal. Voce pode ser infeliz tendo todo o sexo do mundo, e feliz sem qualquer vida sexual. Que embaraço né ? Não é a idéia que nos é vendida.
Então, quando notamos, afinal, que o amor não nos trouxe de volta a inocência da infância, a inspiração da poesia, a liberdade da natureza; nos amarguramos, nos tornamos cínicos, culpando o próprio amor de um erro que não foi dele. E quando sentimos que por mais que façamos sexo, continuamos ansiosos, tristes e perdidos, culpamos nossas escolhas, e tentamos mais sexo, mais variações, mais loucuras.
O irônico é que das grandes emoções básicas do homem, vivemos hoje as mais negativas. Medo, raiva, desespero, cobiça. Perdemos o contato com o sublime, a nobreza, o auto-sacrifício, o êxtase dionisíaco, a catarse, a epifania. São sentimentos básicos. São anacrônicos como o bisão e o albatroz. Procuramos encontrar no amor tudo o que perdemos : o bisão e o albatroz. Encontramos um gatinho.

JEAN BECKER/ASQUITH/BERGMAN/BOGART/SOLARIS

CONVERSAS COM MEU JARDINEIRO de Jean Becker com Daniel Auteill
Becker, filho do grande Jacques Becker, é um dos bons diretores franceses atuais ( apesar de já veterano ). Aqui ele mostra uma linda história sobre amizade. Um pintor bem sucedido, pensa em reformar sua horta. Chama um jardineiro, que é, para sua surpresa, um antigo colega de escola. Amor, família, vida. Tudo é falado e vivido pelos dois. O filme jamais se torna chato. Ele flui, leve, colorido, saudável, bonito. Muito bom. nota 7.
O AMOR EM CINCO TEMPOS de François Ozon com Valeria Bruni-Tedeschi
Cansei de Ozon. Seu cinema frio, analítico, me entedia. Um saco este chatíssimo drama. Que me interessa a vida de dois malas que nada têm a dizer ? nota zero.
NUNCA TE AMEI de Anthony Asquith com Michael Redgrave e Jean Kent
Foram 400 anos de teatro inglês para se atingir a excelência da atuação de Mr. Redgrave. Ele é um anti-"sociedade dos poetas mortos". Um professor chato, duro, amorfo. A cena em que sua fortaleza desmorona é de uma comovente verdade. Redgrave se reclina, lendo uma dedicatória, e chora de costas para a câmera. O choro não é teatral, é contido, doído, magistral. Um filme absolutamente perfeito, levado com nobresa pelo elegante Sir. Asquith. E com um ator que é um Mozart do palco e da tela. Inesquecível e obrigatório. nota Dez!!!!!
O TÚMULO VAZIO de Robert Wise com Boris Karloff e Bela Lugosi
Muito bom esse Wise. Em mais de trinta anos de carreira dirigiu musicais como West Side Story ou A Noviça Rebelde; e mais faroestes, policiais e um clássico como O Dia em que a Terra Parou. Este é seu segundo filme, um terror da RKO. Karloff está muito bem, compondo um fascinante vilão. nota 5.
HORAS DE TORMENTA de William Wyler com Humphrey Bogart e Frederic March
Na velha Hollywood, quatro diretores eram todo-poderosos : George Stevens, Frank Capra, John Ford e principalmente William Wyler. Um diretor considerado até hoje o mais " capaz" da história. O que significa esse "capaz" ? Que Wyler nunca errava. Jamais alguém poderia chamá-lo de gênio, ou de ousado; mas ele era a certeza de fluidez, competencia e muita inteligência. Ele sabia fazer, sabia dirigir atores, sabia narrar. Conquistou três prêmios de direção e mais seis indicações não premiadas. Dirigiu de tudo : musical, western, filme noir, romance de fadas, filme de arte, de tribunal, comédia maluca, filme de guerra. De Ben-Hur à Princesa e o Plebeu. Sempre acertando. Este é de seus últimos filmes. Bogart é um muito desagradável bandido. Invade uma casa e mantém a família como refém. O filme é um duelo entre Bogey e o chefe da casa-March. Um filme tenso, rico em desdobramentos e que flui com rapidez. Um tipo de filme de Scorsese antes do tempo. Muito, muito imitado. Nota 8.
JUVENTUDE de Ingmar Bergman com Maj-Britt Nilsson
É impressionantemente o décimo filme de Bergman. Aos 30 anos!!!!! Bom tempo em que um diretor de trinta anos já dirigira dez filmes... Ele considerava este seu primeiro trabalho "de verdade". É sua primeira obra-prima. E talvez, seu filme mais simples. Uma bailarina, aos 28 anos, sente-se pela primeira vez na vida, "velha". Ela viaja à uma ilha, onde recorda um amor que viveu aos 15 anos. O filme é sómente isso. Uma sessão de terapia onde vemos a bailarina tomar consciência de quem ela foi, é, e será para sempre. Mas é também, como Bergman sempre faz, muito mais. Trata-se de uma exposição. Mostra a vida dos adultos em contraste com os jovens. Uns, cínicos, cruéis, desesperançosos; e os jovens, leves, risonhos, apaixonados, crentes. As cenas de namoro entre o jovem casal são reais, graciosas, e maravilhosamente atuais ( o filme é de 1951, mas, que estranho, parece ser de 2009 ). Maj-Britt, mais uma das maravilhosas atrizes de Bergmann, linda-moderna-enfeitiçante, tem uma atuação natural, uma menina cheia de sexo, de encanto e de alegria. Mas seu rude amadurecimento nos corta a respiração, porque é exatamente como se dá com todos nós : um amadurecimento amargo, cruel e surpreendente. Tudo que Bergman faria depois já se encontra aqui : a beleza da fotografia ( há filme mais belo que este ? ), as falas solenes, os atores geniais, a preocupação com sexo/morte/alma. Um encantador trabalho, um leve e delicioso filme, onde roteiro, música e atores se esmeram em criar duas horas de absoluto prazer e de intenso drama. Gênial. nota Dez!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
SOLARIS de Andrei Tarkovski
É tido por obra-prima. Que nota darei ? A fotografia é linda ( há uma cena com um cavalo de estarrecer de tão bonita ), o roteiro é poesia filosófica, a câmera é precisa. Mas o que dizer ? O filme tem o único defeito que não poderia ter : é grotescamente chato. O divino Oscar Wilde já dizia : perdoamos tudo em alguém. Ele pode roubar, pode mentir, pode ser falso e enganar, mas ser chato é imperdoável. nota zero!!!!!!

o melhor ator em lingua inglesa- Nunca te Amei

Lendo Paulo Francis, com sua coluna diária na Folha, é que formei muitas das opiniões que mantenho até hoje. Uma das colunas que mais me tocou foi a descrição do grande teatro inglês dos anos pós-guerra, teatro que Francis teve a alegria de assistir. Aprendi então a idealizar atores como John Gielgud, Laurence Olivier, Ralph Richardson e Michael Redgrave. E também os atores de peso um pouco mais leve : Rex Harrison, Peter O'Toole, Richard Burton, Alec Guiness, Peter Sellers, Paul Scofield. Tive, como Francis teve, a esperança de que Gary Oldman, Jeremy Irons, Day-Lewis, Kenneth Branagh refizessem essa glória. Mas, eu e Francis, assistimos a destruição dessa genialidade pela sedução hollywoodiana. Day-Lewis, fugindo de LA ainda manteve certa integridade, mas os outros... que trágico !
E nesses anos procurei então, via cinema, meio que nunca os seduziu, encontrar uma gota dessa mítica. Tentar ver a genialidade desses gigantes nos filmes ( poucos ) que eles fizeram ( já que as peças se foram para sempre... ). Dos menores, Rex Harrison nos deu 3 ou 4 atuações que lhe fazem justiça, o mesmo com O'Toole, Burton, Guiness e Sellers. Scofield registrou apenas uma. Mas os gigantes...
Não há um só filme que faça justiça ao talento corporal/animalesco de Olivier. The Entertainer seria o mais refinado e Hamlet o que o satisfez melhor. De John Gielgud nem é bom falar. Apesar de ter filmado com alguns excelentes mestres, sua vida no cinema se reduz a papéis pequenos, papéis que ele fazia ocasionalmente para pagar alguma peça que dera prejuízo. Belo tempo em que a excelência seduzia mais que a celebridade !
Ralph Richardson se limitou no cinema a fazer o inglês meio-maluco. Mas dá para se ver uma centelha em "Longa jornada noite adentro", a terrível peça de O'Neill que Lumet dirigiu.
É preciso se dizer que os quatro gigantes eram amigos, aprenderam a ler com Shakespeare e delimitavam sua maestria em "feudos" bem desenhados. Olivier era rei na atuação corporal e no olhar, Gielgud tinha a melhor voz e Ralph era o rei da versatilidade. Michael Redgrave tinha um pouco dos 3 outros. THE BROWNING VERSION, conhecido no Brasil como Nunca te Amei, faz total justiça à Redgrave e prova que Francis e críticos como Tynan nunca exageraram em seus elogios.
O filme, dirigido por Anthony Asquith, mostra os últimos momentos de um velho professor numa tradicional escola inglesa. Ele é o tipo de mestre que todo aluno odeia e que todo colega despreza : antipático, snob, frio, muito exigente. Esse professor tem uma esposa que o detesta e o trai, com um colega mais jovem e mais querido. Esse mestre será transferido para uma outra escola, onde irá receber menos. Pois bem, eis a descrição do filme. Mas o que realmente, é tal filme ?
No incio nós sentimos asco pelo papel de Redgrave. Ele o interpreta como um tipo de homem de aço, esticando as sílabas, olhando os jovens com nojo, não confiando em ninguém. Redgrave era jovem quando o filme foi feito. No mesmo ano, com o mesmo diretor, ele fizera um excelente Oscar Wilde, papel em que ele esbanja alegria, leveza e graça. ( Além de beleza- Michael foi um galã ). Aqui, em absurda versatilidade, vemos um homem à beira da cova. O modo como ele fala, a maneira como ele anda, respira, veste o sobretudo, enterra o chapéu na cabeça. Tudo é de verdade, tudo é técnica, tudo é o MAIS ALTO GRAU DE EXCELÊNCIA que um ator pode querer. Mas então, com o correr do filme, os milagres começam a ocorrer... mais e mais...
Cena após cena, movimento após movimento, vemos um homem desmoronar. Tudo o que ele tem, lhe é tirado. Tudo o que ele é, revela-se um nada. E nosso coração, completamente dominado por esse ator de gênio, se derrete, seduzido por um personagem muito desagradável. Um milagre que somente um mestre pode ousar fazer.
Derramei lágrimas de admiração e de dor. O filme é, com Umberto D, o mais triste que já assití. Triste, nunca deprimente. Nosso cérebro ferve de admiração, e pensamos durante todo o filme : eis um gênio ! Agora entendo o que Francis dizia !!! Michael Redgrave não veste o personagem. Não se perde, possesso, como o fazem Pacino ou Brando. Ele doma o papel. Adestra nossa atenção. Onde De Niro e Penn revelam vontade e entrega, Redgrave revela inteligência e elegância. Humilha os colegas atores.
Há uma cena em que sua máscara cai. O professor recebe um presente do único aluno que o admira. O professor chora. É o mais melancólico, verdadeiro, sublime, comovedor, magistral choro que tive a honra de ver em qualquer tela. É o mais honesto momento que o cinema me proporcionou. Um homem desaba. Completamente. Um ator se revela. E nos dá um presente inesquecível : um mês após ver essa cena ainda a ouço, a sinto, a venero. É eterna.
Michael Redgrave dá nesse filme, a maior atuação da história do cinema. Takashi Shimura em Viver, Michel Simon em Atalante, Mastoianni, Sydow, Mifune, Pacino... todos são batidos. Ele se agiganta, se faz imenso, cresce, domina. Quem não assistir esta atuação, não terá um padrão para julgar qualquer outra atuação de gênio. É obrigatório.
Anthony Asquith foi descendente de uma das mais nobres famílias inglesas. Um nobre que dirige com nobreza. Seu filme não se rebaixa jamais.
Michael Redgrave fundou uma nobre linha de atores. Vanessa, sua filha, é a mais famosa. Um nobre ator. Devo-lhe o diamante desta atuação. Para sempre.

TOURNEUR/MINELLI/JULIE CHRISTIE/NAVARONE/

O HOMEM LEOPARDO de Jacques Tourneur
Val Lewton produziu para a RKO uma série de filmes de suspense. Filmes baratos, com 70 minutos de duração e que acabaram marcando um lugar na história do filme b. Porque ? Porque como nos melhores filmes de Dracula ou Sherlock Holmes, o que importa não é o crime ou o mistério. O que nos seduz é cada sombra do cenário, cada travelling da câmera, os acordes da trilha sonora, o maravilhoso rosto dos atores ( irreais, sempre irreais ), as ruas cheias de neblina na madrugada deserta, a garoa e a luz dos postes, o som dos passos na calçada escorregadia, o grito agudo, a calma do herói teimoso. É uma fórmula. É quase perfeito. È para se ver numa noite gelada, vários cobertores sobre a cama, a casa vazia e escura, o cão roncando no tapete. Delicioso. Um adendo : Tourneur foi um diretor frances que sabia fazer filmes de suspense, polciais noir, filmes de pirata. Eis o cara ! nota 8.
O PIRATA de Vincente Minelli com Judy Garland e Gene Kelly
Existem 3 níveis de amor ao cinema. O faroeste é o primeiro. Depois vem Buster Keaton e por fim o musical. Nada nesta arte dá maior prazer que o musical. Nada é mais refinado, civilizado, bem feito, artísticamente nobre que um grande musical. Tudo nele é artifício. Tudo nele é falso. E é na sua artificialidade que mora seu mérito. Um mundo ideal, perfeito, ilusório, um mundo como deveria ser, como achamos que poderia ser, e, em seus momentos mais sublimes, o musical nos faz crer que o mundo é O Musical. Nós é que não o percebemos. O Pirata é delicioso como um conto de fadas. Profundo como Mozart. Sublime como um amor aos 14 anos de idade. Eterno como a memória de uma paixão. Foram musicais como este, com seu capricho, sua beleza colorida, seus diálogos espertos, sua cultura vienense, que fizeram de mim um aficionado por cinema em geral. Gene sorrí como nenhum ator sorrí. O cenário é um carnaval de plantas, panos, janelas, biombos e muita gente. A música é mais que vibrante, é quente. Judy, etérea, paira soberana, hipnotizando nosso olhar com sua estranheza. Um gigantesco bolo de noiva, um revellon de luxo. nota 10 com muito louvor ! - informação : O musical terminou quando o talento minguou. Nada era mais dispendioso. Para se fazer um grande musical se precisava de atores famosos que interpretassem, cantassem e dançassem bem. E fossem engraçados e "adorados". Roteiristas treinados em comédia, afiados em diálogo rápido e leve. Compositores de sucessos. Arranjadores com técnica erudita. Orquestras gigantescas. Cenógrafos e coreógrafos da Broadway. Imensos estúdios. Tempo para ensaios. E um diretor que entenda de dança e de música. Quando juntar tanto talento se tornou um risco grande demais, o musical acabou. Sobreviveu, parcamente, em milagres feitos por um gênio solitário ( os de Bob Fosse ) e algum acaso fortuito.
OS CANHÕES DE NAVARONE de J. Lee Thompson com Gregory Peck, Anthony Quinn e David Niven.
Perfeição. Uma aventura com personagens bem delineados, excelentes diálogos, ação que emociona, suspense e diálogos que podem ser citados ( há um sobre a inutilidade da guerra que é genial ). Porque tudo deu tão certo ? O mérito é do roteirista, Carl Foreman, perseguido pelo MacCarthismo e brilhando como roteirista e produtor nesta aventura divetidíssima. Este filme é o parâmetro em que toda aventura deve ser julgada. Explosões, tiroteios, naufrágios, fugas, traições... maravilhoso!!!! nota 9.
DESPERATE JOURNEY de Raoul Walsh com Erroll Flynn e Ronald Reagan
Lixo. Uma imensa decepção!!!! Um roteiro patético, fazendo dos nazistas idiotas completos e dos americanos gente que sorrí durante tortura. Se a guerra fosse essa infantil piada... nota zero!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
DR. BULL de John Ford com Will Rogers
Não chega a ter a alegria de Juiz Priest, filme que Ford e Rogers fizeram no ano seguinte. Mas é um bom exemplo de filme rural, bucólico, lentamente agradável. Rogers tinha mágica simpatia e Ford, relaxado, lhe dá todo espaço e tempo para brilhar. nota 7.
VENUS de Roger Mitchell com Peter O'Toole e Jody Whattley
Nada revela mais o caráter aristocrático inglês que a classificação que eles dão à seus atores. Michael Caine, ator que trouxe o inglês cockney-malandro para as telas, jamais será visto, em Londres, como Gielgud ou Richardson. Pois John e Ralph são do mundo de Shakespeare, Michael não é. Dito isto, falo que Peter sempre foi um rei. Nada se compara a seu Beckett ou ao que ele faz em Leão no Inverno. Foi uma estrela maior, um conquistador compulsivo, um bebedor imbatível. E ocupa, na hierarquia britânica, um lugar dúbio. Apesar de ser um excelente ator teatral, por ter se popularizado demais no cinema, é colocado atrás de Paul Rogers ou Michael Redgrave. Absurdo!!! Falando deste filme... é triste ver seu rosto estragado. A bebida e a idade devastaram seu olhar de Lawrence da Arábia. Mas é belo ver como ele se diverte e dá conta deste papel difícil, sutil, e comicamente trágico. Fora Peter, é um filme tolo, frio, pretensioso, quase idiota. Ele foi indicado em 2007 por este papel, e perdeu o prêmio pela oitava vez ( um recorde de derrotas ). nota 1.
CINCO COVAS NO EGITO de Billy Wilder com Erich Von Stroheim, Franchot Tone e Anne Baxter.
Segundo filme americano de Billy. Um suspense de guerra em que o grande Erich rouba o filme em seu papel de Rommel, a raposa do deserto nazista. Um filme muito bem feito, muito bem escrito e com linda fotografia do mestre John Seitz. nota 7.
LONGE DELA de Sarah Polley com Julie Christie e Gordon Pinsent.
Preciso. Sarah Polley, atriz mirim do Munchausen de Gillian, se revela aqui muito boa diretora. Neste filme, triste, árido, geriátrico, tudo poderia levar às lágrimas fáceis ou às gracinhas de velhos bonzinhos. Sarah não faz nada disso. Conta sua história. Não força, não doura e nunca apela. Observa. Julie, que perdeu o seu segundo Oscar de forma injusta para Piaf, interpreta como só grandes atrizes podem : com os olhos, com as mãos, com o cabelo. Ela flutua, aturdida, medrosa, sedutora, completamente perdida, variando entre infantil e madura. Um desempenho feito de discreta elegancia. Uma lady. Mas eu já esperava isso de minha atriz musa-para sempre. De minha Kate Hepburn de Londres. Mas Gordon Pinsent arrasa. Seu desamparo, seu abandono e a teimosia de quem insiste em fazer o amor sobreviver é simplesmente acachapante. Um ator superlativo. E eis, ainda com o brilho de Olympia Dukakis e Michael Murphy ( antigo ator de Altman ) um simples e discreto drama outonal. Cheio de neve e de árvores. E em que a diretora, muito jovem, faz algo tão raro no cinema atual : conta a história e deixa que os atores brilhem. Parece tão pouco. Mas é tão raro. nota 8.

margaret atwood, tchecoslováquia, o amor verdadeiro

Ainda repercute em mim o livro de Atwood. Ele é tudo aquilo que o filme de Sean Penn poderia e deveria ter sido. É aquilo que Jheremiah Johnson secretamente é, e aquilo que Vanishing Point não poderia ser. Penso no sagrado.
O amor verdadeiro é sagrado. Pois se tudo o que é sagrado é intocado, o amor é intocável. Nós construímos um mundo à parte com o amor. Uma redoma o protege do mundo vulgar, frio, mesquinho, e vivemos em contato com o eterno, o sagrado, dentro dessa redoma. Mas é necessário um enorme cuidado : qualquer mentira, qualquer brutalidade destrói esse idílio. Macula sua necessária pureza. O amor então, após essa mancha, pode continuar, mas seu caráter sagrado se perdeu. Jamais será reencontrado. A relação sobreviverá como nostalgia do paraíso.
O sagrado necessita ser secreto. Uma coisa que é sómente sua. Nessa relação de voce com aquilo, será atingido o todo. Haverá uma ligação com tudo que existe ou existiu através de um contato muito íntimo, particular e sem código. Conto uma história que lí há alguns anos :
Quando o muro de Berlin caiu, foram à Praga e lá entrevistaram Vaclav Havel ( para quem não sabe, herói da resistencia tcheca contra os comunas. Escritor e primeiro presidente da nova república ). Havel contou que nos anos mais negros da repressão, ele, Kundera e Forman se reuniam no porão da casa dele. Um contrabandista conseguia discos americanos para eles e então eles os colocavam para tocar. Era um ato de resistência. Mas havia um disco que era tão livre, tão arrojado, tão etéreo que a relação deles com esse disco era SAGRADA. Tratava-se do primeiro disco do Velvet Underground.
Havel contou essa história para Lou Reed, quando os dois se encontraram em Praga, livres. É possível encontrar o sagrado num disco ? É, pois já a vivenciei.
Em 1981 comprei um muito caro e muito raro disco do Velvet Underground. Jamais havia escutado a banda. A conhecia por ter lido um artigo de revista. Nenhum amigo meu havia sequer ouvido falar de tal grupo. Velvet ? O que é isso ? Cheguei em casa e o coloquei para escutar. Alí estava : a coisa mais original, ousada, diferente e corajosa que eu poderia querer. Uma sensação de plena liberdade, de perigosa loucura, de além-do-tempo. Isso ainda não era um ato sagrado. Mas durante um ano voltei toda noite àquele disco. No escuro, geralmente bebendo, sentia que eu era o único cara em todo o mundo que escutava aquele disco. Ele era meu e só meu. Falava comigo. Ensinava coisas que não podem ser faladas. Me fazia transcender minha vida. O Velvet Underground era MINHA CASA.
Mal eu sabia que 3000 caras, espalhados pelo planeta, ouviam ao mesmo tempo o mesmo disco. Sentiam exatamente o que eu sentia. E que esses caras formariam bandas e dominariam o pop mais sério pelos próximos 30 anos... Criava-se o mito de que pouca gente escuta Velvet Underground, mas que os poucos que os escutam se tornam artistas. Eu não me tornei. Mas tive uma relação secreta, íntima com aquelas músicas que jamais foi repetida com disco algum. Houve algo de sagrado alí. O Velvet era uma gruta no meio de um bosque.
Hoje é dificil para uma banda conseguir isso. Ela cai na rede, faz clip, montes de shows e perde seu aspecto sagrado, não profanado, virginal, só para voce. Todos vão tocá-la. Ela será profanada.
Portanto, é impossível se falar daquilo que é sagrado para voce. É impossível ter uma relação sagrada em grupo. Sempre será voce em relação a alguma coisa maior que a vida e o universo.
Já tive essa relação com um livro, um filme, e o tal disco. Hoje é impossível. Tudo é de todos. Todo livro é dissecado, todo filme é acessível, todo disco é pop. Tudo CAI na rede e não SOBE à eternidade. ............................. Mas ainda há uma árvore só minha. Que fala uma língua que só eu compreendo. E que me abre as portas para além daquilo que penso eu ser. Ainda existe um canto na serra. Onde nenhum mal é possível. Lá eu deixo de ser eu. Lá eu sou a serra. Mas até quando ?

o lago sagrado- margaret atwood

As deusas da literatura têm sido generosas com suas seguidoras. Iris Murdoch, Doris Lessing, Muriel Spark, Margueritte Yourcenar, e a melhor delas, Margaret Atwood, têm abrilhantado a literatura destes últimos 30 anos. Atwood é canadense e era ela, ao invés de Lessing, que deveria ter levado o Nobel 2006. É opinião geral : talvez ela seja agora, com a morte de Sebald, a maior escrita deste inicio de século. Sua escrita é seca, curta, direta, pouco saborosa, nada rica. Mas seus pensamentos são profundos, simbólicos e desvendam claramente o que significa ser mulher. ( Ou o que significa não ser homem. )
O Lago Sagrado é seu segundo livro, lançado em 1972, tendo causado muita impressão na época. Alberto Manguel o considera mágico e eu sempre o procurei nos sebos. Atwood tem 4 livros em catálogo, mas não este. Vamos ao tema .
Dois casais de namorados vão ao norte do Quebec. Para procurar o pai da narradora, que sumiu por lá. O namorado, Joe, é um calado escultor fracassado. David é um esquerdista, que vive chamando os americanos de porcos fascistas. A garota de David é Anna, que é obcecada pela aparência, se maquiando ao acordar e usando o sexo como produto de troca. Com elementos tão ralos, Atwood tece uma das histórias mais assustadoras que já lí.
O tema é a volta à natureza, e somos testemunhas da transformação da narradora : ela começa a se tornar uma mulher-selvagem, uma quase deusa-natureza, uma coisa-parte-do-tudo, um ser além-tempo. No começo ela não exita em espetar sapos vivos em iscas para pesca; no final, sentimos que ela é o sapo, o peixe e o lago.
O livro descreve tudo isso com maravilhosa precisão. Nos assustamos porque mudamos com ela, vemos o que ela vê e sentimos sua desintegração. Mas há mais coisas : o livro nos joga na cara a falsa disputa em que o amor se tornou, a americanização do mundo ( fazendo de todos, sem que o percebam "americanos" ), a indiferença com a morte, a voracidade sem sentido. E o fosso que existe entre "americanos" e os não "americanos".
Cito algumas frases de Atwood :
" Tudo o que valorizo nele é físico. O resto é desconhecido, desagradável ou ridículo. Não ligo para seu temperamento."
" Não sou contra o corpo ou a cabeça, só contra o pescoço. Cria a ilusão de que corpo e cabeça estão separados "
" Amor sem medo e sexo sem riscos. Quase conseguiram nos fazer crer que isso fosse possível."
" Ela não podia ser domesticada, comida ou treinada para falar. A única relação possível com ela era matá-la. Por isso matavam as garças e as penduravam em cruzes, como Cristos. Alimento, escravo ou cadáver : opções que os animais tinham."
" Não importa de que país sejam, são americanos. São o que nos espera. No que estamos nos transformando. São como um vírus que ataca o cérebro. Atacam por dentro, quem tem a doença não percebe. "
" E a outra garça, destruída e pendurada numa árvore. Se morrera de boa vontade, consentindo, se Cristo morrera de boa vontade, qualquer coisa que sofra e morra em vez de nós, é Cristo. Se os americanos não matassem aves e peixes, nós seríamos os mortos. Os animais morrem para que possamos viver. Os caçadores do outono matando as corças, isto também é Cristo. E nós as comemos enlatadas ou de outro modo: somos comedores da morte, a carne enlatada de Cristo ressuscitando dentro de nós, concedendo-nos a vida. Mas nós nos recusamos a venerar. O corpo venera com sangue e músculos, mas a cabeça é avara, consome e não agradece."
" Os caixões foram inventados para trancar os mortos. Não permitem que eles se transformem em outra coisa, flores, raízes, sementes."
Nos últimos capítulos deste originalíssimo livro, a personagem abandona tudo que tenha sido tocado pelo homem : toda pegada, todo metal, toda trilha. Torna-se algo entre animal e vegetal, cheia de poder, cheia de mutismo. Esquece das palavras, dos nomes, e magistralmente, prepara-se para retornar, sem planos, sem passado nenhum, sem uma narrativa.
Margaret Atwood não escreveu aqui uma obra-prima. Estéticamente o livro não se sustenta. Mas registrou um testemunho visceral, claro, límpido, daquilo que significa a vida, daquilo que seria um retorno a origem, e do que é ser mulher. Deve ser lido por qualquer homem com um mínimo de inteligência, e por toda mulher que tenha intuído qual sua sagrada missão.

o sagrado e o profano

Existe alguma coisa sagrada em sua vida ? Voce sabe o que significa ?
Lendo o livro, duro e árido, de Margaret Atwood, tomo consciencia do que significa ter algo de verdadeiramente sagrado na vida. É aquilo que não foi profanado. Aquilo que não foi tocado, dissecado, desvirginado, vulgarizado. O que mantém seu mistério, seu encanto, seu caráter além, ou pré, razão. Sem isso, sem algo que nos faça ter esse contato, nos tornamos maquininhas vazias, corpos assassinos, mentes entorpecidas. A vida perde a luz.
Nada é ou pode ser mais sagrado que a própria vida. Quando matamos, destruímos tudo o que existe de encantador e perfeito. Mas atente : o homem sempre foi um matador. Porém, existe uma imensa diferença entre matar e MATAR.
Existe o matar consciente. Em que se percebe toda a dor e tudo o que há de trágico e inevitável naquele momento. É a morte do adversário samurai, do soldado inimigo morto no olho-a-olho, do executado em praça pública. Enxerga-se algo de ritualístico na vida. A inevitabilidade da morte. O horror que leva à transcendencia.
Existe o matar por necessidade. Para comer. Sobreviver. Agradecer, aos deuses e à própria vítima, a boa fortuna de ter caçado, encontrado. Minha vida deve sua existencia a sua vida. Vida alimentando vida.
O arrancar vida da vida. Decepar um fruto da árvore que lhe é mãe. Arrancar comida do solo que lhe é pai. Esperar o amadurecimento. Agradecer pela chuva. Pelo sol.
Tudo isso, tão simples, foi profanado. Voce mata na guerra como se guerra fosse virtual. Mortes na tela de video-game. Voce mata o assassino em cubículos isolados, onde um número é higienicamente apagado. Faz um aborto como se aquilo fosse uma simples e limpa extração dentária, um excesso de gordura eliminada. Mata milhões de animais, todos os dias, sem olhar seu olho, sem ouvir seus berros, sem conhecer e agradecer por seu sacrifício. É poupado do horror e perde o sagrado.
Todos os mares e todas as ilhas foram desvirginadas. Todas as montanhas estupradas. Não há um bosque onde um idiota não tenha ido caçar ( caçar para dar tiros, não para comer), ou se exibir em esportes barulhentos e imundos. Tudo foi profanado.
Teu corpo foi dissecado em vida, tua mente penetrada e exposta, teu sexo transformado em piada e em produto, tua religião falsificada. Sua vida e minha vida e a vida de todo bicho foi dessacralizada.Porque? - Para que possamos destruir e dormir, para que possamos assassinar em massa e engolir, para que possamos usar sem pensar. A vida se torna, desse modo, menos, muito menos que poderia e deveria ser. Se torna mecânica. Herdamos tédio, vazio e esterilidade.
Uma árvore, pelo menos uma árvore. Que seja só minha. Que tenha sido do pai de meu pai. E que eu saiba que será do filho de meu filho. Uma árvore que me dê o prazer de agradecer por sua existencia e que me permita crer no sagrado de sua realidade. Não profanada. Intacta.
Um lago onde o tempo tenha cessado. E eu me sinta parte dele e não seu senhor. Onde eu esqueça meu nome. E nada saiba sobre nada. Onde mergulhe em seu lodo e enxergue o que sempre desejei e jamais consegui. Um lago sagrado.
Animais que não me temam. E que não sejam meus escravos. Que existam intocados. Sem função nenhuma. Exibindo a vida- cruel e certeira- como ela sempre é, foi e precisa ser. Sagrados animais.
Eis aqui o segredo. Distantes dos animais, sem assistir nascimentos e mortes, comprando carne morta e ovos estéreis, nos tornamos distantes da vida não racional, da vida não planejada, da vida não profanada, do sagrado-eterno-imutável. Do ciclo, da roda, da magia.
Sei que tenho coisas sagradas. Lugares só meus a que sempre retorno. O triste é que dois deles foram profanados....não os sinto mais como sagrados. Perderam a ligação com o atemporal. Estão mortos. Foram derrubados e refeitos. Não dizem mais nada.
Um pouco de nós mesmos foi com eles.